Arquivo para janeiro, 2013
Depois do incêndio
Não há como evitar notícias sobre o incêndio na boate Kiss de Santa Maria. Os enterros de inúmeros jovens, a dor das famílias, as mais de oitenta pessoas ainda internadas - grande número em estado considerado grave - continuam a gerar indignação, revolta e pedidos de justiça. Volta e meia alguém publica nos jornais comentários sobre o fato que tem sido noticiado em todo o mundo. Difícil não ligar o incêndio e os 235 mortos à ideia de que poderia ter sido com um de nossos filhos, daí partilharmos do sofrimento daqueles que perderam pessoas queridas.
No mais o que se vê são tentativas de negação de culpa, passagem de responsabilidades, cada um se isentando de sua parcela de contribuição na tragédia. Os donos da boate, os músicos, a prefeitura, o corpo de bombeiros, todos se dizendo isentos de responsabilidade e por vezes atribuindo o terrível episódio a uma grande “fatalidade”. Quer dizer que devemos aceitar como algo que tinha que acontecer, dessas coisas que simplesmente ocorrem. Sabe-se lá por quais razões justamente aquelas pessoas estavam no lugar naquele exato momento, perdendo suas vidas. Mesmo o fato de que no isolamento acústico tenha se usado uma espuma altamente inflamável, cuja queima – segundo se divulga - produz o mesmo gás utilizado pelos nazistas em câmaras de extermínio, terá sido acidental porque não era para ter pegado fogo. Também se registre que em outras ocasiões sinalizadores foram queimados pela banda sem que nada tivesse acontecido, dai a “fatalidade”.
Certamente ouviremos explicações e muitas negativas sobre quem de fato deve responder pela tragédia ocorrida na boate. Entretanto, nada mudará o fato de que na madrugada de sexta para sábado 235 pessoas que estavam numa boate superlotada perderam a vida desnecessariamente, absurdamente. O pior é que, se vale a experiência que temos sobre o andamento das coisas neste nosso Brasil, daqui a um bom tempo, passada a emoção e o interesse em divulgar notícias, a tragédia será amortizada, senão esquecida, exceto por aqueles que chorarão vida afora a perda de seus entes queridos.
O que se espera no momento, mais que a apuração das responsabilidades, é que os órgãos públicos cumpram o seu papel, não só alavancando propostas, mas cumprindo-as após serem aprovadas. Será esse o único meio de evitar que tragédias como a de Santa Maria se repitam.
É preciso não esquecer os mortos de Santa Maria porque a lembrança deles nos fará reclamar medidas importantes para que novas mortes não venham a acontecer.
A fama dos brasileiros
Talvez a culpa seja do carnaval. O certo é que o brasileiro é considerado por aí afora um povo alegre, ao qual as más línguas chegam a atribuir alguma irresponsabilidade. Tempos atrás, em Buenos Aires, um motorista de táxi se pôs a falar sobre os brasileiros, na opinião dele os melhores turistas que viajam à Argentina. Taxando o povo verde-amarelo como feliz disse não poder imaginar um brasileiro que não seja alegre. Comparou os brasileiros aos turistas europeus que taxou como gente fria, gelada mesmo, com os quais é impossível qualquer tipo de conversa. Turista europeu entra e sai calado do táxi - disse.
Como se sabe a TV paga reproduz diariamente séries norte-americanas de grande gosto popular. Numa delas os brasileiros foram apresentados como povo não afeito a compromissos. Tratava-se de um capítulo no qual a missão era proteger a filha de um político brasileiro que seria o próximo candidato à presidência. Os comentários sobre a corrupção de políticos do país não foram seletivos abarcando toda a classe. Além disso, se destacou a chegada do político exatamente no horário marcado para uma reunião dado ele ser brasileiro e, portanto, não afeito à pontualidade. Aliás, ele foi elogiado por chegar no horário, justamente por ser um brasileiro.
Sinceramente, não posso dizer se o que li nas legendas corresponde ao que realmente disseram os atores no capítulo citado. De todo modo o que se disse nem um pouco está longe da imagem que ainda se faz do país, terra do futebol, samba e mulatas. Talvez por isso eu prefira que em certas ocasiões, nas quais o país é representado, se repense no que deve ser mostrado como características da nacionalidade.
Conversando sobre isso com um amigo ele me disse: que se dane a opinião dos estrangeiros sobre nós. Ademais, não se pode generalizar, completou. Talvez tenha ele razão. Mas, não é nada agradável ser visto como um ser muito diferente quando estamos no exterior.
Um rapaz que vive na Austrália me contou sobe uma comemoração por ocasião da passagem de ano. Estava ele num restaurante e, na hora da passagem, as pessoas se levantaram para brindar o momento. De repente, algumas pessoas subiram à mesa e, quando sobre ela, começaram a bater os pés e gritar. Ao que os presentes mostraram-se surpresos com a euforia talvez para eles exagerada. Então um dos australianos presentes disse em voz alta:
- Brazilians…
A falta de sentido das tragédias
Ao ver imagens da tragédia ocorrida em Santa Maria não pude deixar de me perguntar por que, afinal, continuava preso à TV, presenciando cenas de sofrimento inenarráveis, perdas irreparáveis e o estupor diante de algo colossal cuja falta de sentido faz-nos desconfiar da lógica da própria vida. Que sentido pode haver em algo tão terrível, num incêndio que em poucos minutos rouba a vida de mais de duzentos jovens, eles que minutos antes se divertiam dentro de uma boate? Que estranha combinação de fatores influiu na possibilidade da presença justamente daquelas pessoas, naquele lugar, naquele horário, para que juntas participassem e fossem envolvidas por algo inesperado e que roubaria a elas a vida? E por que eu me irmanava àquele sofrimento, ficando junto da TV, ouvindo e vendo informações repetidas que, no final das contas, em nada mudavam o fato maior, o desparecimento precoce de tantos jovens?
Obviamente não tenho respostas para essas perguntas, talvez ligue o fato ocorrido à preocupação que temos com os nossos filhos, esses seres que se alongam de nós e andam por aí, em meio a tantos perigos que escapam à nossa capacidade de proteção. É colocando-nos no lugar dos pais que choram a perda dos filhos que a tragédia de Santa Maria nos abate, arremessando-nos à zona de silêncio irremediável pela qual trafegam os que se defrontam com catástrofes irreversíveis.
Do incêndio na boate de Santa Maria restam inúmeras perguntas que vão sendo feitas na medida em que o tempo passa e a dimensão da tragédia se avulta. De repente, as pessoas mortas aparecem, seus nomes e faces são-nos revelados e os mais de duzentos deixam de ser massa uniforme para transformar-se em cada um, o ser que parte e deixa atrás de si um rastro de dor. Adentra-se agora o território das responsabilidades, da apuração dos fatos, da eleição dos responsáveis. Entretanto, ainda que a justiça seja feita com a punição de possíveis responsáveis, nada, absolutamente nada, remediará os fatos ocorridos em toda a sua extensão.
Não há como passar incólume por acontecimento de tal monta. Não há como ignorar o que aconteceu na cidade do Rio grande do Sul. Não há como não se identificar com aqueles que perderam, no incêndio, entes queridos. Não há como voltar no tempo e impedir que as pessoas entrem na boate prestes a arder em chamas. O que resta é chorar e torcer para que as autoridades façam a parte delas, impedindo que novos e tão trágicos acontecimentos se repitam.
A hora dos velhos
O ministro das Finanças do Japão declara que os velhos devem se apressar a morrer porque o estado não dá conta de sustentá-los. Com o envelhecimento da população japonesa seria vergonha manter-se vivo à custa do dinheiro público. O ministro tem 72 anos e disse ter pedido à família que não prolongue a vida dele com remédios.
A insólita declaração do ministro causou estupor e protestos. Depois ele veio a público para dizer que sua fala refletia apenas a opinião pessoal e não a do governo. Mas o mal feito estava consolidado e nenhuma desculpa seria capaz de amenizar a infeliz declaração anterior.
A fala do ministro fez-me lembrar de um capítulo da série “A Família dos Dinossauros” cujos capítulos ainda hoje são repetidos em canais de televisão. Num deles chegara o “Dia do Arremesso” no qual dinossauros que atingiam certa idade eram arremessados num precipício. Assim a sociedade dos “dinos” resolvia o problema da velhice, eliminando sumariamente os velhos. No capítulo o chefe a família, Dino da Silva Sauro, não conseguia esconder a alegria porque chegara o dia de arremessar a sogra dele.
Há muitos anos, meados da década de 80, assisti à palestra de um economista. Era ele professor universitário e ocasionalmente membro de equipes econômicas do governo. Vinha ele de um encontro de economistas realizado na Europa no qual se discutiu o envelhecimento progressivo da população, a queda da taxa de natalidade e a evolução para uma situação na qual os estados não teriam como cobrir a despesa gerada pela manutenção dos idosos. Segundo o economista a situação era alarmante e se chegaria, poucas décadas à frente, a uma situação de insolvência.
Creio que o ministro japonês estivesse de fato preocupado com a evolução do quadro econômico e social em seu país embora a solução disparatada e absurda que acabou por sugerir. Entretanto, não há como olvidar que a questão está em aberto. Vivemos num país em que a desigualdade social é ostensiva, no qual a grande parte da população fica à deriva nas questões que envolvem o bem-estar. Saúde, segurança, transporte, educação e muitos outros setores ligados à vida em comum seguem em condições infelizmente deploráveis embora o esforço de muita gente para pelo menos amenizar o quadro com o qual diariamente nos deparamos. Dentro de tal contexto os cuidados e atenção aos idosos deixam muito a desejar exigindo-se que alguma coisa seja feita em relação a eles.
Tornar-se velho não é nada simples. Defrontar-se com a realidade de problemas de saúde e redução da capacidade de trabalho representa ficar à margem do setor produtivo e manutenção das condições habituais de vida. Ao idoso ocorre preocupar-se justamente com a sobrevivência no futuro imediato a qual, na maioria dos casos, torna-se incerta. Cabe aos governos assistir na velhice aqueles que deram a sua contribuição ao país. Não será convidando-os a apressarem suas mortes que se resolverá o problema.
Os quarenta anos de Rogério
Não adianta, está no sangue essa loucura por futebol. Desde pequenos ouvimos em nossas casas conversas e discussões sobre times, esse ou aquele jogador, seleção brasileira, jogos, Copa do Mundo e por aí vai. Então acontece a inevitável contaminação do sangue pela paixão, dai nascendo essa incompreensível devoção que se traduz numa mescla de alegrias e tristezas, bom e mau humor, revoltas, brigas e muitas vezes até ódio. É o futebol que nos apaixona, verdadeiro vício que só se abandona com a morte.
De tempos em tempos aparece algum jogador que encanta a torcida, desses que ganham respeito até dos adversários, seres com os quais estabelecemos relação de confiança porque deles passa a depender grande parte da satisfação que temos em nosso dia-a-dia. Os brasileiros têm, certamente, listas de figuras inesquecíveis que passaram pelos gramados do país e ligaram seus nomes ao imaginário popular. Craques que participaram de memoráveis conquistas merecem reverências e deles jamais nos esquecemos. Citar nomes como os de Pelé e Garrincha pode servir para abertura de uma longa relação de nomes de grande agrado da enorme torcida brasileira.
Mas, como tudo passa, eis que a idade dos ídolos também avança. É assim que, de repente, acontece de Rogério Ceni chegar aos quarenta anos, ele que de há muito pertence à galeria dos maiores goleiros do país, operador de milagres debaixo das traves, incrivelmente dotado da capacidade de converter faltas em gols. E chega ao pórtico dos quarenta em plena e invejável forma, jogando muito, recebendo os merecidos aplausos dos torcedores. Trata-se, portanto, de um craque entre os craques, alguém dotado de talento e disciplina, desses que se entregam com paixão aos seus ofícios, daí sua natural liderança e exemplo aos colegas de profissão.
O dia de hoje é de festa para a grande torcida são-paulina que se orgulha de seu grande goleiro e agradece a ele por todos esses anos nos quais seu talento e empenho trouxeram-nos tantas alegrias. Agora pouco ouvi pelo rádio a narração de uma das grandes defesas realizadas por Rogério naquela final do mundial de clubes contra o Liverpool. Para mim foi como se o jogo estivesse acontecendo naquele momento, de novo, como deverá acontecer em todas as vezes que em que me lembrar desse lance que vi pela televisão no dia em que ocorreu.
Então é isso, deixo Rogério Ceni debaixo das traves, pulando, mãos trocadas, tirando do ângulo a bola chutada pelo inglês que teria o destino certo das redes. É nessa posição, operando defesas milagrosas que Rogério se fixa, porque ali é e será, para sempre, o lugar dele nas nossas memórias.
Parabéns ao Rogério pelos seus quarenta anos e vida longa a você em sua carreira esportiva.
A revolta dos garçons
Danuza Leão escreve sobre garçons de restaurantes chiques. Descreve-os como bem vestidos, elegantes, educados, solícitos, prontos a atender. Relata como isso muda ao fim a jornada de trabalho quando eles vestem suas camisetas e esperam, no ponto, o ônibus que os levará às suas casas. São as duas realidades vivenciadas pelos garçons que interessam à cronista que, a certa altura, pondera que o valor da conta de uma das mesas talvez resolvesse o problema de alguns deles ao fim do mês.
O texto devolveu-me período no qual frequentei um restaurante em São Paulo. Confesso minha preguiça em relação a experimentar lugares diferentes. Isso acontece, por exemplo, em relação a destinos de viagens. Prefiro sempre retornar a lugares já conhecidos que não exigirão o esforço da descoberta. Talvez por isso sempre que me sobra um tempo prefira ir a Fortaleza, cidade que conheço muito bem. Mas, dizia, era de meu costume jantar num mesmo restaurante coisa que acontecia pelo menos duas vezes por semana. Por conta desse hábito aconteceu-me conhecer o maitre e os garçons, quebrando-se aos poucos a barreira entre o profissional que serve e o cliente servido por ele. Foi assim que, devagar, tornei-me algo íntimo da realidade do pessoal que trabalhava no restaurante a ponto de vir a conhecer particularidades da vida de muitos deles. Não que eu perguntasse, mas como em geral frequentava o lugar tarde da noite - hora de pouco movimento – ocorria de um ou outro abrir-se comigo sobre as circunstâncias do trabalho. Foi assim que passei a ouvir queixas sobre o patrão e mesmo a confissão de que o grupo reunia-se com o intuito de abandonar o trabalho para, juntos, abrirem um restaurante que seria de todos.
Deixo claro que nunca alimentei a necessidade que os rapazes tinham de me confidenciar seus problemas e projetos. Ouvia o que me diziam, buscava encurtar a conversa e pronto. Entretanto, de certa forma parecia-me que os garçons haviam me tomado não exatamente como confidente, mas como alguém que poderia ser útil a eles comercialmente. A verdade é que não tinham a menor ideia de como levar em frente o projeto de abrir um restaurante. Um deles, justamente o maitre, chefiava o grupo de modo que os demais sempre o citavam como aquele que lideraria a mudança do grupo para outro local.
Certa noite estava eu a jantar quando, de repente, sentou-se à minha mesa o patrão. Educado, mas incisivo, perguntou-me ele se eu estaria confabulando com os funcionários. Obviamente me sai com facilidade da situação e, depois disso, deixei de frequentar o lugar.
Tempos depois o restaurante foi vendido. Final do ano passado, por acaso, passei defronte e resolvi entrar no restaurante. O novo dono mudara bastante o aspecto do lugar. Sentei-me e um rapaz me trouxe o cardápio. Escolhia o que pediria a seguir quando reparei nos garçons que iam e vinham no trabalho junto às mesas. Entre eles reconheci alguns dos velhos tempos. Depois apareceu o maitre, o mesmo de antes.
Não sei dizer exatamente o que senti ao saber que a ensaiada revolta dos garçons tinha dado em nada. A certa altura o maitre - meu velho conhecido – fez o seu trabalho perguntando-me se tudo estava em acordo. Em nenhum momento pareceu me reconhecer, talvez porque eu lembrasse a ele algo de que se arrependera, a ação ousada de um grupo que não havia se consumado.
Tempo que não volta
Se há algo que se torna muito claro quando se chega à década dos sessenta anos de idade é a irreversibilidade do tempo. Não que antes não a percebamos: simplesmente a ignoramos, talvez por essa noção de eternidade da vida que levamos conosco. Todo mundo sabe que a vida é finita, que mais dia, menos dia, deixaremos de ser. Aos que tem fé existe a certeza de que o estágio neste mundo não passa de preparação para outra dimensão na qual o espírito que abandonou a carne sobreviverá. As religiões se apoiam na ideia transcendental de continuidade da vida no âmbito espiritual, sendo que algumas delas admitem o retorno a este mundo, enfim a reencarnação. Infelizmente, todas formas de contato com dimensões post-mortem não são conclusivas, restando dúvidas sobre a realidade de contatos com pessoas que já morreram.
Mas, eis que me desencaminho. O tempo corre e em geral fingimos que ele não passa para nós. Mas, de repente a mocidade fica para trás e nos deparamos com a realidade de que avançamos em direção à fronteira na qual ninguém sobrevive. O caminho em direção à lápide é tortuoso e não se sabe quando termina. Mas, enquanto seguimos por essa via - na medida em que avançamos – velhas questões que na faina diária deixamos de lado ressurgem. Trata-se de perguntas para as quais obviamente não existem respostas definitivas, mas que nos incomodam. Questões sobre o sentido da vida, o bem e do mal, a existência da alma e mesmo a de Deus tornam-se imperiosas. Afinal, o que há do lado de lá, depois dessa enorme sombra para a qual seremos projetados no momento em que deixarmos o mundo que conhecemos? Essas e muitas outras questões com as quais não perdemos tempo no dia-a-dia de repente começam a incomodar, senão pressionar porque envolvem significados que não alcançamos. Trata-se da vontade de saber a qual só a morte pode conter.
Você se entende envelhecendo quando repara que as pessoas que fazem parte da sua geração desparecem, lenta e progressivamente. Pessoas de nosso convívio, personalidades públicas, ícones de nossa época morrem e a morte deles figura como aviso de que também a nós está reservado o mesmo fim. É esse despovoamento de nossos pares que abala a noção de eternidade da vida à qual nos agarramos tão vigorosamente.
Escrevo sobre isso porque ontem morreu o ator Walmor Chagas. Tinha ele 82 anos de idade e foi encontrado morto com um revólver sobre o colo. Não há como ficar indiferente à morte de Walmor, ator a cujas encenações nos habituamos ao longo de décadas. Eu o vi, ainda moço, no palco, participando de uma peça. Há pouco tempo revi o filme “São Paulo S/A” no qual Walmor tem atuação magnífica, trazendo-nos de volta aquela cidade de São Paulo em ritmo de industrialização. Não há como não ligar a morte de Walmor à percepção de um mundo que se vai, de fim de uma época, da voracidade com que o tempo devora as nossas vidas.
Ninguém sabe quanto tempo viverá. Entretanto, nunca é demais lembrar aquelas que foram as últimas palavras de Machado de Assis em seu leito de morte:
- A vida é boa!
Talvez por isso o deixar de ser nos impressione tanto.
O Othon Palace de São paulo
Mês passado fui ao centro de São Paulo e não pude conter a tristeza pelo abandono e degradação em que o lugar se encontra. Desde já deixo explícita a minha adoração pelo velho centro. Quando vim para são Paulo, no final da década de 60, o centro era o ponto elegante da cidade, situação que creio ainda se manteve durante bom tempo. Andava-se pela Rua São Bento, em direção ao largo de São Francisco, observando-se as vitrines das boas lojas de comércio. Uma delícia descer pela Líbero Badaró, passar pelo Viaduto do Chá e dar uma volta pela Barão de Itapetininga até chegar à Praça da República. Não existiam os shopping-centers de modo que o comércio importante ficava no centro.
Desci do metrô na Praça da República e segui pela Rua Conselheiro Crispiniano. Fui até o Largo do Paissandu. Tive a impressão de que havia se travado ali uma batalha e agora presenciava o que restara da luta. Sujeira por toda parte, prédios outrora vistosos agora com aparência degradada. E pensar em como era o centro, como nos divertíamos nele, o quão interessante era andar por ali para ver gente, demorar-se nas livrarias, tomar um bom café, ir a um cinema, jantar num bom restaurante. Coisas que se tornaram passado e, talvez, sobrevivam em algumas poucas memórias.
Na esquina da Rua Libero Badaró com o Viaduto do Chá ficava o imponente Othon Palace Hotel. Por acaso passar por ali fazia parte da minha rotina de modo que eu sempre tinha olhos compridos para o que se passava no hotel. Achava tudo aquilo o máximo do chique, guardado que era pelos porteiros uniformizados e galantes. Não custa dizer que nunca entrei no hotel cujas diárias estavam muito além das minhas então parcas possibilidades. Mas, dava orgulho de ver aquele hotel, a Praça do Patriarca, o Viaduto do Chá e a imponência do Teatro Municipal. Outra e velha São Paulo, outros tempos que se espera retornem-se um dia com a prometida e nunca cumprida proposta de revitalização do centro.
Pois leio que o majestoso Othon Palace foi desativado em 2009 devido a preferência pelos hotéis situados em regiões mais nobres da cidade. No momento está sendo ocupado por comunidades sem-teto que agora vivem em suítes onde se hospedaram a Rainha Elizabeth 2ª e chefes de estado. Consta que o ex-prefeito Kassab queria utilizar o prédio para nele instalar gabinetes da prefeitura que hoje funciona ali do lado, no Edifício Matarazzo.
Sobre o Othon tenho um caso curioso. Um amigo tornou-se noivo de moça do interior e quis impressionar os pais dela quando certa vez vieram a São Paulo. Para isso, convidou-os a um jantar no famoso restaurante Chalet Suisse localizado no último andar do Othon. Ora o Chalet Suisse era restaurante de alto luxo, ponto de referência de boa cozinha. Acontece que o meu amigo estava empregado na época, mas sua verba seria um tanto reduzida. Em todo caso armou-se ele de um bom dinheiro que levou consigo, julgando-o suficiente para pagar pelo jantar. O caso foi que após se esbaldarem veio a conta e o dinheiro do bolso não foi suficiente para cobrir a despesa. Cheque ele não tinha de modo que o jeito foi pedir ajuda ao futuro sogro. No dia seguinte foi difícil animá-lo tão arrasado e deprimido se encontrava por aquilo que considerar um papelão que fizera. Mas, no final das contas casou-se mais tarde com a moça, terminou seu curso de Direito e tornou-se advogado e ministro de grande renome. A vida é assim.
Saudades do velho centro de São Paulo o qual, assim espero, volte a ser pelo menos parte do que já foi.
Os três mosqueteiros
No momento em que é lançado nos cinemas a nova versão do filme “Os três mosqueteiros” não há como não se lembrar do romance de Alexandre Dumas que inspirou a trama desse capa-e-espada. Em primeiro lugar é preciso dizer que ao tempo em que a televisão não existia - e mesmo em seus começos- os jovens tinham na leitura de romances de ação divertimento certo. Obviamente, nem sonhavam que um dia viesse a existir internet com todas as redes de comunicação hoje disponíveis. Nem mesmo imaginavam os cinemas com exibição de filmes em 3D como acontece com essa nova versão de “Os três mosqueteiros”.
Mas, vamos por partes. Alexandre Dumas, pai, (1892-1870), foi romancista francês muito bem sucedido. Muito lida durante a vida do escritor e mesmo após a sua morte a obra de Dumas é traduzida para cerca de 100 idiomas e utilizada no cinema para a produção de inúmeros filmes. O “pai” que se acrescenta ao nome do escritor deve-se ao fato de que seu filho, também chamado Alexandre Dumas, foi um escritor de renome, sendo o autor do livro “A dama das Camélias”. Em “Os três mosqueteiros” o Dumas, pai, conta a história do jovem d’Artaghan que se muda a Paris para tentar unir-se aos mosqueteiros do rei Luís XIII. Lá conhece os famosos mosqueteiros, Athos, Porthos e Aramis com os quais vive grandes aventuras, enfrentado o inimigo Cardeal Richelieu com seus guardas e Milady, mulher de grande beleza que já fora casada com Athos e que está serviço do cardeal. O livro é um clássico da literatura romântica que reúne, entre outras características, muita ação, aventuras, comicidade e erotismo.
Mas, não é esta a primeira vez que os cinemas brasileiros exibem uma versão filmada de “Os três mosqueteiros”. Em 1922 os cinemas do Rio e São Paulo exibiam a fita que tinha no papel de d’Artaghan o grande ator Douglas Fairbanks - em outubro de 1922 os jornais anunciavam a exibição do filme no cine Rialto, no Rio de Janeiro, com cinco sessões diárias. O filme fora lançado pela United Artists em 1921 e, naquela época, as estreias não eram como hoje, praticamente simultâneas em vários países. Douglas Fairbanks foi, juntamente com Charles Chaplin, fundador da United Artists e destacou-se em vários filmes. Para quem tiver interesse existe em DVD o filme “Os três mosqueteiros” de 1921, podendo ser adquirido pela internet.
Lembro-me bem da geração de meus tios para quem a obra de Dumas, pai, era lugar comum. Cresci ouvindo referências a d’Artaghan, Athos, Porthos e Aramis - os três mosqueteiros que eram quatro - que, quando eu era menino, passavam por personagens reais que tivessem existido na França ao tempo do reinado de Luís XIII. Então era de bom tom que meninos e rapazes já tivessem algum conhecimento sobre grandes escritores de modo que não nos eram estranhos livros de Victor Hugo, Henry James e muitos outros. Não sei se hoje em dia a moçada liga o nome de Dumas, pai, ao filme “Os três mosqueteiros”. Será uma pena se não vierem a conhecer a obra de um escritor como Dumas, pai, a quem devemos grande parte dos sonhos e ilusões que permearam a nossa infância e juventude.
Cuidado com os gurus
Convenhamos: guru não se forma, guru nasce. Você mesmo já deve ter topado com uma cara que tem vocação para guru. Trata-se de alguém que agrega, atrai gente, é procurado pelos outros ainda que não os chame. Cara do tipo para quem dá vontade de contar algo inconfessável, um transe, alguma coisa só sua que você só dividiria mesmo com um guru, esse tal capaz de dizer uma palavrinha, uma só, que amortize a sua dor, o seu problema. Vá lá, em geral é assim, as coisas com gurus se passam desse modo e ponto final.
Essa capacidade de agregar, de dispor de plateia que ouça o que se tem a dizer faz parte de um imã que parece estar colado na testa do guru. Trata-se de um imã muito forte que confere força, impõe serenidade e faz aquele que ouve sentir-se seguro, esperançoso. Isso ligado, obviamente, à sabedoria que é de domínio do guru, afinal ele tem seu trato com o mundo da sapiência, enxerga além dos mortais comuns, por isso mesmo é um guru.
Mas, o que acontece quando um guru erra? Eis aí um fato inesperado, mas que, ainda assim, não afugenta seguidores porque o guru deve ter lá os seus motivos, razões superiores, para ter dito o que disse, ainda que num primeiro momento suas palavras contrariem o bom senso e inspirem desconfiança.
Creio ter sido um fato dessa ordem, uma visão estranha e além da nossa compreensão que levou o guru indiano a afirmar que a moça estuprada por homens dentro de um ônibus também deve ser considerada culpada. Ele disse que se ela tivesse clamado por Deus e se arrojado aos pés de seus algozes a tragédia não teria acontecido. Agisse ela assim eles não a teriam estuprado e atirado para fora de um ônibus em movimento, ferida, praticamente morta. Assim se pronunciou o guru sobre um fato hediondo que levantou a opinião pública indiana e mundial, provocando não só protestos como mobilização popular contra uma situação patriarcal na qual as mulheres são abusadas e dominadas pelos homens. Nos últimos 30 anos o índice de estupros subiu quase 90% na Índia, mas o guru acha que as mulheres têm a sua participação nisso, talvez por simplesmente existirem.
Pelo que convido todas as pessoas a refletirem sobre os gurus e suas verdades. Afastai-vos, ó incautos, dos falsos gurus, dos novos e velhos profetas capazes de atrair pessoas que os seguem, tantas vezes, cegamente.
Não será que o tempo dos gurus já passou, sendo que os que andam por aí não se deram conta disso?