2014 janeiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para janeiro, 2014

Poesia X prosa

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Sempre fui fã de lutas de boxe. Acho incrível o fato de hoje dispormos no YouTube de vídeos das lutas de grandes campeões do passado como Joe Louis e Sugar Ray Robinson.

Gosto de boxe, mas não posso dizer o mesmo em relação ao UFC. Acho as lutas de UFC de violência desmedida. É sangue para todo lado. Aquela última luta do Anderson Silva foi terrível. O que aconteceu à perna de Anderson depois do chute que deu em seu adversário ultrapassa qualquer limite de competição esportiva. Agora publicaram na internet um vídeo mostrando o sofrimento de Anderson sob outro ângulo. Coisa terrível, dor inenarrável provocada por uma fratura exposta.

Mas, existem outros tipos de disputas não catalogadas no terreno esportivo. É o caso do embate entre poesia e prosa, cada um desses terrenos com seus fervorosos adeptos. Há quem prefira a poesia, outros preferem a prosa, havendo muita gente que se delicia com a fruição dos dois tipos de literatura. Entretanto, nem sempre a discordância entre aqueles que preferem um ou outro tipo de texto acaba bem.

Afinal, o que é superior, a poesia ou a prosa? Pois ocorreu que um ex-professor russo, adepto da poesia convidou a jantar um amigo que via superioridade nos textos em prosa. A discussão entre os dois foi acalorada, cada um defendendo e valorizando a sua preferência. Até que os dois contendores chegaram às vias de fato, infelizmente com desfecho trágico: o ex-professor esfaqueou o amigo amante da prosa e matou-o.

Consta que depois de assassinar o amigo o professor escondeu-se, mas foi capturado e preso. Também se divulga que os dois contendores haviam consumido muito álcool até o momento do trágico desfecho.

De minha parte, caso fosse solicitado a escolher, optaria pela prosa. Não que não goste de poesia, mas confesso que minha sensibilidade e fruição a textos de grandes poetas deixam a desejar. Encontro-me melhor nos textos em prosa, mas, nem por isso, chegaria ao limite de alimentar discussão com alguém favorável a poesia. Vai que no meio da discussão surge uma faca, um punhal, e eis que poderei me transformar em notícia da sessão de crimes.

Pensar grande

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Vi na TV um economista aconselhando a empresários pensar grande. Na opinião dele os empresários que ficam muito presos aos problemas diários de seus negócios e cujo olhar não ultrapassa os limites das janelas das empresas estão fadados ao insucesso. Crescer, disse ele, exige visão, pensamento positivo, boas escolhas, enfim, pensar grande.

Nos meus tempos de faculdade conheci um rapaz que falava muito em pensar grande. Era um sujeito ativo, dotado de energia formidável, desses capazes de falar grosso até mesmo nos tempos da ditadura. Pelo que depois que se formou ele logo se arrumou e bem. Chegou a ocupar cargos públicos de relevância até ser atingido por denúncias que não se sabe ao certo se verdadeiras. Ainda assim nunca perdeu o jeito. Para ele o velho ditado sempre foi válido: quem foi rei nunca perde a majestade.

Confesso que não sei bem o que significa o tal “pensar grande”. Conheço pessoas que sempre enxergam um obstáculo em tudo que encontram pela frente. Para elas sempre existe um “mas”. Caso seja preciso levar o carro ao mecânico esse simples fato já se configura a priori o pior dos mundos. Parece que sobre a cabeça dessas pessoas paira nuvem que de instante para outro pode provocar uma tempestade. Talvez esses sejam aqueles que de fato pensam pequeno.

Falo sobre esse assunto quando leio que os EUA cortam estímulos em sua economia, ignorando os países emergentes. A reação imediata é a alta do dólar. Acredito que a minha posição de cidadão em relação a isso deve ser a de preocupação com os negócios do meu país e os reflexos sobre a economia das famílias que lutam por uma vida melhor. Esse seria o pensar grande, não? Mas, de repente me pego preocupado com o valor da moeda norte-americana cuja alta vai dificultar as viagens ao exterior. E se, por acaso, eu tiver alguma oportunidade de viajar, como ficarão os meus gastos pessoais diante das novas cotações do dólar? Bem, isso talvez seja mesmo o caso de se pensar pequeno, quem sabe egoisticamente.

Pois existe uma diferença enorme entre o público e o privado, entre as ações coletivas e o salve-se quem puder. Quando você deixa de confiar no seu governo e observa que a política empregada por ele vem deteriorando a economia do país, eis aí situação em que você passa a pensar em si mesmo, ignorando qualquer participação coletiva.

Outro dia um amigo me falava sobre aquela campanha que se chamou “Ouro para o bem do Brasil”. Aconteceu em 1964 e o povo atendeu ao chamado para ajudar ao país. Nas praças públicas das cidades, nos coretos, instalaram-se urnas nas quais as pessoas depositavam peças de ouro que seriam usadas para melhorar a situação geral. Meu amigo lembrou-se de que seus pais doaram não só suas alianças de casamento com toda peça de ouro que tinham em sua casa. Eu mesmo assisti em cidade do interior ao movimento de pessoas que compareciam espontaneamente para fazer suas doações. Uma banda de música ao lado do coreto saudava aquele momento de fé dos brasileiros.

Pensava-se grande, então. Agora me diga por que diabos alguém doaria hoje em dia alguma coisa para o bem do Brasil.

O sangue do papa

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Não se pense que estamos a tratar de casos de papas assassinados, sejam lá quais forem os motivos e meios utilizados para tanto. Consta que pelo menos oito papas foram assassinados, o último deles Bonifácio 8º cujo papado se deu entre 1294 e 1303. Por outro lado há suspeitas de que treze papas possam ter sido assassinados, embora isso não possa ser confirmado.

Que me perdoem as pessoas de fé, mas me pergunto sobre o significado de serem mantidas ampolas com o sangue de pessoas já mortas - excetuando-se, claro, situações que envolvem pesquisas laboratoriais.

Fico sabendo que foi roubada uma ampola que contém o sangue do papa João Paulo 2º. Foi ela surrupiada, por meliantes, da igreja de San Pietro della Ienca, em L’Aquila, na região italiana dos Abruzos. Consta que o antigo papa tinha muito carinho por essa região da Itália na qual se recolhia para meditar e mesmo esquiar quando mais jovem.

Agora só existem duas ampolas com o sangue de João Paulo 2º e as autoridades não excluem a possibilidade da ampola roubada vir a ser utilizada em ritos satânicos.

Confesso que até esta dada eu não sabia da existência desse tipo de relíquia. Os católicos estão habituados a crucifixos e imagens de santos que adornam igrejas e casas. Minha mãe tinha em casa um pequeno oratório com as imagens dos santos de devoção dela. Rezava-se ali o terço, em geral minha mãe fazia-se acompanhar pelos filhos. Aí de quem em meio à oração se distraísse ou simplesmente não contivesse o riso provocado por alguma lembrança engraçada tão comum na mente aberta das crianças.

Divulga-se que tempos atrás ladrões roubaram uma mochila pertencente a um padre durante uma viagem de trem. Dentro da mochila havia um relicário do qual fazia parte uma ampola com o sangue de João Paulo 2º. Felizmente a mochila foi recuperada poucas horas depois.

João Paulo 2º terá sido um dos papas mais atuantes e populares da igreja. Chefiou-a num período difícil e não foram poucas as conquistas devidas a ele. Simpático e competente ocupou o lugar devido a um chefe da igreja no mundo e uniu os fiéis em torno da fé católica. Sucedeu-o Bento 16 que pouco depois renunciou, cedendo lugar ao atual papa Francisco que dia-a-dia se mostra um ótimo dirigente da igreja.

Não por acaso recentemente João Paulo 2º foi beatificado, primeiro passo para ser conduzido à santidade. De um papa de tal envergadura é de se imaginar o que diria ele sobre seu sangue, relíquia da igreja, circular por aí, dentro de trens e na posse de ladrões.

Calor

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Não gosto de reclamar, mas convenhamos que o calor está demais. Há dois dias vi uma reportagem sobre o calor no Rio. Os banhistas reclamavam de que a temperatura da água do mar estava elevada. Água quente no mar pode? Pessoas entrevistadas diziam que mesmo no verão a água do mar em Copacabana se mantem fria. Agora os banhistas não têm com o que se refrescar, exceto os chuveiros da orla.

Também li que os paulistanos têm do que reclamar. Desde 21 de dezembro as temperaturas na capital oscilam em torno dos 30º C. Durante o dia sol inclemente; tempestades no fim das tardes, enchentes e noites quentes.

O Brasil é país tropical, nascemos aqui, estamos habituados, mas nem tanto. É se proteger com o ar condicionado ou suar, não há meio termo. Dá pena de gente obrigada a usar ternos nessa época. Advogados e outros profissionais sofrem dentro de seus costumes e gravatas.

Mas, o que me leva a mais uma vez reclamar não é bem o fato de que os dias estão muito quentes. O que na verdade me incomoda é assistir ao descaso das pessoas com a água e o lixo. Já começam a se multiplicar os insetos que não nos dão sossego com sua fome de sangue. Pernilongos, mutucas e o sempre temido Aedes aegipti que de uma hora para outra  pode desencadear uma epidemia de dengue.

O fato é que não dá para entender o descaso com águas paradas e lixo acumulado nos quintais de muitas casas. De meu apartamento vejo, com frequência, quintais nos quais não se tem o menor cuidado com a prevenção da proliferação de insetos. E isso apesar das campanhas de conscientização popular que ensinam e advertem sobre o perigo das epidemias de dengue.

Há uns quatro anos um inseto fez-me a gentileza de inocular no meu organismo o vírus da dengue. Desenvolvi todo o quadro clínico da dengue ao qual se acrescentou uma pneumonia. Olhe que fui bem cuidado e superei a doença, mas imagino o que possa ser o destino de pessoas sem recursos. Se as pessoas tivessem noção real do que é estar com dengue e suas consequências talvez cuidassem melhor de vasilhames e pneus velhos nos quais se acumula a água parada.

Janeiro se aproxima do fim e não há previsão e que o calor se atenue. Penso que as autoridades estão um pouco desleixadas em relação à campanha de prevenção da dengue. O assunto do dia-a-dia é o calor. Não há uma só vez em que eu encontre alguém no elevador e essa pessoa não reclame do calor. Será que é assim no polo oposto das temperaturas muito baixas? O hemisfério norte continua vivenciando um de seus piores invernos. Nevascas e temperaturas que atingem 20º graus negativos provocam cancelamentos de voos, acidentes em estradas e difícil circulação nas cidades. Imagino pessoas comentando sobre o rigor do frio. Mas, pensar nisso sob um verão desses soa absurdo.

Os farmacêuticos

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Existem no Brasil 97 mil farmácias. Noticia-se que em metade delas não existem farmacêuticos formados, trabalhando em regime integral. Na maioria das farmácias os farmacêuticos trabalham apenas algumas horas por dia, sendo que em 10% delas nunca está presente um desses profissionais.

Hoje em dia as funções dos farmacêuticos se restringem a conferir às receitas dos médicos, orientar os pacientes sobre o uso de medicamentos e receitar aqueles que não exigem receita médica.

Nasci numa família de farmacêuticos, todos eles formados na antiga Escola de Farmácia de Pindamonhangaba. Essa escola funcionou entre 1913 e 1929 quando foi fechada. Meu pai formou-se numa das turmas da década de 1920 a atuou como farmacêutico durante toda a vida dele.

Quem vai a uma farmácia ou drogaria e vê nas prateleiras centenas de caixinhas de remédios não pode imaginar o que eram as farmácias do passado e a qualificação exigida dos profissionais que nelas trabalhavam. Para que se tenha ideia basta se lembrar de que os antibióticos passaram a ser utilizados apenas depois de 1940, embora Alexander Fleming tenha descoberto a Penicilina em 1929. Até então se socorriam os pacientes com o uso de sulfas.

Atualmente, está em andamento o programa “Mais Médicos”. Consiste em importar profissionais com a missão de trabalhar em regiões onde não há médicos. Se isso está em discussão hoje em dia é de se imaginar a enormidade da falta de médicos no passado, espaço esse tantas vezes ocupado pelos farmacêuticos.

No passado as atividades diárias nas farmácias consistiam no aviamento de fórmulas receitadas por médicos ou indicadas pelos próprios farmacêuticos. Nas farmácias era sempre obrigatória a existência e um laboratório com a vidraria onde se armazenavam os sais e substâncias líquidas de cuja combinação resultavam os medicamentos. Poções, pomadas e toda sorte de medicamentos eram produzidos no laboratório no qual existiam balanças de precisão e vidros graduados para sua elaboração. Um bom farmacêutico era aquele que tinha conhecimento de sua arte e familiaridade com os pós e líquidos que utilizava. Além do que a ele não faltavam conhecimentos sobre diagnostico e tratamento de doenças dado que substituía em sua cidade ou região a ausência de médicos.

Penso que ainda existam farmácias assim neste imenso Brasil. Não me refiro, obviamente, às farmácias de manipulação que existem hoje nas cidades as quais em geral não comercializam medicamentos industrializados.

Meu pai tinha profundo conhecimento de sua profissão. Era preciso em seus diagnósticos e conhecia como ninguém os componentes que possuía em seu laboratório. Tinha fama de curador e pessoas vinham de longe para tratar seus males com ele. Lembro-me de que levava à balança os sais que utilizava apenas para verificar se sua mão continuava boa porque se gabava de nunca errar a quantidade recomendada pela formulação. Ele tinha as fórmulas na cabeça, sabia-as de cor. Muitas delas eram criações suas. Tratava eczemas com pomadas que ele próprio fazia e conseguia resultados realmente milagrosos.

Certa vez perguntei a meu pai se acreditava na existência de algum poder relacionado à cura de doenças. Ele disse que conheceu vida afora inúmeros médicos e farmacêuticos. Achava que algumas pessoas nascem com um dom, espécie de poder natural que permitia a elas sair-se bem nos tratamentos. Citou-me casos de médicos estudiosos, aplicados, mas que não eram bons nem em diagnóstico, nem em tratamento. Outros, porém, pareciam já ter nascido para o ofício fosse lá qual fosse a razão, daí saírem-se muito bem e adquirirem fama. Terminou dizendo que isso, aliás, acontece em todas as profissões, não por acaso alguns profissionais se destacam entre tantos.

Creio que ele, meu pai, tenha sido um desses eleitos tamanha capacidade e precisão revelava em seu ofício de farmacêutico.

Música brasileira

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Um músico profissional me pede para citar cantoras brasileiras “de verdade” em atuação no momento. Sinuca de bico. Disfarço, perguntando a ele o que significa, afinal, ser cantor “de verdade”. Ele sorri e diz: você bem que sabe. Trata-se de gente que não só tem voz, mas é capaz de cantar qualquer coisa. Gente que tem bossa, acrescenta. Termina criticando essas cantoras que, segundo ele, “miam” e não passam disso. Ficam miando uma frase depois da outra. Não são, por exemplo, como a Lenny Andrade, essa sim cantora “de verdade”.

Conheço o músico desde os meus tempos de criança. Na época dos Beatles ele simplesmente enlouqueceu com o som da rapaziada britânica. Lembro-me de que no lançamento do álbum “Help” o meu amigo músico vivia a cantarolar as novas músicas do conjunto. Aliás, a tentar reproduzir na sua guitarra os acordes dos rapazes de Liverpool coisa que muitas vezes provocava alguma reação na vizinhança.

Não sei se o músico tem razão ao dizer que hoje em dia não se encontram cantoras “de verdade”. Recentemente assisti a alguns programas do “The Voice Brasil” e não me senti seguro sobre as promessas de bons cantores. Temo ter ouvido no último programa da série algumas desafinadas dos participantes que poderiam muito bem ser atribuídas ao nervosismo. Mas, eram os finalistas, não?

Talvez por essa razão eu tenha me cansado dos barzinhos. Propagou-se neles a música ao vivo padrão executada por um músico ao violão e uma cantora com temas da bossa-nova. Em muitos desses casos acho que pode se aplicar a crítica do meu amigo músico. A coisa toda soa muito repetitiva e seria preciso muito talento para que se fruísse alguma diferenciação. Serão necessárias doses a mais de alguns drinks para que a música tocada venha a se integrar ao espírito da diversão. Mas, é bom não se esquecer de que não se pode exigir de todo mundo recursos de atuação realmente profissional.

O meu amigo músico é uma grande figura. No meu entendimento ele já habita aquele pórtico no qual a filtragem sobre o que tem ou não qualidade torna-se muito sofisticada. Ouvidos como o dele treinados e auxiliados por cultura musical, dificilmente aceitam o que não é bom. Isso eu disse a ele, colocando-me muitos e muitos degraus abaixo nas possibilidades de avaliação. Foi quando ele terminou a conversa, dizendo:

- É, mas você gosta de boa música e isso é quase tudo.

Pois é, o diabo é o “quase”.

A moça da praia

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Olhe que ela era bonita. Nesse mundo tem gente que nasce com estrela, ainda que para não brilhar muito. É o tal jeito majestático que acompanha alguns desde o nascedouro. A pessoa atrai atenção, simplesmente por ser o que é.

Na moça da praia combinava-se a harmonia dos movimentos com a graça do corpo. Aliás, que se diga: corpo escultural. Desses de causar dor nos mais afoitos. Corpo imantado, esquadrinhado pelos olhares alheios, capaz de despertar sensações espasmódicas. Dirão que exagero: mas, não. Ela era assim, como Deus a fez num momento de pura inspiração, talvez cansado de criar tanta feira decidiu-se Ele a apelar para a regra da compensação.

Bem, não importam os motivos, nem ficar pensando na combinação ousada de genes que se agregaram para formar a moça da praia. O fato é que era ela uma mulher até simples, da simplicidade que não encobre a majestade. E você sabe como é a boca dos homens das quais sempre se ouvia que aquela mulher não era para qualquer um. Ali até um rei se renderia encantado por tanta formosura. Um milionário a cobriria de brilhantes, roupas caríssimas, enfim de tudo que o dinheiro pode dar. Mas, a vida é mesmo uma caixinha de surpresas, fenômeno estranho e inexplicável que resiste a toda lógica. Você não concorda?

Pois, digo que a beleza no fundo é ilógica. Senão a beleza, pelo menos quem a possui. Então, você conhece o Pedro, aquele a quem chamam de Pedrinho? Ele mesmo, aquele cujo pai tem a padaria, ali na esquina, numa ruazinha perto da praia? O Pedrinho, aquele baixinho, meio feioso, bom sujeito, amigão, gente fina, finíssima. Pois não é que a moça da praia viu no Pedrinho um encanto que não vimos e ficou com ele?

De novo a boca dos homens, boca maldita: Pedrinho, aquilo não é mulher para você; Pedrinho é muita areia para o seu caminhãozinho; cuidado Pedrinho, dia desses você pode ter uma surpresa.

O Pedrinho? Qual o quê. Vivia de encantamento. Você já viu aquelas najas encantadas pelo cara que toca flauta? Pois, o Pedrinho ficou que nem as najas. Para ele o céu estava sempre azul, o mar em calmaria. Caso ventasse tratava-se de vento suave, perfumado. No mundo em que ele vivia havia nitidez e lascívia. Espécie de sonho acordado dentro de um jardim mágico do qual ele se fizera prisioneiro.

Assim, passaram-se os meses. Em tanto enlevo se perdeu o Pedrinho que não percebeu que nessa vida o que é bom pode durar pouco e os sonhos não passam de sonhos que acabam de repente quando os olhos se abrem.

Até hoje ninguém sabe dizer que fim levou a moça da praia. A boca dos homens pronunciou-se dizendo que ele se fora com algum ricaço, talvez um príncipe seja lá o que for. Outros disseram que fosse quem fosse o homem com quem ela partira ele seria a próxima vítima. E houve quem aventasse a hipótese de ela fosse uma deusa do mar que viera divertir-se um pouco em terra e logo se cansara.

O Pedrinho? Chorou até seus pés ficarem mergulhados numa lago de lágrimas. Depois do caso com a moça da praia nunca mais foi o mesmo. Eu o vi tempos atrás e o rapaz me pareceu ter envelhecido muito. Cumprimentei-o de longe, ele respondeu com um aceno de cabeça, rosto sério, tristeza estampada.

Não era mulher para ele, não quis ouvir a boca dos homens, deu no que deu.

Ah, ia me esquecendo, há quem até hoje jure que a moça da praia na verdade nunca existiu, ela nada mais foi que uma simples miragem, coisa de imaginação da cabeça dos homens.

Na trilha dos jovens

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Um professor de redação me fala sobre a proposição de temas para os alunos desenvolverem. Ele diz que os professores de redação precisam estar antenados em relação aos acontecimentos. A temática das redações necessariamente deve incluir assuntos que atraiam interesse dos jovens, isso para estimulá-los.

Pergunto ao professor sobre qual seria um tema proposto caso houvesse uma aula nesta semana. Ele responde sem pestanejar: rolézinhos.  Acrescenta que morre de curiosidade para saber o que, afinal, os jovens pensam sobre os encontros marcados em shoppings. Na verdade o que interessa a ele não é a opinião daqueles que participam das reuniões. Lembra que até agora o que se tem é a opinião dos envolvidos e interessados no novo fato social. Mas, pergunta, o que pensa sobre o assunto a imensa massa de jovens que acompanham de longe as notícias e não têm nenhuma propensão para participar ativamente do processo?

Na opinião do professor qualquer possível solução para a questão dos rolézinhos passa pela opinião dos jovens, pois apenas eles têm a saída para a confusão que se armou. Políticos, policiais e sociólogos jogam com as ferramentas que têm, agindo conforme seus credos e possibilidades. Mas, nenhum dos discursos até agora apresentados logrou aproximar-se do cerne do problema. A derivação para as ideias de apartheid, direitos de ir e vir do cidadão e outras não atingem os jovens que aguardam algo que realmente lhes diga respeito.

Digo ao professor que talvez estejamos a fazer crescer um fato novo que, com menos publicidade, já teria se amoldado mais logicamente. À imprensa interessa a notícia o que, aliás, é lógico dado ser esse mesmo o papel dela. Mas, transformaram-se os rolézinhos num mostro maior do que eles são. Há acordos possíveis. Por outro lado me parece absolutamente normal a reação das pessoas que simplesmente não querem cruzar dentro de shoppings com uma massa humana em meio à qual certamente infiltram-se pessoas com outras intenções. Trata-se do medo que temos da violência crescente, a mesma que a cada dia restringe os espaços de nossa circulação. Quem tem coragem de às 10 horas da noite sair de casa e andar até a farmácia que fica a dois quarteirões, isso numa cidade grande? Mesmo quem topa essa parada sabe que, no fundo, está se arriscando.

O professor me pergunta se eu teria coragem de ir com a minha família a um shopping para o qual estivesse marcado um rolézinho. Respondo que obviamente não e ele sorri dizendo que na nossa conversa nem chegamos a falar sobre os prejuízos dos lojistas e os problemas enfrentados pelos funcionários. Os rolézinhos são marcados para os sábados, justamente quando é maior o movimento de consumidores fato que acarreta enormes prejuízos ao comércio.

Pois é, saímos da conversa do jeito que entramos. Mas, os rolézinhos vão passar até porque os jovens são inventivos e logo se cansam de coisas repetitivas. Daqui a pouco surge um fato novo e a moda atrai a juventude para outro tipo de movimento o qual esperamos seja pacífico.

Amores de presidentes

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Haverá como se diz por aí estreita ligação entre o poder e a atração sexual? Mulheres que se apaixonam por homens poderosos gostariam deles caso não fossem importantes?

Essas perguntas parecem ter respostas óbvias, mas nem tanto. Há casos e casos e imagino que alguém já tenha escrito algum livro relatando casos de governantes e suas amantes ao longo do tempo. Entretanto, o que atiça mesmo a curiosidade é a reação do povo quando estoura a notícia de que algum presidente tem uma amante. O fato é que nos países o sexo é visto de forma nem sempre igual e pode acontecer perdoar-se ou não a algum deslize presidencial.

Todo mundo se lembra do episódio envolvendo o presidente Bill Clinton e uma estagiária da Casa Branca. Para a moral norte-americana o comportamento do então presidente era inaceitável. Restava a Clinton renunciar ou afastar-se da amante e pedir desculpas ao país pelos seus momentos de fraqueza. No fim das contas apareceu em público com a mulher, Hilary, desculpou-se diante dela e do país, permanecendo no cargo.

Outro é o modo de ver as coisas na França. Lá não se prega o presidente na cruz caso se descubra que ele tem algum caso extraconjugal. Os franceses são mais tolerantes. O socialista François Mitterrand teve uma filha com uma amante. A mulher de Mitterrand, a amante e todos os filhos compareceram ao enterro dele numa demonstração de civilidade realmente invejável.

Agora quem está na berlinda é o atual presidente francês François Hollande. Uma revista publicou reportagem, revelando a relação entre Hollande e conhecida atriz do cinema francês. O assunto polarizou a opinião pública não só na França como fora dela. Ontem centenas de jornalistas compareceram a uma entrevista do presidente, mas ignoraram o que ele tinha a dizer sobre assuntos econômicos do governo. Queriam saber do caso extraconjugal. Hollande pediu respeito à sua privacidade e disse passar por momento doloroso. O fato é que a companheira de Hollande está internada em hospital desde que vazou a notícia sobre a existência da amante. Mas, como na França as coisas são um pouco diferentes eis que depois da notícia publicada as pesquisas mostraram melhora na aprovação do presidente.

Deixo para os sociólogos a explicação de porque no Brasil assuntos como esse não são levados muito a sério. Getúlio Vargas era casado com Dona Darcy Vargas, primeira dama do país, nem por isso deixou de ter amantes. Virginia Lane foi uma delas. Juscelino Kubistchek teve uma amante e dizem ter enfrentado grandes problemas com sua esposa, Dona Sarah. Conta que por ocasião do acidente que roubou sua vida Juscelino dirigia-se ao Rio para encontrar-se com a amante.

O fato é que no Brasil presidentes tinham e têm modelo a inspirá-los. O primeiro imperador, D. Predo I, foi um garanhão. Só com sua amante, a Marquesa de Santos, o imperador teve cinco filhos. Isso sem falar nos sete filhos que teve com a primeira mulher, um com a segunda e mais um com a irmã da Marquesa. Más línguas atribuem ao imperador apetite sexual incontrolável. O homem era mesmo terrível, confirmam seus biógrafos.

Casos como o acontecido a Bill Clinton não teriam repercussão igual no Brasil. É possível que algumas entidades viessem a público em nome da moral desrespeitada e do mau exemplo dado pela autoridade máxima do país.  Mas, creio que não passaria disso talvez porque esta seja a terra do carnaval.

12 anos de escravidão

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Eis aí um filme denso, pesado. Talvez o filme que mais intensamente tenha abordado a questão da escravidão. Tal o realismo dos fatos, a dureza, que o espectador não tem como não se sentir desconfortável. Não se trata apenas do racismo, da pretensa supremacia da raça branca, da alardeada superioridade da pela branca sobre a pele negra. O que está em jogo é algo além: a posse de um ser um humano por outro, o estranho direito de alguém sobre outro que se torna sua propriedade. O branco que possui o negro tem sobre ele toda sorte de direitos. Pode matá-lo se assim lhe aprouver. Pode esfolá-lo vivo em nome de uma supremacia adquirida não só pelo dinheiro da compra como pelas leis que regem a sociedade. Pode violentar mulheres a seu bel-prazer sem que sobre sua alma pese qualquer culpa. Enfim, o filme versa sobre dominação de um ser humano sobre outro, convertido em seu permanente refém. Para esse refém não existe esperança. Nascido para servir o fará ainda que não restem a ele forças para tanto. Servirá até que a vida escape a ele por entre os dedos. Curvará o seu dorso roído pelas vergastadas ordenadas por um branco qualquer a quem protege o estatuto da dominação. Não importa quem seja esse branco, nem mesmo se dentro dele existe alguma alma. O que importa é seguir a regra que pais passam para filhos porque o mundo é assim e neste mundo irrisório os brancos nasceram superiores aos negros.

“12 anos de escravidão” conta a história de um negro liberto que é sequestrado e convertido em escravo. Enganado por dois homens que o contratam para tocar violino em festas o negro é vendido a traficantes que o comercializam com fazendeiros do sul dos EUA. Inicia-se, assim, todo um processo de despersonalização do negro culto e ótimo violinista que aprende a não falar e negar suas qualidades: é melhor ser mais um que chamar a atenção dos proprietários que mantêm sobre ele todos os direitos. Assim, mesmo o nome do negro livre, Solomon, desaparece. Ele passa a ser Platt, ele nada mais é do Platt, o escravo.

“12 anos de solidão” também é um filme sobre a maldade humana. Para o proprietário de escravos a linha que delimita as ações entre humanitárias e selvagens é tênue.  A posse do escravo gera na alma do proprietário os mais baixos instintos. O homem que domina alcança prazer em seu domínio sob a desculpa de que caso não atue com mão firme os negros poderão se rebelar. O filme mostra isso de forma pungente, riqueza de detalhes, dir-se-ia até com exagero de confirmações. Tal a sequência de malefícios a que são submetidos os escravos que, a certa altura, é lícito ao espectador se perguntar se a intenção do diretor não teria sido a de apresentar prova sobre prova, como a gritar que o ser humano é isso mesmo, que de toda forma é preciso contê-lo.

“12 anos de escravidão” acaba de receber o prêmio de melhor filme do ano na cerimônia do Globo de Ouro. Do diretor Steve MacQueen pode-se dizer que mais que todos os que trataram do tema da escravidão foi aquele que logrou mostrar sem disfarces o mal em toda a sua extensão.  Há que se elogiar a interpretação dos atores. Chiwetel Ejiofor está perfeito como Solomon, o negro livre que é transformado em escravo com o nome de Platt. Muitas boas também as atuações de conhecidos atores como Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch e Brad Pitt, entre outros.