2014 maio at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para maio, 2014

Outono

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Do pinheiro altíssimo caem folhas, por vezes até ramos pequenos que cobrem o solo cimentado. Há 30 anos encontrei um pinheirinho jovem na beira da estrada onde caminhava. Condoí-me dele, da morte prematura que o aguardava ali, na beira do asfalto. Peguei-o com o cuidado com que se segura um recém-nascido e levei-o para casa.

Plantei o pinheirinho e cuidei dele para que o frio do inverno não o matasse. Regava-o com água e cheguei a colocar na terra um pouco de fertilizante numa ocasião em que ele parecia já não ter forças para resistir.

Mas, o pinheirinho sobreviveu. Cresceu, ganhou corpo, engrossando o caule até tornar-se essa árvore majestosa que fica defronte à minha casa. Fez mais: de suas sementes apareceram à meia distância os outros pinheiros que hoje se distribuem numa fila ordenada. Às vezes penso no olhar do primeiro pinheiro - aquele que plantei - sobre os outros, seus filhos. Ele é o chefe da família, ocupa posição de destaque, é maior que os outros. Às vezes me parece que o meu pinheiro é orgulhoso por ter cumprido à perfeição o papel dele na natureza. Nem poderia ser de outro modo em se tratando dele, altaneiro e fortíssimo como se tornou.

Acontece que o meu pinheiro cresceu na encosta de um pequeno morro e suas raízes estenderam-se até a casa. Não terá sido essa a primeira vez em que tive que refazer a calçada arrebentada pela força de raízes dele que se propagam para todo lado. Mas, faço isso com gosto: dá-me alegria saber que o meu pinheiro está forte e continua crescendo, quem sabe um dia ele alcance as nuvens ou toque o céu.

Entretanto, de tempos para cá o meu pinheiro começou a incomodar. Tempos atrás apareceu em casa um fiscal da prefeitura para me dizer que talvez fosse necessário cortar o pinheiro dado o risco de ele cair e arrebentar tudo o que encontrasse pela frente. Um funcionário da companhia de luz também veio para alertar-me sobre os riscos do pinheiros atingir a fiação elétrica e destruí-la. Finalmente, o meu vizinho veio me visitar, inesperadamente, e falou sobre as mudanças ambientais e ventos fortes que antes não chegavam à nossa rua. Com muito jeito perguntou-me se não seria melhor cortar o pinheiro que poderia até cair sobre a minha própria casa.

Eu não disse a nenhuma dessas pessoas que o pinheiro na verdade é um filho a quem amo muito. Cuidei dele na infância e ele tem presenciado os altos e baixos que tenho experimentado ao longo da vida. Ele é não só um amigo, como confidente ao quem revelo os meus mais íntimos segredos nos momentos em que me parece que nenhum ser humano seria bastante para compreender as minhas aflições. Por essa razão resistirei até a morte a todas as tentativas de cortarem o meu pinheiro.

Considero que a vida do meu pinheiro está ligada à minha indissoluvelmente. Faz ele parte do pouco de bom que fiz nesse mundo e quero deixá-lo ali como testemunho da minha passagem por aqui quando morrer. Por isso alegra-me tanto vê-lo a perder suas folhas neste outono, preparando-se para o inverno que está por chegar. Passaremos juntos o inverno e na primavera, ah, como ele se enfeitará e ficará belo, alegrando as minhas manhãs de sol.

Escrito por Ayrton Marcondes

12 maio, 2014 às 11:59 am

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Dia das mães

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Vou comprar corda para fazer varal na lojinha do 1,99, perto de casa. Na volta encontro o João no bar da esquina. Está ele numa das mesas que aos domingos o dono do bar coloca na calçada. Assim que o vejo, decido me sentar ao lado dele para dois minutos de prosa.

Não é que eu tenha intimidade com o João. Eu o conheço há doze anos e topo com ele no prédio onde moro. Mas, nossas conversas nunca passaram do trivial em encontros ocasionais no elevador ou na portaria.

Quando me acomodo o João me pergunta se ainda tenho mãe. Respondo que não. Minha mãe morreu há muito tempo. Sou filho temporão dela. Ela já tinha quase 50 anos de idade quando engravidou daí que conheci minha mãe já velha. Estava dizendo isso quando o João me interrompeu para dizer que também não tem mãe. Perdeu a ela e ao pai já há algum tempo. Diz que o pai era um sujeito forte que fumava cachimbo e tinha boa saúde. O pai dele nunca escovava os dentes: depois de comer passava o dedo molhado nos dentes e estava pronto. O velho nunca fora a médico ou dentista. Tivesse ido não teria morrido de repente, aos 70 anos, tão forte como era. Aliás - diz o João -  fica difícil entender a juventude de hoje. Mesmo com acesso a médicos e hospitais os caras novos são uns fracos. Parece até que eles não têm mesmo saúde. O filho dele, por exemplo, trabalha e estuda, mas parece estar sempre morrendo. O filho reclama muito do trabalho e ele, João, não entende a razão. Imagine se o filho tivesse que levantar como  ele às 5 da manhã e dar duro o dia inteiro. O meu filho tem 19 anos e eu 60 - acrescenta. E pergunta: o que acontece com a geração de hoje?

Não sei o que responder. Passa uma mulher no outro lado da rua e ela e o João trocam acenos e jogam beijinhos. Depois o João me olha e se explica: você sabe que a minha mulher foi embora de casa, ela me largou. Faço que sim, mas eu não sabia. Ficamos assim até que a garçonete traz uma sacola e entrega ao João. É o almoço dele que a cada dia vem buscar no bar.

A caminho de casa me toco que, afinal, esse é o dia das mães. Voltam-me as imagens de minha mãe e sinto saudades. Lembro-me dela quando teve um de seus AVCs e a levei para consulta num renomado neurologista em São Paulo.  A certa altura o neurologista fez uma pergunta cujo sentido ela questionou para responder exatamente o que ele queria saber. Então o neurologista olhou para mim e me disse que raramente tinha oportunidade de atender a uma pessoa tão inteligente quanto a minha mãe. E ela estava, ainda, com o desvio da boca, devido ao AVC, e falava com alguma dificuldade.

Era a minha mãe uma mulher inteligente cuja formação não passara do nível primário. Nascera na primeira década do século 20 e sempre viveu com extrema simplicidade. Lutou muito para mandar os filhos “pra frente” como dizia. Foi uma mulher e tanto.

Não sei dizer se de fato depois dessa vida existe outra, se mesmo há uma eternidade habitada pelos espíritos.  Caso exista algo, caso a minha mãe esteja em algum lugar que transcenda a minha memória, envio a ela um grande beijo neste dia que é todo dela.

Que saudade!

Escrito por Ayrton Marcondes

11 maio, 2014 às 2:24 pm

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O último dia

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Ouço a entrevista que Jair Rodrigues deu à Radio Bandeirantes. Falou sobre a Copa favorita dele: a de 70. Explicou que a Copa de 70 era inesquecível, não só por Pelé, mas por todos aqueles grandes jogadores. Dizia-se que alguns deles não poderiam jogar juntos, mas, no fim, tudo deu certo e foi o que foi. Terminou assim a fala dele.

Jair era um cara bem humorado e assim se mostrou ao ser entrevistado. Morreu na noite do mesmo dia, aos 75 anos. Encontraram-no na manhã seguinte, morto na sauna de sua casa. Deixa saudades. Quem o viu nos festivais da canção ao lado de Elis Regina jamais se esquecerá dele. Uma figura. Grande figura, excelente intérprete da música brasileira. Jair interpretando “Disparada” no Festival da Canção faz parte da memória brasileira. Não há com rever as imagens de Jair no palco e não se emocionar.

A morte de Jair Rodrigues faz pensar nesse dia em que alguém acorda de manhã e não sabe que vai morrer. Essa pessoa provavelmente vai repetir toda a rotina a que está habituado, preparando-se para as atividades do dia que tem pela frente. Perderá um tempo com a higiene matinal, tomará o café da manhã, ouvirá as notícias pelo rádio do carro e assim por diante. Até a chegada da hora marcada, momento de eclipse total no qual, simplesmente, deixará de existir. O modo como tudo se passará é insuspeito. Para cada um reserva-se um fim absolutamente pessoal e intransferível. De repente a realidade se apagará, mas o mundo seguirá em frente mostrando-se indiferente à baixa sofrida. Uns tantos familiares e conhecidos se despedirão, mas a vida continua e logo sombras de esquecimento pesarão sobre o desaparecido. Assim passam as gerações. Homens desaparecem e outros ocupam os seus lugares. É o jogo da vida que, tal como o dia e a noite, alterna-se com a morte.

A partir de certa idade é impossível não se pensar nas circunstâncias do último dia. Como será ele? Quem sabe em meio a uma festa no momento em que estourarem os fogos. Ou durante um instante de gozo e satisfação, desses que tão raramente nos sucedem. Mas, que não seja em meio à doença, representando nada mais que um epílogo ao sofrimento. Nem mesmo aconteça na inesperada situação de um acidente ou de uma bala perdida. Da morte tudo o que se pode pedir é que nos abata com dignidade.

O deixar de ser, de existir, é um enigma tão insolúvel como o de nascer. Mas, se inevitável, que venha ao som de uma grande banda, num dia claro de primavera muito florida, ao sol que nasce numa manhã de beleza incomparável. Que seja alegre para que levemos deste mundo uma última imagem de rara beleza. Que no último segundo, no instante do desenlace fatal os pássaros de todo mundo cantem uma sonata de Beethoven. Depois disso nada mais importará a quem se foi porque essa é a regra da vida.

Como sempre acontece o Jair Rodrigues que falou à Rádio Bandeirantes não podia ter ideia de que pouco tempo depois estaria morto.

Boa viagem Jair.

Malhação de Judas

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Quando criança me assustavam as malhações de Judas. Hábito trazido ao Brasil pelos portugueses e espanhóis os bonecos de pano, cheios de serragem e papel, recebem toda sorte de golpes. Por costume a festa se dá ao meio-dia no Sábado de Aleluia. Judas é punido por ter traído Jesus a quem vendeu por trinta dinheiros.

Na minha infância os bonecos tinham vida, era mesmo possível dialogar-se com eles. Naquele mundo mágico - que infelizmente se desfez com o passar do tempo - os bonecos linchados sofriam e, para mim, as pessoas não ouviam suas lamúrias. Ao contrário, os malhadores despejavam nos pobres bonecos toda a sua ira e violência, rindo e divertindo-se com a dor de um ser irreal, mas que apanhava até ser completamente desmanchado ou mesmo queimado.

Talvez por isso eu tenha me tornado avesso às imagens de execuções públicas. Há quem goste de presenciar momentos trágicos, bastando lembrar da lentidão do trânsito em locais onde ocorreram acidentes. A curiosidade faz com que os motoristas retardem o movimento de seus carros só para dar uma olhadela nos carros batidos ou em corpos estendidos sobre o asfalto.

No tocante a execuções são terríveis as adotadas em certas culturas do oriente nas quais os condenados são abatidos a pedradas. No Irã persiste a condenação à morte por apedrejamento fato que tem suscitado reações e protestos em todo mundo. Talibãs volta e meia apedrejam pessoas por razões várias. Acusações de adultério são imperdoáveis e terminam em execuções.

As imagens da malhação de Judas me voltaram agora que a opinião se mostra revoltada e estarrecida com o linchamento de uma mulher em Guarujá. O caso é absurdo. A publicação na internet de informações sobre uma mulher que sequestra crianças para atos de magia negra desencadeou um movimento de caça à bruxa que terminou com o linchamento de uma inocente. Um grupo de pessoas atacou e matou a golpes, chutes e pauladas uma inocente dona de casa. O acontecimento de todo inaceitável tem despertado toda sorte de análises sobre aspectos comportamentais e a escalada da violência no país. Fala-se sobre o descrédito popular na segurança como motor a impulsionar o povo a fazer justiça com as próprias mãos. Avança-se sobre o caráter animalesco revelado em certos comportamentos que, nos últimos tempos, tem emergido e solapado as noções de civilidade.

Até agora a polícia já identificou e prendeu dois dos linchadores. Um deles disse não saber que a pobre mulher era inocente e se declarou arrependido. Muito, muito pouco para quem cometeu tamanha barbaridade: é ele quem aparece nos vídeos gravados do episódio, dando pauladas na cabeça da inocente.

Desta vez não era um boneco de palha e não se visava punir a alguém que vendeu o Senhor. Era um de nós, uma dessas pessoas que andam nas ruas e que podem ser, a qualquer momento, surpreendidas por agressões mortais.

Salve a seleção

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Eis que depois de tanto falatório está convocada a seleção nacional que disputará a Copa do Mundo dentro das fronteiras brasílicas. Acertou o técnico Felipão na convocação? Ganharemos a Copa? Enterraremos para todo o sempre o fantasma da derrota de 1950 que até hoje assombra a torcida brasileira?

Na verdade nada disso importa. Hoje, ao invés da preocupação com os jogos da Copa, do que mais se fala é dos gastos com ela, das obras inacabadas, dos protestos, da triste figura que o Brasil está fazendo pelo andamento dos preparativos para o tão esperado evento.

Em quase todas as cidades que sediarão a Copa os entornos dos estádios estão por terminar. Na verdade nem mesmo chegarão a ficar prontos. Dentro de alguns estádios operários trabalham dia e noite para terminar as obras, isso a quarenta dias do início da competição. E que dizer dos recurso de transmissão, da telefonia, das vias de acesso aos estádios, etc.?

Não se pode negar que a mídia estrangeira tem caprichado nas críticas. Se alguém esperava que os tais países avançados dariam mole e perderiam a oportunidade de apertar até o fim o pescoço da turma latino-americana certamente essa pessoa vive num outro mundo. Como perder a chance magnífica de falar sobre um povo para o qual tudo tem um jeitinho além do que não é dado a compromissos? Não são aqueles brasileiros que, como se sabe, sempre se atrasam em tudo e deixam para resolver na última hora? Não é aquele país incapaz de manter a segurança no qual o crime organizado comanda as ruas e desafia as autoridades?

Ô gente, dá raiva ver o técnico da Inglaterra mostrar-se em pânico com a insegurança do Rio. Dá ódio ver aquele jornalista inglês que se mandou de Fortaleza porque na cidade sabe-se lá o que se faz de tanto mal às crianças, incluindo-se a prostituição delas. Dá vontade de gritar quando se constata a ingerência dos dirigentes da FIFA, ótimos negociantes que sempre exigem mais. Dá ódio essa permanente cobrança do tal padrão FIFA que a todo momento é confrontado com a miséria existente no país.

Agora, meu caro, se você quer saber do que dá mais raiva mesmo é da classe política que hoje tem o poder do país nas mãos. Esses caras fizeram o diabo para trazer a Copa para o país. Tiveram sete anos para a preparação e deu no que deu: festival de incompetência. Então é preciso dizer que as críticas gerais que hoje recebemos estão atingindo um lote de pessoas erradas: todo o povo brasileiro. Pois as críticas deveriam ter destinos certos, justamente as pessoas responsáveis por tudo o que de errado salta aos olhos.

Essa turma do estrangeiro na verdade deve-nos desculpas. Somos um país de gente que dá duro, trabalha pra valer. O diabo são as pessoas que tomam conta dos negócios do país. E que nos preparemos: depois da Copa virá a Olimpíada que já vem suscitando toda sorte de críticas quando ao andamento dos preparos para os jogos.

Matando a namorada

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Hoje em dia tornou-se comum o namorado/marido matar a namorada/esposa. Basta a mulher não querer continuar com a relação para que o inconformado parceiro parta para a agressão, em alguns casos assassinando-a.

Explicações existem para o fato e muitas. Figura entre elas a tal da posse que o homem cisma ter sobre a mulher. Ela passa a ser um pertence dele, submissa às condições e vontades dele. E dá no que dá. Entre tantos casos destacam-se os de senhoras que têm filhos já crescidos e acabam se envolvendo com homens cujo passado nem sempre conhecem. Alguns desses homens são violentos, isso quando não são devedores de crimes. O resultado de relacionamentos dessa natureza são bastante previsíveis. No fim da história aparecem os filhos chorando, inconformados com os brutais assassinatos de suas mães.

Em matéria de assassinato da mulher chama a atenção o caso do Oscar Pistorius que está sendo julgado. Pistorius é um para-atleta olímpico que abateu a namorada, uma modelo, com quatro tiros. Feito o desastre gritou desesperado clamando pelos vizinhos, relatando ter imaginado a entrada de um estranho na casa dele. Alega, portanto, ter matado a namorada por engano.

Eis aí um caso que dá o que pensar. Consta que Pistorius é amante de armas e chegou a ser treinado por um ator para melhorar a postura para apresentação no tribunal. Há o relato de vizinhos que acorreram ao ouvir os apelos de Pistorius encontrando-o com a mulher morta nos braços e sangue por toda parte. Mas, a Promotoria o acusa de assassinato premeditado.

O rumoroso caso se Oscar Pistorius faz lembrar o do jogador norte-americano O. J. Simpson que foi acusado de matar a facadas a ex-mulher e um amigo. O. J. Simpson foi considerado inocente e ficou livre das acusações. Na época de seu julgamento não se falava de outra coisa nos EUA. O interessante é que depois de ser absolvido Simpson publicou um livro no qual relatou minuciosamente o modo como cometeu os crimes. Valeu-se do fato de uma pessoa não poder ser julgada duas vezes pelo mesmo crime. Mais tarde Simpson se meteu em assaltos à mão armada foi preso, condenado e cumpre pena.

De longe a impressão é a de que a versão do crime apresentada por Oscar Pistorius não chega a ser convincente. Mas cabeças de juízes e jurados são mesmo cabeças de juízes e jurados, havendo até um comentário malicioso sobre esse assunto. Enfim, só quando terminar o julgamento saberemos o que o futuro reserva para Oscar Pistorius. Quem sabe venha a ser absolvido e mais tarde escreva um livrinho, contando a história.

Sentindo-me mal

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Nunca me esqueci de um homem a quem conheci numa CTI de hospital. Estava no balão de oxigênio e apresentava grande dificuldade em respirar. Fumante inveterado atingira aquela fase em que o enfisema ocupara grande parte da área pulmonar, fato irreversível. Tosse e secreções abundantes delineavam um quadro triste e terminal. Quando me aproximei dele tive que apurar a audição para entender o que me dizia. O paciente terminal implorava por um cigarro. Sabia-se no fim da linha que mal faria a ele mais um cigarro?

Um meu conhecido já falecido, também fumante inveterado, certa vez me falou sobre um remorso que vez ou outra o atormentava. O pai dele tivera câncer pulmonar e, já muito doente, implorou ao filho por um cigarro. Não queria morrer o velho sem mais algumas tragadas. O filho atendeu-o, deu-lhe o cigarro que o pai tragou profundamente. Estava o pai a fumar quando parentes entraram no quarto. Imediatamente recriminaram o meu conhecido por atitude tão irresponsável. O pior foi o pai falecer ao final do mesmo dia, morte essa atribuída pela família ao fato de ter fumado estando tão doente.

Ter ou não provocado a imediata morte do pai era o que atormentava ao meu conhecido. Pesava a ele a culpa embora não se arrependesse de ter satisfeito ao último pedido do pai. De nada adiantou dizer a ele que seu pai morreria de qualquer modo tal era o estado em que se encontrava. Mas, cada um tem a sua cabeça e há circunstâncias nas quais os sentimentos pesam mais que a racionalidade.

Meu pai dizia que quando jovens não somos exatamente capazes de avaliar em profundidade o sofrimento. Segundo ele nas pessoas jovens o mal estar passa depressa e logo se torna à situação de equilíbrio do organismo. Excetuam-se, logicamente, as doenças graves que acometem jovens.  Segundo meu pai na velhice os sintomas tomam outra dimensão porque há sempre o temor de que se tornem duradouros. Uma coisa é você passar mal, vomitar, ficar tonto etc. e esses sintomas logo passarem. Outra é saber que amanhã tudo se repetirá porque o mal que progride não permite esperanças de melhoras.

Pensei nisso na noite passada quando não passei bem devido, talvez, à ingestão de algo que não me caiu bem. Imaginei a possibilidade dos sintomas que experimentava se tornarem duradouros. Eis aí, bem estabelecida, uma situação de introdução ao desespero.

Mas, acordei bem. O dia abriu-se bonito, muito sol, manhã clara, claríssima. Tomei o meu café, satisfeito, e agarrei-me à vida como alguém que a todo transe nem sonha com a possibilidade de perdê-la.

Presença de ídolo

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O fato é que Ayrton Senna foi incorporado ao sentimento de nacionalidade. Talvez nenhum outro esportista- quem sabe Pelé - tenha alcançado o nível de identificação do povo como aconteceu com Senna. Hoje o piloto morto em Ímola desfruta da posição de herói. Senna é um herói da raça, um daqueles raros brasileiros aos pés do qual o mundo se curvou.

Ontem, primeiro dia de maio, completaram-se 20 anos do acidente que levou Senna. Os canais de TV falaram dele o tempo todo. Os melhores momentos de suas corridas - e até corridas inteiras - foram reproduzidas. Senna estava no topo do mundo, vencia seus temíveis adversários com a habilidade de quem nasceu para a coisa. Era o expoente da raça em ação, mostrando do que somos capazes.

Ayrton Senna é nome de rua, praça e até rodovia. Ainda assim o culto a ele impressiona. Decorridos 20 anos de seu desaparecimento é como se tudo tivesse ocorrido exatamente na véspera. Adorado e respeitado Senna não é só um ídolo: transformou-se num ícone, quase uma figura imaginária de qualidades ilimitadas. De fato era ele fenomenal dentro das pistas. Capaz de vencer em circunstâncias desfavoráveis, mesmo quando tudo parecia estar contra ele.

O grande prêmio que Senna venceu no Brasil foi uma demonstração de força, coragem, habilidade, raça e não se sabe o que mais. Nas últimas voltas a situação do piloto brasileiro era desesperadora. Em primeiro lugar, mas com o carro em péssimas condições, chegou-se a supor que não venceria. Depois ele contaria que, além dos pneus desgastados, perdera as marchas só ficando com a sexta. Era um problema para ele entrar nas curvas mais lentas sem poder trocar marchas. Segurou o carro no braço. Confessou, depois, que chegou a temer pelo resultado da prova porque não completaria as últimas três voltas à frente dos outros pilotos. Mas, ele era o Senna. Venceu e mal tinha forças para sair do caro. Subiu ao pódio praticamente carregado. Mas desfraldou a bandeira do Brasil. O país estava em paz, o país vencera.

As imagens do acidente que vitimou Senna foram revividas ontem. Há o momento em que o carro dele não faz a curva e bate. O carro roda e para. Senna não se mexe. Não se mexerá mais. Encerra-se o ciclo de ouro de uma carreira brilhante. O país chora. Senna deixa a vida e passa a ser venerado como herói.