Arquivo para setembro, 2014
Os espelhinhos safados
Lá pelos anos 50 do século passado era comum que homens carregassem um pente no bolso. Pente dobrável, naturalmente, enfiado no bolso traseiro da calça, daí sofrer a pressão provocada pelo peso do corpo quando o dono se sentava. De modo que o jeito era testar bem o pente na hora de comprá-lo na farmácia. O balconista trazia o pente e o comprador tentava dobrá-lo, aproximando as pontas. O negócio era fechado quando o pente passava no teste e o feliz comprador, agora proprietário, podia usá-lo para ajeitar o topete. Não custa lembrar de que por esse tempo o uso da brilhantina ainda estava em alta. O sujeito comprava um pote da famosa “Brilhantina Glostora” e “englostorava” o cabelo que ficava bem assentado na cabeça, brilhoso, bem ao gosto do freguês. A boa aparência era finalizada com a barba feita cuidadosamente com uma gilete introduzida num barbeador de metal. Não se fazia ideia de que mais tarde surgiriam no mundo os barbeadores de plástico e mesmo esses elétricos que hoje estão à disposição dos barbados que andam por aí.
Obviamente, pentear os cabelos exigia dar uma olhada neles para ajeitá-los a gosto. De modo que muita gente também trazia no bolso os tão úteis espelhinhos, redondos e pequenos, que também cabiam no bolso da frente na calça ou nalgum outro dos paletós e blusas. Esses espelhinhos tinham outra função entre a molecada que os usavam de modo, digamos, inconveniente. A prática consistia em jogar os espelhinhos no chão, embaixo das saias das meninas. O objetivo era dar uma olhada na parte de baixo do corpo, em geral vendo-se as calcinhas em rápido relance. As meninas odiavam os tais espelhinhos e olhe que alguns moleques eram muito hábeis na prática de jogá-los. Numa época que ver mulher pelada em fotografias era de todo impossível o jogo da sexualidade se processava em lances como esse.
Hoje em dia o sexo é mostrado sem pudor em qualquer lugar. Meninos podem ver mulheres seminuas e mesmo nuas nas bancas de jornal, em filmes da TV e revistas que os pais trazem para casa. Que se saiba ninguém mais anda por aí com espelhinhos no bolso em busca da oportunidade de dar uma olhada nas calcinhas das mulheres. Talvez por isso cause tanta estranheza a notícia sobre esse homem de 51 anos que foi preso em Natal após ser flagrado filmando uma mulher de saia num supermercado. A técnica usada por ele foi muito semelhante à do uso dos espelhinhos: ele colocou uma câmera numa cesta de compras para filmar por baixo do vestido as clientes do supermercado. Ele já havia filmado outras mulheres quando clientes perceberam e chamaram a polícia. Obviamente o homem negou que tivesse filmado as partes íntimas das mulheres, mas seu pen drive e a câmera foram apreendidos e serão periciados pela polícia.
Caso o infrator venha a ser condenado ele poderá pagar multa e pegar até dois meses de prisão. Fica bem barato, portanto, invadir a privacidade alheia com séria ofensa ao pudor.
Melhor não olhar para trás
Não é conselho, nem palpite, trata-se de sugestão: se puder não olhe para trás. Deixe os acontecidos no território do esquecimento. Aí vem alguém e diz: mas, devo me esquecer das coisas boas que me aconteceram, dos momentos felizes, das mulheres que amei, de tudo enfim?
Pois é. O problema é que uma lembrança leva a outra, das felizes passa-se às infelizes e vice-versa. Então por que cutucar a memória, tornar a sofrer pelas perdas antigas, recordar desenganos? Há quem diga que temos mais propensão a curtir aquilo que não deu certo de coisas que se traduziram em realizações. Talvez não seja assim com todo mundo, mas a afirmação não é sem sentido. Agora se você consegue se fixar só nas boas lembranças deixe para lá esse papo careta.
Penso nisso agora que a disputa política se torna cada vez mais acalorada e acusações brotam de todos os lados. De repente a candidata Dilma acusa a candidata Marina de ter o plano, caso vença as eleições, de acabar com o Bolsa Família. A candidata Marina reage, nega e acusa os adversários de mentirem. Para confirmar que não vai dar fim ao Bolsa Família a candidata Marina evoca o seu passado. Ficamos sabendo que na infância a mãe dela dispunha de um único ovo para alimentar os filhos. Passavam fome, portanto. E os jornais publicam fotografias da menina Marina, vivendo em condições paupérrimas ao lado da família. No fim a candidata garante: quem já passou fome nunca vai acabar como Bolsa Família.
Imagino a dor e o constrangimento de trazer a público tais revelações. Imagino o exercício de superação exigido para expor o passado publicamente, tudo em nome da busca de uma vitória eleitoral. Ou não?
Cada um de nós tem em seu passado uma mistura de coisas alegres e tristes às quais nem sempre é recomendável voltar. O que vale, dizem os técnicos de futebol, é bola para frente. Portanto, se conseguir não olhe muito para trás. Há sempre o futuro pela frente, quem sabe um futuro de muitas vitórias e satisfação, quase nenhuma perda ou tristeza.
Sei lá.
Um ano depois
Hoje completa-se um ano desde o dia em que levamos o Vitório ao cemitério. É bom que se diga: aquele foi um enterro e tanto. Considere, leitor, que há enterros e enterros. Aliás, féretros nunca são iguais a começar pelo fato óbvio de que a cada vez enterra-se um morto novinho em folha, pessoa que poucas horas antes andava por aí, melhor dizendo: estava entre nós.
Foi bem esse o caso do Vitório, um sujeito muito surpreendente, tão surpreendente que justamente nos deixou atônitos com sua despedida repentina. Digo isso porque poucas horas antes lá estava ele conosco, na mesa do bar, afogando num copo mágoas recentes, recentíssimas.
Que também se diga: o Vitório era um cara que gostava da mágoa, da dor que a mágoa profunda provoca, da busca de cura da mágoa, do transe de passar de uma mágoa a outra, experimentando, no período entre as duas, momentos desoladores. Há quem seja assim, acredite, e o Vitório pertencia a essa trupe.
Depois que deixamos o Vitório no cemitério fomos ao bar para a despedida solene. O Vitório merecia que nos reuníssemos em derradeira homenagem a ele, não foi preciso combinar nada, o roteiro do novo tempo que se inaugurava sem o velho companheiro só poderia ter início no bar.
No começo ficamos em silêncio, não se achava nada para dizer, o Mauro arriscou um comentário sobre o que se passara no cemitério, mas parou, engolindo as palavras sem completar a frase. Então veio o Ananias com os copos de chope que no primeiro gole pareceram azedos, tanta falta sentíamos do Vitório que era sempre o mais animado da roda. No terceiro chope o Júlio arriscou-se a pedir uma porção de linguiça e no quinto já falávamos sobre tudo, o Jacaré começou com as piadas e, não demorou muito, estávamos como sempre, esquecidos do Vitório agora lá debaixo da terra, gelado, sem direito a um chope, a nada.
De repente faz um ano que o Vitório se foi e vez ou outra falamos sobre ele, cada vez mais raramente o nome do Vitório aparece nas noites em que nos reunimos para o chope, falamos dele como de um amigo que meteu-se numa longa e interminável viagem de trem, o mesmo trem no qual, mais dia, menos dia embarcaremos, deixando vazios nas cadeiras em torno da mesa de chope.
Enfim, a primavera
Não mais que subitamente o inverno bateu asas internando-se no passado e amanheceu o primeiro dia da primavera. Abri a janela do quarto e dei com um dia de sol, mas não vi sinais da nova estação. Onde as flores? Onde a alegria da primavera? Onde a esperança que sempre renasce no dia 23 de setembro? E quanto às crianças que deveriam chegar à escola, trazendo flores para brindar um bom começo de estação às professoras?
Dirão que já não se fazem primaveras como antigamente. Dirão ainda que o mundo tornou-se insosso daí vivermos em permanente inverno - uma amiga me contou que não suportou continuar vivendo na Holanda onde tudo é bom, mas o inverno muito rigoroso - um português, professor universitário em Montreal, certa vez me confidenciou suas saudades de Lisboa, da vida noturna que o frio demasiado impedia existir no Canadá.
- Os dias de inverno não são só frios, são tristes, soturnos, melancólicos e sem luz - escreveu-me um antigo colega de turma que vive na Noruega.
Mundo, mundo, vasto mundo - como cantava o poeta.
Mas, nestes 2014 a primavera chegou silenciosa demais, talvez até temerosa. Você pode não acreditar nisso, mas estações do ano têm sentimentos e na alma delas vaga fina sensibilidade capaz de perceber o vaivém das coisas no mundo. Veja-se, por exemplo, esse prolongado período de seca que já ameaça seriamente a distribuição de água em muitas cidades. Chuvas esparsas no verão, inverno sem precipitações, choverá na primavera?
A resposta: depende. Depende, sim, do que os deuses das flores encontrarem em sua vigília mundo afora. Amigo, acredite: as estações do ano são mágicas. Dentre elas a magia mais apurada pertence à primavera que não por acaso traja-se com vestidos de flores e espalha por aí finos perfumes. Mas, para que isso aconteça, para que a primavera possa vingar em sua plenitude, é preciso que ela encontre harmonia no ambiente. Cada coisa em seu lugar, poluição controlada, lixo reciclado, controle da emissão de gases tóxicos e tudo o mais necessário ao bom andamento da estação.
Dito isso, que não se estranhe o atual acanhamento da primavera. Ela chegou sem rompantes, sem suas cores vívidas, sem o ruído festivo que a acompanhava em outros tempos. Para quem não sabe isso aconteceu porque de anos para cá a primavera vem se mostrando cansada do desrespeito dos homens. Moça gentil que é ela parece não suportar tanta agressividade, tanto destempero, tanta falta de cuidados com os fatores que lhe permitem ser a nossa sempre benvinda primavera.
Mas, o que mais importa é que já estamos em plena primavera, tempo em que é possível sonhar alto e celebrar o início de um período que queremos feliz para os todos os homens.
Sofia Loren
De repente Sofia Loren faz 80 anos e isso parece inacreditável. Como pode a maravilhosa Sofia Loren ter envelhecido? Mas, então, Sofia é de carne e osso como todos nós, os seus fãs de carteirinha?
Sofia Loren é inesquecível em vários de seus muitos papéis no cinema. Na figura de Sofia Loren plasmaram-se a bela mulher com a grande atriz que soube desenvolver as personagens que interpretou com sensibilidade e magia. Verdade que Sofia beneficiou-se de ter trabalhado com grandes diretores, entre eles seu marido Carlo Ponti. Mas que resultados conseguiriam eles se não tivessem à mão uma atriz do porte de Sofia Loren?
Nunca poderei me esquecer do filme “Duas mulheres” no qual Loren interpreta uma mãe que leva a filha adolescente para uma região montanhosa, fugindo de Roma que está sendo bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Durante meses mãe e filha esperam a chegada das tropas aliadas que, entretanto, quando chegam, vêm acompanhadas por uma tragédia: durante o retorno a Roma mãe e filha são estupradas por soldados aliados marroquinos do exército francês. As cenas são pungentes, inesquecíveis. Depois disso a filha sofre um colapso mental.
Sofia Loren recebeu o Oscar de melhor atriz em 1962 pela sua atuação em “Duas mulheres”. Pela primeira vez a Academia de Hollywood premiava uma atriz trabalhando em filme falado em língua estrangeira. Sofia Loren alcançava, aos 28 anos de idade, o status de grande estrela do cinema mundial.
Quando se fala sobre Sofia Loren corre-se o risco de perder-se em divagações sobre os melhores papéis que desempenhou no cinema. Pura bobagem. Sofia sempre foi grande em tudo que fez, mesmo nos filmes mais simples. Que dizer, por exemplo, de suas atuações ao lado de Marcelo Mastroiani ( 12 filmes) que parece ter nascido para formar com ela par no cinema? E a Sofia Loren no tão criticado “A Condessa de Hong Kong” o filme de Charles Chaplin no qual trabalhou ao lado de Marlon Brando? E por aí vai.
Recentemente revi o episódio “A Rifa” que faz parte do filme “Bocaccio 70”. Impossível ao espectador não se deixar seduzir por Loren no papel de uma mulher que permite seja feita uma rifa cujo vencedor ganha o direito de passar algumas horas com ela. O perfil do ganhador que se recusa a vender o prêmio, embora as altas ofertas em dinheiro que lhe são feitas, e o desenlace inesperado do encontro toram “ a Rifa” um episódio divertidíssimo, espelho do machismo do homem de rua italiano.
Mas, o fato é que Sofia Loren faz nesta semana 80 anos. Essa senhora que nos olha detrás de seus óculos nas fotografias é mãe biológica de dois filhos e mãe por adoção de uma legião de fãs espalhados em todo o mundo. Eterna e maravilhosa Sofia Loren faz parte do imaginário do século XX no qual brilhou como estrela de grandeza maior.
Feliz aniversário Sofia Loren. Vida longa para o grande mito.
Bola de gude
Sonhei que jogava bola de gude. Sei que existem várias maneiras de realizar o jogo. O que eu jogava nos meus tempos de menino consistia em percorrer quatro covas, três delas em linha reta e a quarta disposta lateralmente. As quatro covinhas dispunham-se formando um L.
O jogo consistia em fazer um percurso de ida e volta no qual o jogador tinha que acertar a bolinha em cada cova com direito a atacar a bola de seu adversário, jogando-a para longe das covinhas de modo a dificultar o acesso dele a elas.
Passavam-se horas nesse jogo inocente que, entretanto, exigia destreza e muita habilidade. Eu tinha as minhas bolinhas prediletas, no tamanho adequado ao encaixe nos meus dedos. Por vezes a molecada organizava campeonatos e não me lembro de ter vencido nenhum. Mas, não fui tão mau jogador, havia sempre uns “patos”, costumeiros “fregueses” dos quais ganhava sempre. Fosse aquela uma classificação como a do atual Campeonato Brasileiro eu ficaria nomeio da tabela, longe dos extremos.
Não sei se ainda se joga com bolinhas de gude. Talvez sim nos interiores desse imenso Brasil. Hoje em dia a molecada tem ao alcance das mãos computadores e tabletes que oferecem jogos variados. Isso sem falar nos Xbox e outros consoles cujos jogos apaixonam milhares de pessoas em todo o mundo. A cada ano surgem novas e mais apuradas versões de jogos famosos que são produzidos e lançados com estardalhaço. Fiéis seguidores mal podem esperar a hora de adquirir novas versões e atravessar madrugadas tentando passar de uma fase a outra.
O último jogo eletrônico que tentei jogar foi o ATARI. Não me senti atraído pela perfeição das imagens dos jogos atuais, nem mesmo pelas inteligentes armadilhas propostas aos que os enfrentam. Pelo que me sinto um dinossauro quando vejo crianças e adultos entretidos com esses jogos elegantes e misteriosos.
A verdade nua e crua é que sou mesmo do tempo da bolinha de gude. Que prazer experimentei no meu sonho ao jogar contra um adversário habilidoso do qual ganhei a partida.
Dizem que o menino que um dia fomos nunca morre. Ele até pode ser soterrado e esquecido pelo adulto em função da vida agitada que em geral levamos. Mas o menino continua lá, no fundo da memória, ágil e pronto a reviver sensações simples, mas deliciosas, como essa de um jogo de bolinhas de gude.
Ricardo III
O filme Ricardo III, estrelado por Lawrence Olivier, deu o que falar nos anos 50 do século passado. Olivier foi um dos maiores atores do teatro inglês e do cinema mundial. A interpretação de Olivier no papel de Ricardo III é antológica.
O Ricardo III é uma das peças mais longas de William Shakespeare. Nas representações da peça com frequência são suprimidos ora uns, ora outros personagens, mas a trama se repete com as figuras principais, destacando-se, obviamente Ricardo III.
Acontece que o Ricardo III original no qual se baseou Shakespeare foi uma personagem e tanto. Portador de algumas deficiências físicas deixou atrás de si uma história de maldades que de fato cometeu. Sua ascensão ao trono da Inglaterra deu-se através de manobras nas quais não faltaram assassinatos para eliminar descendentes com direito a tornarem-se reis.
Em abril de 1843 era rei da Inglaterra Eduardo IV, irmão de Ricardo. Com a morte do rei seu irmão Ricardo foi nomeado Lorde Protetor de seu sobrinho Eduardo V herdeiro do trono e ainda jovem. Pouco antes de Eduardo V ser coroado Ricardo apresentou provas de que o casamento de Eduardo IV com a rainha era nulo dado ser o rei bígamo. Com isso os filhos do rei morto se tornavam ilegítimos e não poderiam ocupar o trono. Três dias depois Ricardo tornava-se rei com o título de Ricardo III. Quanto aos filhos do irmão sabe-se que eles desapareceram, supondo-se que tenham sido assassinados a mando do novo rei.
Ricardo III reinou durante dois anos a enfrentou rebeliões. Em 1485 foi morto na Batalha de Bosworth Field, sendo o último rei inglês a morrer em batalha dentro da Inglaterra.
Passados mais de cinco séculos do desaparecimento de Ricardo III o rei é lembrado graças à peça de Shakespeare. Ricardo III foi enterrado sem a pompa devida ao rei. Entretanto, em 2012 os restos mortais do monarca inglês foram encontrados durante escavações arqueológicas num lugar onde no passado existia um mosteiro. A certeza de que o esqueleto encontrado era o de Ricardo III foi constatada, entre outras provas, pela comparação de seu DNA mitocondrial com o de descentes de sua irmã.
Agora cientistas britânicos acabam de divulgar detalhes sobre a morte de Ricardo III na Batalha de Bosworth Field na qual pelo menos dois dos ferimentos recebidos por ele foram fatais. O rei estaria no chão e sem capacete quando seus inimigos perfuraram o seu crânio. As feridas coincidem com relatos da época segundo os quais Ricardo estaria num lamaçal e perdera o seu cavalo quando foi cercado pelos inimigos. Na obra de Shakespeare esse momento é coroado por uma frase que ficou famosa: meu reino por um cavalo.
Ricardo III morreu aos 32 anos em 22 de agosto de 1485.
Deus e os homens
Ouvi de Arnaldo Jabor no “Roda Viva” que, para ele não existe essa coisa de Deus lá e homem aqui. Para Jabor o universo é constituído por uma mesma massa, Deus faria parte dele ou seria o próprio universo. Se bem entendi foi isso que Jabor disse.
A pergunta feita a Jabor - você acredita em Deus? – não comporta um simples sim ou não. A coisa funciona do seguinte modo: se “sim”, por que “sim”? se “não”, por que não”? Entre o “sim” o “não” estabelece-se uma enormidade de razões, tão grandes quanto a duração do tempo.
Nunca me esqueço da pergunta feita pelo jornalista Boris Casoy ao então candidato a prefeito de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso: o senhor acredita em Deus? Essa pergunta feita ao vivo e a cores num canal de televisão causou grande embaraço a FHC. Todo mundo sabia que a resposta do candidato seria “não”, mas isso representaria prejuízo eleitoral. Até hoje há quem condene Casoy por fazer pergunta cuja resposta sabia de antemão. No fim, por essas e outras, FHC perdeu a eleição e Jânio Quadros tornou-se prefeito com direito a borrifar detergente para “limpar” a cadeira de prefeito na qual o opositor inadvertidamente havia se sentado.
Tempos atrás assustei-me ao ouvir de uma religiosa já em idade provecta que aproximava-se para ela o momento da morte, portanto de conhecer a verdade sobre a existência do outro mundo. Conclui que de uma pessoa que passara a vida servindo a uma ordem religiosa o mínimo que se poderia esperar era um voto de fé. Para essa mulher a dúvida não deveria existir, não é?
Pois se acontece até com quem fez voto de celibato e assistiu diariamente às missas ao longo da vida, se acontece a quem todo dia reza o terço e se curva diante da imagem do crucificado, que dizer dos mortais comuns que erram nas trilhas desse mundo?
O fato é que chega a ocasião em que nos damos conta de que, queiramos ou não, a morte torna-se palpável. Se você tem mais de 60 anos de idade torna-se óbvio que o tempo disponível à frente não é longo, por mais que insistamos em permanecer por aqui. Nessa circunstância até mesmo aos mais céticos ocorre perguntarem-se sobre como será morrer, a existência de Deus, a vida após a morte e outras indagações do gênero.
Como e quando morrerei? Ao fechar os olhos a minha alma abandonará o corpo e passará a fazer parte de uma esfera espiritual? Haverá de fato uma justiça divina e até a avaliação de meus merecimentos para passar um tempo no purgatório ou ser encaminhado diretamente ao céu ou ao inferno?
Obviamente não existem respostas para essas perguntas. Ninguém que se saiba voltou da morte e os relatos de contatos com os mortos carecem de maior transparência. Na verdade os tempos atuais favorecem mais a descrença que a crença. De modo que se você tem aí na sua cabeça esse problema resolvido, seja lá com for, parabéns. Quanto a mim não há como negar que permaneço em estado crônico de dúvidas não resolvidas.
A água que falta
A verdade é que muita gente só se dá conta da possibilidade de faltar água no dia em que abre a torneira e nenhuma gota cai na pia. A água passa como componente natural da vida diária sobre o qual não se presta a devida atenção. Água é para ser utilizada em diferentes fins e ponto final. De onde ela vem, se reservatórios estão cheios, enfim toda a problemática envolvendo o consumo de água parece não ser assunto da pessoa que abre o registro do chuveiro para o deliciosos e reparador banho de cada dia.
Dirão que nem todo mundo é assim. Verdade. De minha parte confesso que só me dei conta do real valor da água muitos anos atrás quando me internei no sertão da Bahia. Depois de passar por Euclides da Cunha (antiga Cumbe) viajei durante dias pelas ermas estradas do sertão em direção a Canudos. Naqueles lugares água é um luxo que vale ouro. Leitos secos de rios, a caatinga e um sol inclemente a brilhar num céu permanentemente sem nuvens compõem o cenário de uma trágica situação na qual a vida se processa quase sem nenhuma água. Lugarejos nos quais a água é trazida uma vez por semana em caminhões pipas e gente daqueles ermos caminhando longas distâncias para encher seus vasilhames são cenas às quais nossos olhos perdidos em imagens de cidades não estão habituados. Ali a pobreza é extrema, o calor absurdo e a miséria um fardo retratado nas faces de toda gente.
Lembro-me de um lugarejo de não mais que umas trinta casas no qual um menino foi mandado procurar pelo pai e o fez buscando no chão sinais dos pés dele. Acontece que como nunca chove os trajetos das pessoas ficam impressos no chão, sendo possível refazer através das pegadas o caminho percorrido por elas. No mesmo lugar vi uma menina de uns 12 anos, rosto bonito, mas que provavelmente não teria ainda conhecido o banho porque nas condições em que vivia toda água servia apenas para sobrevivência.
Desde a época em que estive no sertão baiano eu me converti num avarento em relação ao consumo de água. Lembro-me bem de que nos primeiros dias, após voltar à casa, eu me sentia mal ao abrir a torneira e deixar o precioso líquido jorrar livremente. Parecia-me aquilo traição a meus semelhantes que viviam em condições tão sub-humanas. Com o tempo quase voltei ao normal. Digo “quase” porque depois daquela experiência sempre faço o possível para economizar água.
É com apreensão que estamos vivendo um prolongado período de seca na região sudeste no país. As poucas chuvas têm resultado no crescente esgotamento de recursos hídricos. Leitos secos de rios e reservatórios com suas capacidades reduzidas ao mínimo têm motivado pedidos das autoridades para que a população economize água. Críticas à imprevidência dos governantes em relação a investimentos no setor de abastecimento de água aparecem diariamente nos meios de comunicação.
Entretanto, faz-se necessária uma campanha maciça que realmente conscientize o universo de consumidores. O momento político que atravessamos no qual se aproximam as eleições infelizmente não parece propício a levar em frente temas que possam resultar em perda de votos. Mas, a crise da falta de água está em andamento. Espera-se que as chuvas tornem a acontecer em ritmo suficiente para regularizar o abastecimento. Enquanto isso não acontece vai-se operando uma política de arranjos, não se excluindo disfarces para não alarmar o povo. Até quando?
O Sassafrás
Ainda hoje me lembro da rua com aquela gente toda num ir e vir sem remédio. As pessoas simplesmente vagavam, sem compromisso, talvez bestificadas. Há pouco acontecera fato incomum: um homem baleara um rapaz que fora surpreendê-lo em ato proibido. Comentava-se que não fora aquela a primeira vez que o rapaz se embrenhara na mata atrás do homem. Por fim recebera o esperado. Ensanguentado, percorrera como pudera o trajeto de volta e caíra na praça defronte a igreja.
A notícia do tiro que atingira o rapaz correra do começo ao fim da rua e tornara do fim ao começo. Noitinha, as pessoas que haviam se recolhido às suas casas reabriram suas portas e voltaram à rua. O trança-trança de gente indo e vindo, tentando recuperar fragmentos de uma história inacabada mantinha aceso o frêmito da desordem que se instalara.
Perto das oito da noite o subdelegado enfim conseguiu que a telefonista completasse a ligação para o delegado da cidade próxima. Não se passara uma hora depois disso e um jipe da polícia, recém-chegado, estacionava na rua de chão de terra.
O primeiro que desceu foi o delegado. Atrás dele veio um homem grande, muito forte e com cara de poucos amigos. Depois se soube o nome dele: era o Sassafrás.
O Sassafrás era conhecido na região pela valentia. Dele dizia-se ser capaz de enfrentar qualquer um, em qualquer situação, no braço ou com qualquer arma. Sassafrás não negava fogo, não conhecia o medo. Fora ele quem buscara aquele terrível Tião, devedor de muitas mortes, procurado em três estados. Surpreendera o Tião numa venda de beira de estrada, tomando um trago com dois capangas. Tião, liso no trato do revólver, viu quando o Sassafrás entrou na venda e buscou pela arma na cintura. Não chegou a apertar o gatilho porque num segundo o Sassafrás estava em cima dele. Os capangas fugiram porque cachorro pequeno não entra em briga de cachorro grande. No fim deu o Sassafrás que amarrou bem o Tião e o levou preso.
Era de ser ver aquele Sassafrás varrendo cada centímetro da rua com seus olhos espertos. Viu um a um dos transeuntes, mediu cada um. No bar da sinuca perguntou por um valentão do lugar de cuja fama tivera notícia. Queria ombrear-se com ele porque não conhecia medo de homem.
Não sei dizer com exatidão como tudo aquilo terminou. Soubemos depois que o valentão do lugar esgueirara-se quando soube que o famoso Sassafrás viera com o delegado. Quanto ao homem que atirou no rapaz aconteceu de ele esconder-se por uns dias até ser encontrado e preso. O rapaz? Ah, ele sobreviveu até a semana passada, cinquenta anos depois daquela noite em que levou o tiro, a mesma noite na qual conheci o terrível Sassafrás e o vi em ação.