Arquivo para novembro, 2014
O tal bolivarianismo
A gente até que tenta ficar à margem das discussões pós-eleições. Encontra-se na mídia jornalista afirmando que não adianta negar pois o país está mesmo rachado ao meio. A presidenta governaria metade, não o país inteiro. Tanto plantaram a divisão que ela acabou acontecendo. Li a palavra “secessão” num dos artigos publicados na “Folha de São Paulo” embora o articulista se apressasse em dizer que não se tratava de guerra.
De repente surge a história do bolivarianismo, perigo de copiar a nossa vizinha Bolívia. Hugo Chávez morreu e Maduro governa um país em maus lençóis. Não há nada a se comparar entre a democracia brasileira e a situação venezuelana. Mas, então, por que se falar em bolivarianismo?
Quem levanta a lebre é o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Ele avisa de que até o final do ano que vem o STF possa vir a ser constituído apenas por ministros nomeados pelos governos petistas. Um STF cordial, favorável ao governo, talvez manipulável segundo os interesses da chefe de Estado?
O diabo é que não há como passar ao largo de uma coisa dessas. Quem está falando em bolivarianismo não é um sujeito qualquer, sentado à mesa de um bar, entre um chope e outro. Quem avisa é um ministro do STF o qual - supõe-se - sabe das coisas. Aliás deve saber do que não sabemos.
Pois é. Não se nega que o momento é propício a exageros. Dá-se valor exagerado a propostas de radicais do PT como essa de controlar a mídia e criar um jornal que espalhe as boas notícias do governo. Fala-se sobre isso como perigo iminente e risco para democracia. Sinceramente, é difícil que o país aceite retrocesso tão grande. Aí sim o tal racha pode acontecer e o povo sair às ruas em manifestações avassaladoras. Ninguém é burro ou tão radical a ponto de cutucar a onça com vara curta.
Mas, o ministro Gilmar Mendes? Não dá para imaginar que ele tenha falado sobre o bolivarianismo só por falar ou para jogar lenha na fogueira?
Um par de sapatos
Em meio a uma exposição de objetos antigos de uma grande cidade norte-americana um par de sapatos. Pretos, denotando prolongado uso, os sapatos foram catalogados como da década de 20 do século passado. Nada se sabe sobre o seu proprietário e dado o desgaste já não é possível conhecer-se sobre o fabricante. É um modelo de couro, reforçado, aparentemente pesado, diferente dos calçados que agora se usam. Com certeza pertenceu a um homem que tinha pés pequenos. De forma alguma esse tipo de sapatos poderia ter pertencido a alguma mulher.
Aqueles sapatos impressionam justamente pela imobilidade de algo produzido para mover-se. Estão ali parados, testemunhando uma época, aparentemente cansados. Pisaram ruas de outro tempo, galgaram escadas de templos, circularam próximos a matas, talvez tenham protegido os pés de um assassino levado ao tribunal. Vagaram céleres no espaço dos anos loucos e estiveram nas ruas ao tempo do crash de 1929. Teriam estado nos pés do homem que se atirou de um prédio quando tudo se revelou perdido para ele?
Por onde andaram esses sapatos? Que ruas percorreram? Acaso pertenceram a um moço que gostava de dançar? Ou àquele guarda-livros baixinho que a cada dia repetia o trajeto entre a casa e a firma e certa ocasião descobriu-se traído pela mulher? Ou talvez tivessem estado nos pés de um senador importante, de um motorista, do jornaleiro da esquina, do ajudante do bar, do porteiro da casa noturna, de um guarda de trânsito, de um policial que prendeu bandidos ao tempo da Lei Seca?
Ao ver esses sapatos é impossível não pensar sobre a força com que resistiram à passagem do tempo. Toda a gente da época deles está morta. O homem que certo dia os adquiriu numa loja de calçados, o que se serviu deles para percorrer seus caminhos, também esse proprietário desconhecido está morto. Desse homem restaram esses sapatos escuros, desgastados, exibidos numa bancada de uma exposição de objetos do passado. São eles o que restou das posses desse homem, derradeiro testemunho de sua existência.
Mas, nem todo mundo que se defronta com o par de sapatos negros pensa assim. Existe sempre aquela senhora para quem só existe o presente e a quem o passado e o futuro simplesmente não interessam. Ela foi a contragosto acompanhar o marido à exposição e, ao ver o velho par de sapatos, só soube perguntar:
- Mas, o que fazem aí esses sapatos velhos e sem nenhuma utilidade?
Finados
De repente descubro que não me agrada ir a cemitérios. Aliás, comecei a me dar conta disso tempos atrás, em Buenos Aires. Sempre achei o cemitério da Recoleta fantástico com suas tumbas grandiosas. Mas, nessa última vez cheguei a percorrer uma das alamedas daquele cemitério e notei que não me sentia bem. Nunca antes a presença da morte se me apresentou tão pungente. Percebi que já não via túmulos, mas esquifes, na verdade os mortos que dentro deles repousavam. Esse contato direto com a morte, a certeza do fim incondicional, o ponto final de todos os sonhos e esperanças pesaram-me demais. Percebi o quanto a minha segurança de estar vivo e pensante era precária e isso me fez abandonar rápidamente o cemitério em desesperada corrida de retorno ao mundo dos vivos ao qual pertenço. Deixei a morte para trás e não me voltei para contemplá-la. Operára-se em meu íntimo uma transformação, a ruptura com a possibilidade de vir a morrer, súbita valorização da vida à qual sempre trato com tanto desdém. Desde então tenho passado ao largo de cemitérios, desviando os olhos dos muros que dividem o mundo em duas partes que não se conciliam. A vida e a morte são antípodas irreconciliáveis.
Hoje, dia dos mortos, não fui ao cemitério. Confesso que não visitar os túmulos da minha gente, não adorná-los com flores, não acender velas, tudo isso deu-me a sensação de livrar-me de um incômodo. Para que ativar a memória em relação a situações que envolveram os agora mortos? Para que lembrar-me de que daqui a algum tempo também eu morrerei e farei parte da legião de dentro dos túmulos, isso se não vier a ser cremado?
Ledo engano. Pois não me livrei dos mortos como inicialmente me parecera. Minha mãe foi a primeira que veio me ver, ela tão magra e saliente, tão lutadora e carinhosa. Falou-me sobre coisas de que me havia esquecido e quase levou-me às lágrimas com tanta ternura. Depois apareceram meu pai e meus irmãos. Pelas dez da manhã chegaram os tios dando-me notícia sobre o atraso de meus avós que em breve chegariam.
Por volta do meio-diap toda a família estava na minha casa, com os assuntos de sempre, alegres, festivos. Eram tantos que muitos não tinham onde se sentar. A essa altura eu já me esquecera de que eles estavam todos mortos, tamanha a vivacidade com que falavam e se locomoviam.
Creio que só no meio da tarde começaram a partir. Abracei-os um a um, pensando que, afinal, vida e morte não têm limites. Quando o último parente se foi me vi só e reparei que passará horas na mesma poltrona, quase sem me mexer, imerso em longa peregrinação através da minha memória. Então chorei, profundamente, pelas perdas do passado, por toda a gente que ficou para trás e nunca mais verei.