Arquivo para dezembro, 2015
Mentira e verdade
É conhecido o caso da mulher que traiu o marido. O tal, apaixonado por ela, dispôs-se a perdoá-la: era mesmo louco pela mulher. Em vão. Passado tempo ela foi viver com o amante. Mais tarde o marido apaixonado acertou-se com outra mulher. Caso encerrado? Não! A traidora tinha vasto círculo de amizades. Precisava explicar-se às amigas porque não queria se passar por uma safada qualquer. Então passou a dar a sua versão da história: fora traída, humilhada por ele. Vivera o inferno do abandono. Suportara a situação por maos i de um ano. Terminada a relação conhecerã o sujeito com o qual agora vivia. Ele a ajudara a reerguer-se. Ainda guardava mágoa do antigo companheiro, mas não desejava a ele o pior. Que fosse feliz, já não se importava.
A mulher que traiu o marido tanto repetiu a sua versão dos fatos que acabou acreditando nela. Apagou a verdade, transformou a mentira em verdade e talvez resistisse a um detector de mentiras caso se submetesse a ele.
Acontece a muita gente. Elege-se uma versão dos fatos, repete-se à exaustão até tomá-la como real. A partir daí nem mesmo o contato com a realidade pode surtir uma reviravolta na inabalável crença de estar-se do lado da verdade.
Os jornais repetem, diariamente, o estranhamento diante das afirmações do ex-presidente Lula de que nunca soube sobre o mensalão e o petrolão. Em nenhum momento de seus oito anos de governo o ex-presidente participou da indicação de nomes de pessoas hoje envolvidas em escândalos. Sua atuação, segundo declara, teria sido apenas a de concordância ou não com as escolhas apresentadas a ele por seus acessores.
Há quem escreva que Lula nem fica vermelho após fazer tais afirmações. Não seria o ex-presidente um desses casos em que a repetição de uma versão falsa transforma-se na convicção de estar dizendo a verdade?
Rumo ao novo ano
Nossa nave avança sem que se possa detê-la. Avança perigosamente. Deixa atrás de si escombros de um ano mal vivido, mal conduzido. Faz lembrar o anjo do quadro de Paul Klee que voa de asas abertas, olhos pregador no futuro, deixando atrás de si uma montanha de escombros à qual não pode retornar. Uma tempestade o empurra à frente no vôo irreversível. O texto de Walter Benjamin ganha atualidade no obituário do ano que termina.
Não há porque olhar para trás. Nous sommes embarqués dans um même bateau - avisou-nos Saint Exupéry. Para onde vai o nosso barco? Ninguém sabe. Ninguém tem resposta para o enigma chamado Brasil. E estamos nele, de algum modo tornamo-nos parte dele.
Há desertores dessa viagem ao desconhecido. Gente que atravessa fronteiras, tentando a sorte noutras plagas. Não sabem: serão vitimados pela saudade. Estrangeiros em outras terras talvez nunca bem-vindos, terão o olhar voltado para o país natal. Buscarão no noticiário informações sobre a terra natal, quem sabe voltarão, agora estrangeiros em seu próprio país.
Mas, eis que nos aproximamos do novo ano! O que nos espera?
Não é fácil ser brasileiro.
Natal
De repente me lembro de um homem a cujos apelos não respondia o demônio da criatividade. Inteligente, proprietário de vasto vocabulário, amigo de dicionários, estudioso das gramáticas, não tinha ele o privilégio da ideia própria, da comunhão do que sabia com a erupção do texto. Por isso vivia a mendigar nas páginas alheias das quais retirava ideias que, a seu modo, modificava e utilizava. Deixou esse homem cadernos e cadernos, manuscritos, elaborados com tremenda ddificuldade, mas sem valor porque carentes de originalidade.
Poi é bem assim que me sinto em relação ao natal, estrangeiro de minhas ideias e palavras. De tal modo a data me surge sem significação que nada me ocorre dizer sobre ela. Talvez me restem do natal apenas o amontoado de lembranças, algo confusas porque emaranhadas num vácuo do qual vez ou outra levantam-se restos de coisas vividas, despojos incompletos cujos fios de interligação me escapam.
De tudo restam-me imagens de meus tempos de menino, seguindo minha mãe para a missa do galo. Ainda posso ver minhas calças curtas e os pés descalços no chão de terra amaciado pela chuva da tarde. Ao menino escapa o significado daquela missa celebrada tão tarde da noite para fiéis apinhados na igreja do lugarejo. Quem éramos nós nos idos dos anos 50, ilhados do mundo num canto qualquer, despossuídos, diligentemente crentes nas promessas da fé?
Do que me lembro é do profundo sono que me impedia de ouvir o sermão, do calor do corpo de minha mãe ao qual me recostei ao adormecer e do susto ao ser acordado por ela ao fim da missa. Passara-se a meia-noite, Jesus nascera enquanto eu dormia, celebrara-se o rito do Natal.
Para mim o natal sempre foi e será uma longa missa do galo na qual adormeci junto de minha mãe enquanto Jesus surgia na manjedoura e mudava o mundo.
A ausência
No entorno o vazio. Só vazio, mudez, solidão. Já não será o caso de abrir uma garrafa de champanhe porque você não virá. Nem mesmo adianta pedir a comida japonesa que você adora porque seu lugar na mesa continuará vazio. Não é possível encontrá-la. Refaço nossos caminhos numa busca que sei impossível, mas da qual não consigo desistir.
Dia e noite persigo você, buscando migalhas de sua passagem. Sua voz ecoa em meus ouvidos, às vezes inesperadamente durante o sono, acordando-me. Então eu me sento na cama e fico no escuro, tateando, como se algum tipo de contato fosse possível. Mas, é em vão. Custo a adormecer de novo, embora não queira dormir porque você virá no sonho e não saberei como me comportar e o que dizer. Entre nós desfez-se a ponte de contatos possíveis e isso é intolerável.
Eu me lembro de você, tanto! Tento recordar as coisas boas, mas sempre me perco no túnel de nossos últimos dias quando já não tínhamos controle sobre nada, tornáramos joguetes das circunstâncias. Então a revejo presa ao leito, lutando, segurando-se a cada momento com fibra incomum. Depois as imagens se confundem. É sempre você, sofrendo e lutando, até o som do telefone que soa de madrugada e me vejo em seu quarto, agarrando-me ao seu corpo sem vida, gritando, exigindo a volta da vida que se foi.
Ah, quanta saudade!
O calor
Há quem ame os dias de altas temperaturas, tardes e noites suarentas. Circular nas ruas sob o sol inclemente faz a delícia de muita gente. Que dizer, então, das praias lotadas onde é preciso ter sorte para arranjar um espacinho onde se doure a pele.
O Brasil é vasto, mais de 8 mi de Km². O nordeste tem sol quase permanente, geografia invejável e seca nos seus interiores. O sudeste fica entre o sul mais frio e o bom tempo nordestino. O litoral de São Paulo equipara-se ao Rio em termos de calor. Santos é quase um Rio com o ar denso, ventos escassos, temperaturas altas e um sol de rachar.
País tropical tem isso de convidar à indolência. Tanto calor que dá preguiça à qual nem sempre se resiste. Mas, ainda bem que hoje em dia certos estereótipos foram deixados de lado. O falado brasileiro preguiçoso, indolente e pouco afeito ao trabalho foi desmentido. Brasileiro trabalha e muito, pena que os governos não façam a parte deles.
O grande crítico José Veríssimo escrevia no início do século 20 sobre a quase impossibilidade de escritores brasileiros se proporem a obras de grande envergadura. O calor do Rio naquela época funcionaria como freio aos projetos do espírito. Quase impossível concentrar-se e criar sob[A1] [A2] um cima daqueles. Pelo visto era o clima o fator que explicaria as diferenças de produtividade entre os mestres europeus e as gentes tupiniquins.
Escrevo porque sai à rua e andei em direção à praia. Topei com faces suadas e expressões de desânimo. À uma da tarde fazia calor de rachar. Enterneceu-me um idoso que colocou na calçada imagens de santos fabricadas por ele. Não eram bem feitas. Uma senhora que passava interessou-se por uma Nossa Senhora. O velho disse o preço e a mulher começou a regatear. Tive pena do velho ali, àquela hora, sob aquele calor, tentando ganhar uns poucos reais em seu minúsculo negócio informal. A certa altura ele me olhou como a perguntar se eu gostaria de comprar uma imagem. Fiz que não e apressei-me em seguir meu caminho.
Era um velho lutando pela vida. As pessoas passavam por ele e suas imagens, indiferentes.
O espírito de natal
A impressão é a de que o “espírito natalino” está em baixa. Era mesmo de se esperar. A verdade é que não existem motivos para comemorações. Com a economia do país na bancarrota o comércio se retrai. A alegria de comprar bons presentes para entes queridos esbarra na falta de dinheiro. Os lojistas fazem o que podem. A previsão de que este venha a ser o pior natal em muitos anos se confirma.
Mas, resta o amor aos entes queridos. Restam os momentos de congraçamento entre membros das famílias que se unem no natal. O “espírito natalino” sobrevive no seio das famílias e só.
Há quem goste do natal e aqueles que odeiem a data. Pesquisa dinamarquesa agora publicada considera que algumas pessoas são mais propensas a gostar do natal. Segundo a pesquisa tudo não passa de maior ou menor aceitação de estímulos em certas áreas do cérebro. Alguns voluntários submetidos a observação de fotos mostram-se mais estimulados que outros ao verem motivos natalinos. Detectou-se maiores estímulos em áreas cerebrais desses voluntários.
A ser assim existe predisposição a gostar ou não do natal. Explica-se, ainda, o ódio que muitos nutrem em relação à data.
Não gosto do natal desde uma infeliz experiência vivenciada quando criança. Era eu o primeiro da fila de crianças à porta de uma casa paroquial onde seriam dados presentes à molecada. Primeiro a entrar fui avisado de que o melhor presente era um carro que poderia dirigir, pedalando. De jeito nenhum concordei com a oferta. Atraiu-me um minúsculo carrinho, inexpressivo, que cabia no bolso da calça. Em vão insistiram comigo sobre o erro da escolha. Não houve acordo. Saí de lá com o carrinho. O segundo da fila não pestanejou em escolher o carro de pedais.
Horas depois quando vi o tal circulando na praça dentro do carro vermelho me arrependi. Odiei-me com todo o ódio de que as crianças são capazes. Mas, era tarde.
Depois disso nunca mais gostei do natal que não chego a odiar. Hoje em dia participo com familiares, mas sem gosto. Na verdade as coisas pioraram. O natal me fez lembrar de pessoas queridas que se foram, gente insubstituível. Neste 2015 tive grande perda que certamente me pesará demais na noite de natal.
As chuvas
O El Nino está mais travesso que nunca. Chove e chove. Temporais. De repente o céu se fecha, nuvens adensam-se e desce o aguaceiro. Inundações, veículos levados pela água. No sul ventanias, casas destelhadas, mortes, desabrigados. O tempo está louco. E o calor chega forte, prometendo piorar. Será um verão daqueles - dizem. Estamos sob as ordens do ditador dos temporais: o El Nino.
Aquelas chuvas da minha infância choviam demais. De madrugada as tempestades, trovões incessantes, raios. Tantos que a noite se tornava clara e dava para ver o gado encolhido no pasto. Mas, não tínhamos trombas d´água. Aliás, por pura sorte porque numa cidade vizinha as nuvens não se faziam de rogadas: aventuram-se baixinho até encostar-se nos morros e abrirem o ventre, descarregando a aguaceira. E vinha aquele tumulto de águas libertas, encostas abaixo, levando tudo o que encontravam em seu caminho. Até chegar às casas que levavam de roldão.
Temíamos as chuvas porque a violência das águas nos metia medo. Chovia semanas inteiras. Nem um só raiozinho de sol para secar o barro da rua defronte a casa. Ficávamos sem energia elétrica. No meio da tempestade vinha o homem da companhia e subia no poste para desligar o transformador. Ainda o vejo na escada em direção ao transformador quase em fogo. Ele enfiava a mão no meio da fumaceira e puxava uma peça cujo nome eu nuca soube. Fazia isso calmamente, em meio às trovoadas e raios. Era um desses heróis desconhecidos.
Tempo atrás, durante uma tempestade, um homem deu com uma rua alagada e teve que mudar seu caminho. Ia por outra via quando seu carro foi atingido por enorme árvore que caiu sem tempo para que pudesse desviar-se dela. Chovia muito. O pesado tronco abateu-se sobre o motorista que morreu na hora. Falou-se em tragédia. Falou-se em acaso. Falou-se em sorte madrasta. Houve quem lembrasse que cada um tem a sua hora e nada se pode fazer. Se a rua não estivesse alagada, se o motorista tivesse escolhido outro caminho, se a árvore caísse segundos antes ou depois, se tanta coisa…
Das chuvas ficam as tristes imagens das gentes que perdem tudo, dos desabrigados, de pessoas entrando nas casas arrebentadas, tentando resgatar algum pertence de valor que não tenha sido destruído.
Aquelas crianças nos ginásios de esporte, ao lado das mães, esperando para saber para onde serão levadas porque perderam tudo.
A tristeza do olhar das crianças.
Fantasmas
Há quem acredite na existência de fantasmas. Para muita gente almas do outro mundo andam por aí, assombrando pessoas. Muita gente tem medo de fantasmas. Confesso que já tive. A casa de minha avó tinha fama de mal assombrada. Dizia-se que ao tempo da escravidão houve escravo que morreu lá depois de sofrimentos. Um desses habitava o “quartinho do meio” onde ninguém gostava de dormir. Consta que o negro escravo costumava, vez ou outra, aparecer por lá.
Mas, o grande problema da casa de minha avó era a sala que, que em tempos normais, servia a reuniões e recepção de convidados. Entretanto, ali também se velavam os mortos da família. De modo que quando a parentada aparecia sempre sobrava para alguém dormir na sala. O medo de que um dos desencarnados resolvesse dar uma passada por lá era real.
Outro dia me peguei pensando se hoje, quando já não acredito em fantasmas, teria medo de passar uma noite sozinho naquela sala. Ainda bem que a casa já não existe, demolida que foi e substituída por um prédio de apartamentos.
Sobre almas do outro mundo há histórias e histórias. Uma delas é a de um conhecido, morador do interior, que rotineiramente ia a São Paulo. Nessas ocasiões hospedava-se em casa de um tio. Numa dessas vezes chegara tarde da noite e entrara na casa. Fora até a cozinha, servira-se de água e, depois, subira pela escada até o quarto. Ao acender a luz topara com um parente dormindo na cama ao lado. Então cumprimentara o parente que lhe respondera com um aceno. Já deitara quando se lembrou de que aquele parente morrera já a alguns anos. Em desespero saíra da casa, descendo atropeladamente pela escada. Passara a noite fora, no jardim, assustado.
Verdade? Segundo quem relatou o caso pura verdade. Mas, será mesmo que almas do outro mundo andam por ai, aterrorizando mortais desprevenidos?
O mistério de Ceres
Não sei se a você o espaço desperta muita curiosidade. Desde menino tenho enorme curiosidade a respeito do que existe fora da Terra, sejam planetas, estrelas, asteroides, cometas etc. Olhar só para o planeta em que vivemos sempre me pareceu algo como perder-se na observação do próprio umbigo. Se a Terra é um nada em relação ao universo que a cerca por que justamente aqui existe vida inteligente? Será mesmo o homem a única expressão de vida inteligente nessa fantástica imensidão?
Pois agora fala-se sobre Ceres. Ceres é um planeta anão que se localiza no cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. É pequeno: de formato arredondado tem diâmetro de 950 Km. É constituído por um núcleo rochoso coberto por camada de gelo. Na sua superfície escura existem crateras e pontos luminosos. Neste ano a sonda Dawn da NASA entrou na órbita de Ceres e passou a enviar fotos.
Agora os cientistas acreditam ter encontrado respostas para as manchas luminosas de Ceres. São lugares onde o impacto de corpos celestes abriram brechas, rompendo a camada de gelo. No momento do impacto o gelo passa do estado sólido para o gasoso e levanta-se uma camada de névoa.
Assim, dizem os cientistas, as manchas luminosas de Ceres são explicadas. Mistério solucionado restam explicações sobre o grande enigma do universo, a começar pelo seu tamanho dado estar sempre em expansão. Por isso fala-se em ‘universo observável” ou seja aquele ao alcance da visão a partir da Terra.
O mais certo talvez seja dizer que o universo é uma área sem fronteiras dentro da qual vivemos num minúsculo ponto que é a Terra. Tamanha pequenez é atordoante.
As más notícias
Todo dia recebem-se notícias nada animadoras. A desesperadora situação do país; 2015 foi ruim, 2016 será pior; o terrorismo avança e há riscos para o Brasil nas próximas Olimpíadas; a crise, sempre a crise; e tudo o mais. Vive-se o momento em que tudo o que aprendemos, os meios de que dispomos para resolver os problemas, as regras de convivência, enfim tudo junto não nos serve para dar conta da confusão geral que nos cerca.
Bem, a pergunta é: existe algo pior que tudo o que está citado no parágrafo anterior? Sim, existe. Existe a má notícia individual, aquela que diz respeito só a alguém, a revelação que atinge apenas determinada pessoa, que diz respeito diretamente só a ela de repente passiva das consequências do que se revela. Trata-se do mal aplicado individualmente, do mal que aflige, subjuga e contra o qual nem sempre se dispõem de forças suficientes para combatê-lo.
A má notícia que se recebe ameaça destruir nossas crenças, afeta o modo de vida ao qual nos habituamos, interrompe a trajetória da felicidade pessoal, impõe-nos a reflexão sobre a precariedade de nossa condição e existência. Obriga-nos a um mergulho interior, exacerbando-se a individualidade do ser acossado que passa a lutar contra o desespero de ter sido ele, justamente ele e não o vizinho ou outro alguém o envolvido no drama surgido pela revelação.
No dia em que se recebe a má notícia de que se está com câncer as questões externas deixam de ter importância. Agora é a pessoa como seu pensamento, com seu corpo no qual células rebeladas se multiplicam e espalham, o homem em sua luta para vencer o mal.
De ontem para hoje pessoa muito querida recebeu a notícia de ter a doença.