2015 dezembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para dezembro, 2015

Barco fantasma

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A cena do filme “Titanic” na qual a câmara mostra partes do convés do navio deterioradas pela ação das águas marinhas é inesquecível.  A sensação da brevidade das coisas e da própria vida é transmitida ao espectador sem mediações. Por aqueles lugares passarm o luxo, a riqueza e a galanteria de pessoas que, em sua maioria, morreram instantes depois nas águas geladas. A perversidade da derrota frente ao inesperado assemelha-se a um ajuste de contas de forças desconhecidas contra a ousadia do homem que ousara construir um transatlântico “inafundável”.

De que os navios e barcos têm vida própria e pensam já nos garantia o poeta francês Arthur Rimbaud em seu poema “O barco ébrio”. Rimbaud nos fala de um barco desgovernado no qual já não se ouve a gritaria dos embarcados. Assim, vagando, liberto de seus rebocadores, seguia em seu glorioso desgoverno, ao sabor das ondas dos rios, errando em direção ao mar.

O barco de Rimbaud não terá sido único na história das naus desgovernadas que percorrem estranhas rotas marinhas com incertos destinos. Nestes mesmos dias têm chegado às costas do Japão barcos fantasmas nos quais não viajam vivalmas. Em alguns são encontrados restos humanos em avançado estado de decomposição; em outros nenhum sinal de marinheiros e pescadores.

De onde vêm os barcos fantasmas que chegam ao Japão? Não se sabe com certeza. Supõe-se que oriundos da Coréia do Norte, embora não existam sinais de suas origens. O mistério encanta.

Barcos ébrios navegando solitários na imensidão dos mares. Naufrágios. O governo da Colômbia anuncia ter encontrado o mítico galeão San José, afundado nas águas próximas a Cartagena quando carregava um tesouro de ouro, prata e esmeraldas para a Espanha. Desaparecido desde o século 18, quando foi afundado pelos ingleses, o San José Abriga o maior tesouro marinho de que se tem notícia, cujo valor é hoje estimado entre 5 e 11 bilhões de dólares.

Enquanto isso as calmas águas que banham nossas praias revoltam-se imperceptivelmente. O mar quer tomar a terra, aproveitando-se da elevação da temperatura ambiente.  Mas, os homens reunidos em Paris não chegam a acordo sobre a emissão de gases estufa.

Como será o mundo daqui a um século?

Tristes dias

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Um país atônico assiste aos lances da queda de braço entre o governo federal e o presidente da Câmara dos Deputados. A troca de acusações nos mais altos redutos políticos do país espanta, incomoda, atordoa. Quem são essas pessoas que parecem jogar cartas, colocando em jogo o destino e milhões de pessoas? Que direito têm elas de colocar seus interesses pessoais acima do interesse comum?

Enquanto isso a depressão se aprofunda. Ninguém tem estímulo - ou coragem - para arriscar-se em investimentos. As recentes classes emergentes retornam às posições originais encerrados os sonhos de consumo. O comércio retrai. Os empregos desaparecem. A pobreza se escancara. Mas, o que mesmo importa aos ocupantes dos mais altos cargos da República é vencer suas disputas, superar as ameaças que pairam sobre suas cabeças.

Tristes dias esses nos quais nada resta para se acreditar. Tristes dias nos quais o descrédito em relação à classe política é quase total. Tristes dias nos quais o gigante adormecido sofre ainda mais pela anestesia imposta aos seus movimentos.

O “Brasil mostra a sua cara” da música está sem face. O mundo nos olha como a um paciente de doença grave determinada pela corrupção e falsidades sem fim.

Tristes dias nos quais nem dá vontade de sair da cama.

Talvez um novo dilúvio?

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Todo mundo sabe que Noé foi competente em relação à missão a ele confiada por Deus. O homem se desdobrou para construir a arca e enfiar dentro dela representantes das espécies vivas que povoavam a Terra. Feito o trabalho, arca lacrada, vieram as prometidas águas que inundaram o planeta. Quando as coisas se acalmaram os seres vivos voltaram a povoar a Terra.

Estão em Paris autoridades em reunião sobre o cima. Ninguém duvida de que todas as nações têm obrigação quanto ao empenho de preservar o ambiente. A situação atual é descrita como desesperadora. Não restam dúvidas de que haverá o aumento da temperatura do planeta com suas inevitáveis consequências.

Enquanto isso o mundo contorce-se em ponta-cabeça. Instala-se a Babel onde cada povo fala língua ininteligível a outros povos. Inexistem acordos perenes. A liberdade é sufocada. Forças malignas brotam a cada dia espalhando terror. Combatem-se inimigos que fazem uso de arma contra a qual quase nada se pode fazer: a própria vida. Quando morrer passa a ser entendido como sacrifício necessário pessoas amarram bombas ao próprio corpo e as detonam, levando consigo vítimas inocentes.

Paris praticamente sitiada pelo terror coloca toda a Europa em estado de atenção. No Brasil uma crise que já parece insolúvel expõe a população a sacrifícios desnecessários. A cada dia notícias sobre corrupção avolumam-se assustadoramente. A dúvida insere-se no cotidiano das famílias que já não sabem em quem acreditar.

De repente o estardalhaço da aceitação do pedido de impeachment da presidenta.  As entranhas do país se revolvem. O governo vem a público para descaracterizar a validade do processo. A oposição regozija-se. O homem comum pergunta-se sobre a nau sem rumo que se tornou o país.

O mundo vai mal. Os homens não se entendem. O mal parece governar as ações. Será tudo isso prenúncio de um novo dilúvio?

Encontro casual

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Só reparei que o homem atrás da mesa tinha aspecto que me era familiar algum tempo depois. Antes, enquanto esperava para ser atendido, o sujeito me pareceu um desses funcionários públicos de comportamento pouco amigável. Era desses caras ciosos de seu dever que pouco se importam com os problemas dos contribuintes a quem atendem.

Eu recebera uma notificação de multa, por isso estava ali. Ao me sentar passei ao atendente os meus dados e, para a minha surpresa, ele me olhou com alguma curiosidade. Depois disse que talvez tivesse me conhecido quando menino pois meu nome não lhe soava estranho. Assim, conversa vai, conversa vem, descobrimos que éramos oriundos da mesma cidadezinha do interior. Mais: o funcionário era filho do falecido Pereira a quem conheci muito bem.

Então ele era filho do Pereira. Coisa estranha encontrá-lo. A primeira coisa que pensei é se ele saberia da história do casamento de seus pais. O Pereira fora um fazendeiro de posses que se apaixonara por uma bonita moça que viera para trabalhar na escola local. A moça era professora o que, naquela época e região, a tornava bom partido: tinha emprego e ganhava bem. Mais que isso, a moça dizia pertencer a família endinheirada da qual seria herdeira. Prato feito para o Pereira que naquela época já passara dos 40 anos de idade.

Para encurtar a história os pombinhos não perderam tempo e se casaram. Amores de parte, bom negócio para ambos. Bom negócio? Não demorou para que a realidade se impusesse ao casal. Na verdade o Pereira omitira sua atual condição financeira. Já não tinha terras e estava quebrado. Quanto á professora, nada de família endinheirada. De modo que outra opção não tiveram que a de levar a vida em frente, enfrentando os percalços.

Desse tempo me lembro bem do Pereira a quem encontrei já morando em outra cidade. Era um homem magro, algo imponente, com a barba sempre por fazer. Trajava um terno surrado mas, mantinha o jeito da antiga realeza de proprietário de fazendas com muitos empregados. Quando cruzei com o Pereira ele já passar dos 60 anos e eu teria uns 20. Ao me ver ele me abraçou, perguntou de meu pai e conversamos animadamente sobre conhecidos comuns. O forte abraço na despedida pareceu-me um tanto exagerado, hoje entendo que se tratava de algum tipo de reconciliação do Pereira com o passado.

No fim das contas, na repartição a que fora tinha, bem à minha frente, o filho daquele louco casal que se metera na dura batalha pela sobrevivência cheio de esperanças que, afinal, foram fraudadas. Obviamente, não tive coragem de perguntar nada ao filho do casal. Através dele apenas soube que seus pais há muito haviam falecido e, só depois disso, tratamos do motivo que me levara até lá.

Na rua, depois de sair, lembrei-me do Pereira e da mulher e na luta deles. A morte que tudo encerra havia levado aquelas pessoas e apagado os sinais que deixaram no mundo. Exceto aquele filho que permanecia, atrás de uma mesa, ele tão parecido com o pai no seu modo de ser e falar.

Escrito por Ayrton Marcondes

2 dezembro, 2015 às 12:57 pm

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