Arquivo para janeiro, 2016
Carnaval
Pois é. Há quem deteste o carnaval. Tempo de licenciosidade dizem pessoas de muita fé. Tempo em que o diabo está à solta - dizia o padre da nossa paróquia na missa de domingo de carnaval. As carolas faziam sim com as cabeças. Os mais velhos concordavam. A moçada disfarçava. Como resistir ao cchamados de Momo? Como não ir ao salão de baile no qual seria possível pelo menos um esbarro na desejada de todas as noites?
Bons tempos. Rolava a lança-perfume que era proibida, mas… E vinha o dono do comércio com aquele lencinho amigo, bem molhado, ofertando imersões de tontura num universo colorido. Eu, rapazote, cheirava aquilo quando dava, perdia o rebolado dentro da névoa em que me metia, e ria, ria muito de um mundo distante que ainda mal conhecia.
Eram outros tempos. Época de bailes nos clubes, de algum respeito, pouca violência, beijos roubados com certa inocência. Tempos de marchinhas que encantavam, como aquela que dizia: joga a chave meu amor… Cantava-se isso, olhava-se de longe para a desejada com a esperança de que ela entendesse o recado. Mas, lá estava ela pulando, tão linda e faceira, bem atrás dela o pai com seu vastíssimo bigode e olhos vigilantes para proteger a cria.
Não sei em que carnaval o Dito deu de mexer com mulher casada e desceram sobre ele o marido, os cunhados, os primos, todo mundo. Foi ele salvo por um policial, o único presente, que prometeu levá-lo para o xilindró e, depois, soltou-o na esquina, mandando que desaparecesse. Dia seguinte o Dito desfiava um rosário de vantagens. Pusera abaixo toda aquela gente, quem manda o cara ter mulher bonita.
O tempo passa, infelizmente. Daquele carnaval resta apenas a memória. O dono de comércio que trazia a lança morreu num acidente. A desejada virou mulher adulta, casou-se com um mal afamado e sofreu o diabo. Pariu cinco filhos e faleceu depois do parto do último. O Dito desapareceu nas terras do Mato Grosso, para onde foi não se sabe porque e dele nunca mais se teve notícias. Sobrei eu para lembrar deles e sonhar com aquele baile e o meu olhar perdido na desejada que nunca tive em meus braços.
Os negros e o Oscar
O caso da entrevista de Sean Penn com o traficante El Chapo está dando o que falar. Penn encontrou-se com El Chapo durante fuga do bandido. O problema é que El Chapo estava sendo procurado em todo o México. Há pouco fugira de presídio numa moto, percorrendo um túnel cavado de 1 km de extensão.
O prêmio Nobel Mário Vargas Lhosa publicou artigo classificando Penn como milionário desinformado, admirador de Fidel Castro e Hugo Chaves, pertencente a uma classe abastada que vive numa sociedade como a dos EUA sem noção do que acontece fora. Penn não levaria em conta a pobreza a que os líderes citados condenaram os povos de seus países, nem as muitas centenas de mortes determinadas por El Chapo.
Agora artistas e diretores negros de cinema avisam que boicotarão o Oscar porque nos dois últimos anos nenhum negro foi indicado para qualquer prêmio. A explicação de que talvez nenhum negro tivesse merecido a indicação parece estar fora de consideração. De nada adiantaram as ponderações de que a presidente da academia do Oscar é negra, nem mesmo a escolha de um negro para apresentar a próxima cerimônia.
Nos EUA a questão racial é mais intensa que entre nós. Isso não quer dizer que por aqui as coisas estejam normalizadas. O preconceito contra o negro continua enraizado em grande parte da população. Recentes agressões via internet a negros de destaque demonstram claramente a extensão do problema.
Meu avô foi dono de fazenda na qual vivia uma família de negros. Os membros dessa família fizeram parte da história da minha família. Nunca houve em relação a eles qualquer manifestação negativa de natureza racial. Moravam com a gente, gostávamos deles e eles de nós. Depois, com o passar do tempo, cada um seguiu seu caminho.
Certa vez, ao meu tempo de estudante em São Paulo, tomei um ônibus no centro da cidades. Numa das paradas de ponto o motorista levantou-se e veio até mim. Era uma negro alto e forte que se apresentou sorridente, perguntando-me sobre o meu nome. Era ele o Eleutério a quem conheci quando menino em casa de meu pai. Abraçamo-nos efusivamente. Pertencia o rapaz à família que morara na fazenda de meu avô.
Não nego que muita gente tenha preconceito de cor e raça em nosso país. Mas negros, japoneses e outras raças fazem parte de nossa nacionalidade. Discriminá-los é absurdo. Os negros trazidos à força ao país durante a escravidão fazem parte de uma mancha irreparável em nossa história.
Quanto à cerimônia do Oscar a se realizar nos próximos dias a ver como se passarão as coisas.
Cemitérios
Há quem passe ao largo deles. Mas, muita gente se demora a perder o vínculo com as pessoas queridas.
Na vida agitada dos dias atuais nem sempre tem-se tempo para reverenciar os mortos. Damo-nos conta disso quando comparecemos a um velório. Então trata-se de contato direto com a morte do qual não se pode fugir.
As circunstâncias do velório são devastadoras. Talvez por isso as pessoas aproveitem-se da oportunidade para reencontrar-se e falar sobre diversos assuntos. As conversas de velórios na verdade representam fuga à realidade da presença da morte. O que se quer é não pensar na própria vez de estar lá, no lugar do morto do dia, dentro do esquife que em pouco será fechado para sempre.
Dentro do caixão, inerte, está o falecido. Olhamos para a pessoa e nos damos conta de que deixou misteriosamente de existir. Lembramo-nos da pessoa viva, de suas lutas, suas falas, seus amores, seus ódios, suas disputas, do amor dela ao que possuía, das bebidas de que gostava, das músicas que ouvia… Mas, para quê? Teria apessoa pensado alguma vez que no fim tudo daria em nada, que da vida nada levaria, que em pouco ela seria passado e dela quase ninguém se lembraria.
Pois é, velórios são devastadores. Eles nos fazem ponderar sobre os nossos limites e o fato de que mais hora, menos hora, chegará a nossa vez. Mas, importa dizer que a vida é mais forte. Saímos do velório compungidos, entramos no carro ainda reflexivos, mas isso não dura.
Na medida que damos as costas à morte a vida nos ocupa com força e de novo estamos em nosso meio, o dos vivos. Então voltamos a experimentar a deliciosa sensação de eternidade, de obstáculos a transpor, de batalhas a serem vencidas.
Não importa que o que passamos a sentir não seja completa verdade. Fora do cemitério a vida é quem manda.
Violência
Tão habituados estamos à violência que tendemos a ignorá-la. Não vai acontecer comigo! Pronto. Mas, os casos de desrespeito à vida sucedem-se em escala alarmante. Mata-se por nada. Menores atiram irresponsavelmente. A vida perdeu valor no mercado. Para marginais ela não tem nenhum valor. Acontece toda hora. O motorista para no sinal de trânsito. É abordado por bandido que toma o seu relógio. O motorista acaba entregando tudo. De repente, sem motivo algum, o marginal atira e mata o motorista. Depois, vai embora, impune. Trata-se da rotina da marginalidade. Agora é parar em outra via e esperar por algum incauto. Roubar e matar. Latrocínio.
Entretanto, há crimes que mexem demais com a gente. A violência estúpida do Estado Islâmico (EI), por exemplo. Os caras matam inocentes porque todo mundo é inimigo do Islã. Semana passada houve uma história por todos os títulos inaceitável. Um rapaz entrou para as fileiras do EI para desespero da mãe dele. Passado um tempo a mãe saiu à procura do rapaz e, quando o encontrou, tentou dissuadi-lo a abandonar tudo e voltar para casa.
Intervalo para respirar.
O rapaz? Bem ele decidiu falar da mãe aos superiores do EI. Logicamente os tais entenderam a mãe como inimiga dado que queria tirar o filho do EI. Sendo inimiga foi sentenciada à morte. O executor encarregado? Ora, o próprio filho.
Foi assim: o rapaz atirou na cabeça de sua mãe, executando-a diante de seus companheiros.
Por hoje basta.
Quem é essa aí, papai?
Mata-se por ciúme, mata-se por amor. Nenhuma lei logra impedir que apaixonados percam a sanidade e tomem atitudes limítrofes. Acontece todo dia. Quem assiste aos programas policiais da TV está careca de ouvir as mais loucas histórias, na maioria das quais o agente da morte em geral é o homem. O sujeito não aguenta a separação. Ela não quer mais saber do cara. Ele se desespera. Então parte para o absurdo, a desconexão entre o normal é o patológico. A nuvem que cobre a sanidade leva-o ao ato extremo. Depois foge ou se entrega. E conta a história com detalhes, quase sempre sem arrependimento: era preciso matá-la.
Deus quando fez o homem plasmou em seu espírito a sensibilidade para a dor. Dor de amor dói. Dor de ciúme dói. Saber que o ser amado é cortejado por alguém é dramático. Ser traído é terrível. Mulheres traídas sofrem e podem chegar a gestos extremos. A dor do amor é horrível. Lacera a alma. O fim de uma relação para quem não o deseja é lacerante.
Ele era dentista e viera para o lugarejo com a mulher e o irmão. A mulher era uma loira escultural, de belos olhos. O irmão um safado que corrompia as moçoilas do lugar. Da casa onde moravam os três contavam-se barbaridades. Dizía-se até que o irmão traia o dentista com a mulher dele. Formavam um trio absurdo, diabólico.
A casa ficava no alto de uma colina. Certo dia mulher desceu com sua mala, atrás dela o dentista. Pedia a ela que não partisse. Ela irredutível. Rosto impassível seguia em direção ao ponto, ele sempre atrás. Quando o ônibus chegou ela não se despediu. Então o dentista se alterou, lágrimás hescorrendo implorou para que ela não fosse embora.
O dentista era um homem alto. Enquanto o ônibus se afastava curvou-se em desespero. Até cair de joelhos, quase encoberto pela poeira levantada pelo ônibus. A imagem desse homem ajoelhado, chorando, sofrendo o horror do amor perdido nunca me saiu da memória.
Amor e ciúme tratam todos os seres humanos do mesmo modo. Ricos e pobres, negros e brancos… Ninguém escapa. Daí a beleza do gesto da cantora Ivete Sangalo que, ao ver do palco onde se apresentava o marido de papo com uma mulher, perguntou: quem é essa aí, papai?
A bela Ivete não deixou pra depois. Não saiu do ritmo, seguiu cantando. Mas, deu o recado.
Verão
Nascido em lugar montanhoso sofro com o calor. Não sou amigo de nevascas, mas esse calor… Morar no litoral tem boas compensações, mas aguentar todo dia 35º com sensação térmica bem acima disso é dureza. Veja-se que nem toda a costa brasileira é assim. O litoral do nordeste é quente, mas dá para se ir vivendo na sombra. No litoral de São Paulo e Rio o ar é denso. Clima abafado, pele húmida, suor escorrendo. E haja ar condicionado.
Mas, como em tudo existem os dois lados da moeda, pensando bem esse aqui não é o pior dos mundos. Outro dia vi filme ambientado nos países nórdicos. Caramba, aquilo era o inverno permanente. Neve para todo lado. Frio de amargar. Todo mundo encapotado, golas levantadas, chapéus, gorros, cachecóis e o que for preciso para combater as rajadas de vento gelado. E isso dura meses. O inverno na Suécia dura de novembro a abril com temperaturas próximas ou inferiores a 0º. Começa a esquentar em maio. Junho e Julho são os meses quentes com máximas em torno de 20º. A partir daí as temperaturas caem, mês a mês. Tem que se possuir brevê de pinguim para viver lá.
Então para nós latinos e litorâneos acredito ser uma temeridade tentar viver num clima tão frio como o da Suécia e outros países. Imagine a Sibéria. Nossa! Pelo que me parece que gente como eu reclama demais.
Certa vez conheci um professor português que dava aulas numa universidade do Canadá. Ele me disse não gostar de viver em Montreal porque a cidade não tem bares nas esquinas. Além do que faz muito frio e as pessoas se recolhem às casas. Nada parecido com Lisboa, cidade bem festiva.
O fato é que não existe lugar no mundo que atenda a todos os gostos e necessidades de um cidadão. Calor demais, frio demais, ventos, furacões, tempestades, raios. Tem de tudo. Mas, entre viver debaixo de uma montanha de roupas num frio do caramba e ficar aqui suando, mil vezes esse nosso clima tropical. Além do que posso reclamar a vontade porque o responsável pelo tempo do mundo simplesmente não me dá nenhuma bola. É assim e pronto.
Apagando vestígios
A moça atrás da mesa é atenciosa. Passa o dia atendendo clientes do banco. A idosa pergunta algo e ela responde devagar, explicando. A idosa não entende. A moça sorri e começa a explicar de novo. Depois de algum tempo, desiste. Levanta-se e leva a idosa em direção ao caixa eletrônico. Fica junto da mulher até que se complete a operação. Depois se despede. A idosa agradece e começa a se dirigir, com passos vacilantes, em direção à porta.
É a minha vez. Estive aqui semana passada para fechar a conta. Há um saldo negativo que devo cobrir, mas não sei o valor. A moça me olha curiosa. Talvez não entenda a minha pressa em fechar uma conta que, afinal, não é minha. Pede que eu espere, consulta o computador e, no fim, emite a guia. Então me recomenda que entre na fila do caixa e pague para depois voltar até ela.
Entro na fila. Na minha frente um senhor que olha insistentemente para a tela, esperando ser a vez dele. Logo ele entra, é a minha vez de esperar. Até que surge o 8, o número do caixa ao qual devo me dirigir.
Depois de pagar retorno à mesa da moça. Ela me vê e sorri. Eu me sento, ela pede o talão de cheques e consulta na tela para ver se todos já foram pagos. Depois liga para alguém, talvez um superior. Diz a ele que está com aquele senhor que já esteve aqui para fechar a conta da cliente que faleceu. A pessoa do telefone manda a moça me fazer algumas perguntas que respondo, prontamente. Sim, estou com os documentos, o atestado de óbito, o inventário, a procuração. Tenho poderes legais para fechar a conta. E já quitei o débito.
Não se demora a que a moça confira o recibo que eu trouxe do caixa. Depois de um tempinho me diz que está tudo bem, a conta está fechada. Deseja-me um bom dia. Agradeço e me levanto, minha vez de ir embora.
Na porta do banco não consigo evitar a sensação de desconsolo. Penso que a falecida fez esse percurso muitas vezes nas suas vindas ao banco. Agora ela também deixou de existir nos números bancários. A conta dela está encerrada.
Saio. Há outros vestígios da morta que preciso apagar até que ela desapareça completamente e só permaneça nas memórias.
Primo Levi
Primo Levi (1919-87), químico e escritor italiano, notabilizou-se por seus livros nos quais descreve a vida de prisioneiros em campos de concentração. De origem judia Levi foi preso e levado a Auschwitz em 1944. Sobreviveu milagrosamente. Dos mais de 600 prisioneiros judeus que faziam parte da turma de Levi selecionada para trabalhar no campo sobreviveram menos de 20.
O primeiro livro de Levi sobre o assunto foi publicado em 1947, mas só anos mais tarde ganhou projeção internacional. Sob o título “É isso um homem?” Levi conduz seus leitores a um mundo inimaginável no qual os prisioneiros enfrentavam toda sorte de horrores. A cerca de arame em torno do campo de prisioneiros separava dois mundos irreconciliáveis. Dentro deixavam de existir e valer todos os valores da cultura humana. Ali arrastavam-se cadáveres vivos, sob o peso de trabalhos forçados, emagrecidos ao limite, sujos, desesperados pela fome e frio, sem horizontes. A regra do jogo era a sobreviver para isso buscando oportunidades de conseguir um pedaço de pão, o fundo de uma tigela de sopa, a internação provisória num posto para doentes, alguma troca vantajosa, roubos e mesmo a raríssima posição numa função de proeminência sobre os demais. Não eram os mais inteligentes e bem formados os que sobreviviam: os mais fortes e destemidos levavam vantagem.
As fotos que ocasionalmente vemos de prisioneiros deitados em suas macas, agrupados dois a dois em cada colchão, esqueléticos, acabados, nos dão a impressão de trabalhos de fotógrafos profissionais que criam obras de ficção. É comum que desviemos o olhar delas porque aqueles seres descarnados não devem fazer parte da civilização à qual pertencemos. De fato não pertenciam ao mundo tal como nós o imaginamos em toda parte. Separados da realidade cotidiana à qual estamos habituados constituíam-se na mais odiosa obra do regime nazista cuja intenção era a de aniquilar moral e intelectualmente suas vítimas. Essa aniquilação conduzia ao desaparecimento de sinais de civilização.
Levi nos pergunta como ficam as noções de bem e mal dentro do tétrico sistema criado pelos nazistas. Nada do que acreditamos ou conhecemos se aplica num espaço no qual cada dia representa um ato de sobrevivência e onde não existe a palavra amanhã. A morte torna-se elemento natural do cotidiano para quem pode, a qualquer momento e aleatoriamente, ser enviado à câmara de gás e crematórios.
A região onde deixa de haver limite entre o bem e o mal gera a noção de “zona cinzenta” na qual em nome da sobrevivência encontram-se até mesmo prisioneiros que colaboram com seus algozes. Cabe a eles a responsabilidade por atividades dos grupos de trabalho, selecionamento de roupas e sapatos, condução de recém chegados à câmara de gás etc. É tudo isso por mais pão, mais sopa ou um canto melhor para dormir.
Ler Primo Levi nos tira da zona de conforto, colocando-nos em contato com o lado mais sombrio da alma humana. Adverte-nos o escritor sobre o que o homem pode ser capaz de engendrar e praticar em seus delírios de dominação. Em “É isso um homem” Primo Levi denuncia as atividades macabras dentro dos campos de concentração sem deixar, entretanto, de acreditar no homem.
Crianças e palavrões
Vi a mãe de criança de cerca de 4 anos repreender o filho que dissera palavra inadequada. Onde ele pode ter aprendido isso? - perguntou a mãe.
Lembrei-me de cena da minha infância. Era costume os homens se reunirem na rua, em torno de fogueiras, no inverno. Falava-se sobre tudo. Histórias de fantasmas, casos de traição, crimes, política local e outros assuntos permeavam as conversas. Com frequência palavrões ecoavam. Gente simples, formação primária, vocabulário rico em regionalismos, o palavrão era parte integrante da linguagem utilizada no dia-a-dia.
Certa ocasião estava na roda um corcunda que, de tempos em tempos, emitia sua opinião sobre os assuntos, gritando: “caraio”. Era o jeito dele dizer, de modo errado, a pronúncia da palavra.
Tanto ouvi o corcunda repetir “caraio” que incorporei a palavra ao meu vocabulário. De modo que no dia seguinte surpreendi minha mãe ao reclamar de algo que ela me mandara fazer, exclamando: “caraio”. Pois até hoje me dói o tapa que recebi, aviso de que não me era permitido fazer uso de palavras esdrúxulas.
Não estou dizendo que a mãe da criança de 4 anos deveria ter batido nela. O que me ocorre é ser comum adultos falarem coisas perto de crianças, não se dando conta de que elas ouvem e muito bem o que se está dizendo. Não seria exagero talvez dizer que os palavrões têm muita força daí serem mais facilmente incorporados. Todo mundo sabe que para certas situações alguns palavrões são insubstituíveis. Certa vez, parado no trânsito da Avenida Paulista, em São Paulo, vi um sujeito descer o carro e dizer cobras e lagartos para quem quisesse ouvir. Acontecera a ela distrair-se por ter presenciado a passagem de mulher exuberante. Tanto se distraiu que bateu o carro no que estava à sua frente. Daí que pôs-se a culpar a beleza da mulher pelo estrago. Naturalmente referiu-se à forma física dela de modo elogioso, mas em termos grosseiros. Foi desses casos nos quais o palavrão faz, obrigatoriamente, parte do discurso.
É comum o fato de pais não se vigiarem em suas conversas perto dos filhos. De resto a criançada aprende as palavras inadequadas não só em casa mas, na escola e em todo lugar por onde passe.
Diário de um anarquista
Missão cumprida! Fodemos eles!
O problema da sociedade é a lentidão. Esses caras aí são devagar. Essa gente engravatada, os milhares que se apertam no transporte público, as mocinhas de coxas roliças, os velhos, os moços: tudo gente devagar. Essa gente dorme sono grande, demora a acordar. Tudo acontece e eles nada. Tipo de gente que aceita, não reclama. Gente de cabeça baixa, pescoço que tem aquela mola de subir e descer, aceitando.
Nós? Esperamos pela oportunidade. Acontece quando por milagre os nunca incomodados se incomodam. Como essa coisa de aumentarem as tarifas dos trens, ônibus, metrô… Bate no bolso, sabe como é. Só tem uma coisa capaz de revoltar o povo: mexer com o bolso. O cara acorda às 5, deixa o filho doente em casa, se mete no subúrbio, chega no emprego em cima da hora, se arrebenta pra ganhar tão pouco, então aumentam as tarifas, a inflação come o salário: hora de reagir.
Tem quem marque a passeata, sei lá quem. É o sinal. Aquela gente se junta e começa a passeata dos corpos em protesto contra sei lá o quê. É a nossa hora. No quente do movimento infiltramo-nos. Somos uns poucos, sem outra ideologia que não a de arrebentar - diga-se. O nosso negócio é bater, arrebentar. No meio daquela gente ninguém se dá conta de que não são só “eles”. Nós ficamos”eles”. Aí é bater, quebrar, agredir.
Certo que tem a polícia. Os caras vêm com gás, bombas de feito moral, bala de borracha. Pedra neles. O grande momento é o da batalha, propriedade privada atacada, sangue escorrendo, porrada pra todo lado. É o que vale.
Você viu na TV o cara estourando o que tinha pela frente?
Pô, era eu.