Arquivo para junho, 2016
A Casa Azul
Mil vezes me perguntei: afinal, o que nos atrai na busca de sinais da passagem pela vida de celebridades da arte e da escrita? Por que tantos homens participam do concurso anual no qual o vencedor é o melhor sósia de Ernest Hemingway?
Então Diego Rivera e Frida Kahlo viveram nesta casa, a Casa Azul. Aqui estão pertences deles, objetos, os pincéis de Rivera imóveis porque a mão do mestre já não os tocará. Olhamos para os pincéis e não nos furtamos a pensar que pertenceram a Ele, parecem permanecer à espera Dele, quem sabe? Mas o que importa é que os pincéis guardam o tato de Rivera, talvez o último, às vésperas de deixar o nosso mundo. Pintaria ainda ele então?
As fotos de Frida. Os dizeres dela transcritos nas paredes, aquele em que confessa que não ouvirão dela sobre o sofrimento de amar um homem como Rivera, alguém já teria ouvido as margens de um rio reclamarem da água que entre elas corre livre?
A cama onde dormia Rivera, o quarto de Frida. E Trotsky que morou na Casa Azul depois de fugir da Rússia sob Stálin? Trotsky? Mas não era ele que na Revolução Russa… O Trotsky Comissário do Povo para a Guerra. Mas, Trotsky morou aqui, dormiu nesta cama. E que importa isso?
Que importa se todos estão mortos e o que deles restou são as obras que nos emocionam? Então por que estou aqui, dentro da Casa Azul na qual viveram? Que vim fazer aqui nesta manhã depois de chata viagem de metrô e andanças por ruas desconhecidas até achar a Calle Londres, 247?
Talvez o que nos obrigue a uma aventura dessas seja a constatação de que os mortos existiram de fato, foram humanos como nós, humanos prodigalizados com dons raros que os diferenciaram. Mas eram de carne e osso como nós e confirmar isso nos faz mais humanos. As fotografias nas paredes os tornam mais próximos. É preciso devassar a intimidade das personagens da Casa Azul para que possamos seguir adiante.
Talvez por isso seja impossível evitar a visita à Casa Azul, perseguindo sombras que a cada momento identificamos.
Vida de torcedor
Sou torcedor, não sei se feliz ou infelizmente. Torço pelo São Paulo fato que se explica: na minha família quase todo mundo torcia pelo tricolor, exceto meu irmão, corintiano, com quem tive brigas terríveis em dias de confronto entre nossos times.
Hoje em dia meu time segue com altos e baixos, mais baixos que altos. Fico preocupado nos dias de jogos. Tento fugir da TV para não sofrer muito. Ligo o aparelho, dou uma olhada para ver como as coisas estão indo, desligo para religar daqui a pouco. Ser torcedor não é escolha, é sina.
Hoje em dia não vou a estádios, mas já fui daqueles que acompanham o time do coração. Vi em ação, nos estádios, jogadores realmente fantásticos. Fui obrigado a me levantar e aplaudir de pé jogada de Pelé justamente contra o tricolor. Cheguei a ver jogando craques como Zizinho, em fim de carreira, vestindo a camisa do São Paulo. Presenciei treinamentos da seleção nacional de 1962 para a qual foram convocados craques fantásticos. O rachas de fim de tarde entre paulistas e cariocas, os paulistas com Pelé, os cariocas com Garrincha - só para ficar em alguns nomes – eram e sempre serão memoráveis.
Sempre entendi, como bom brasileiro, que nosso futebol era e é o melhor do mundo. Nesta terra em que tudo dá, o que sempre deu mais foram artistas da bola, tanto que a cada convocação chorava-se por esse ou aquele craque que ficara fora da lista.
Por tudo isso, confesso não compreender o que se passa, hoje em dia, com futebol do país. Inútil que se elenquem razões para a crise atravessada pelo futebol brasileiro. Não adianta que me digam que o Dunga não é bom treinador, que não há tempo hábil para preparação do time, que jogadores da seleção não têm interesse em defender o pais, que a CBF seja um antro de corrupção. Tudo isso pode ser verdade, ainda assim não se mostra suficiente para explicar os 7X1 da Alemanha, nem a desclassificação na Copa América, participando de uma chave impossível de tão fraca.
Meninos, eu vi. Chorei cântaros tão emocionado estava o ver nossas seleções lutando em campo, cada jogador tendo em mente de que participava de uma guerra. Lembra-se daquele Paulinho Valentim que fez os gols contra o Uruguai num jogo do Campeonato Sul-americano? Lembra-se do Didi pulando sobre um uruguaio na verdadeira briga de rua entre as duas seleções? Pois é, aquilo era o Brasil, aquilo éramos nós.
De modo que, amigos torcedores, torna-se preciso dizer que essa turma toda que hoje comanda, treina e joga pela seleção, não representa de fato o país. Não está no sangue deles a nossa tradição, nem a herança de uma história de que tanto nos orgulhamos.
Há esperança? Talvez. Mas, pelo andar da carruagem o melhor é não se esperar muito.
John Pizzarrelli no Teatro Bradesco
Que tal ouvir “I’ve got you under my skin” interpretada por John Pizzrelli, justamente no “Valentines Day”? It´s Valentines Day gritou Pizzarelli quando passou a cantar músicas românticas para homenagear os namorados. Sua voz em perfeita sintonia ao som da guitarra encanta. Acompanhado por um trio no qual se destaca o pianista Konrad Paszkudzki, Pizzarelli ofereceu excelente noite de entretenimento ao público que quase lotava o Teatro Bradesco.
Pizzarelli está no Brasil para apresentar o show relacionado a seu último disco, “Midnight McCartney”. O artista conta que estava em casa quando recebeu carta de McCartney, sugerindo a gravação de composições posteriores às da época dos Beatles. Pizzarelli gravou-as utilizando o ritmo da Bossa Nova.
John Pizzarrelli já esteve muitas vezes no Brasil e tem fortes ligações com a música do país. Conta que, ainda jovem, ia de carro com o pai quando ouviram, pelo rádio, João Gilberto cantando “Besame Mucho”. Desde então se ligou à música brasileira com a qual mantém estreito contato.
Aliás, em momento emocionante do show, Pizzarelli lembrou que, dois dias antes, João Gilberto acabara de completar 85 anos. Incrível a influência e admiração do músico americano por João Gilberto. Pizzarelli contou sobre a noite em que foi ao Town Hall, em New York, para assistir à apresentação de Gilberto. Impressionou-o a presença de João sozinho, com seu violão, destacando ser no palco do Town Hall, em noite realmente fantástica.
Pizzarelli entreteve o público, passeando por vários ritmos. “Garota de Ipanema” e “Águas de março”, não poderiam faltar em sua apresentação, aliás, referindo-se a “Aguas de Março” como a mais bela canção que já foi escrita.
John Pizzarelli apresenta-se no Brasil talvez no momento em que dispõe do mais completo domínio de sua arte. O artista faz o que quer com sua voz, guitarra e violão. Trata-se de um artista maduro que percorreu longa estrada para situar-se no lugar onde hoje se encontra. Domina com perfeição sua presença no palco e afina-se maravilhosamente com os músicos competentes que o acompanham. Trata-se de um show que vale a pena, incomum, raro momento em que se pode ouvir boa música as qual se sobressaem ritmos jazzísticos integrados a outros que a ele se acoplaram ao logo do tempo.
Manifestações do além
Assisti no NetFlix ao primeiro capítulo da série “River”. River é o nome do detetive que tem o papel principal da série. Trata-se de um homem envelhecido que acaba de perder sua parceira de investigações. No capítulo o expectador é apresentado a uma trama que se desenvolve lentamente, ao ritmo do detetive que a encabeça. Mas, o que realmente atrai em River é o fato de esse detetive viver no limite entre o real e o imaginário. A todo tempo River dialoga com mortos, inclusive com a parceira que foi assassinada.
Obviamente, River não é um homem comum. Tem senso apurado para investigações, é respeitado pela sua folha de serviços. Depois da morte da parceira seus hábitos de falar sozinho parecem avolumar-se. O modo como se comporta faz com que sua chefe o obrigue a sessões psicoterápicas, às quais ele comparece contra sua vontade. Numa dessas sessões a psicóloga pergunta a ele se tem a impressão de falar com os mortos. A resposta do detetive é interessante. River diz não acreditar na existência de nada após a morte. Para ele não existem fantasmas, a morte é o fim de tudo. Daí chamar de “manifestações” a seus contatos com pessoas que já morreram.
Manifestações? Conheci algumas pessoas sujeitas às tais “manifestações”. Nenhuma delas, entretanto, professava a ideia de que a morte é o fim. Para elas a vida após a morte era um fato, tanto que tinham a capacidade de ver pessoas já mortas. Uma senhora conhecida dizia ter trato cotidiano com os mortos. Certa vez almoçávamos quando, subitamente, ela voltou-se para a porta da sala e disse: fulano de tal está aqui. Era assim.
Não é possível saber-se o que se passa nos momentos que antecedem a morte, mas não é de todo incomum que pessoas nessa situação se refiram à presença de conhecidos que já deixaram este mundo. Presenciei mulher aparentada, momentos antes de falecer, referindo-se à presença de tais e tais pessoas que estariam junto dela. A emoção do momento, a despedida iminente, fez com que alguns dos presentes comentassem serem familiares e amigos já mortos que compareciam para acompanhar a moribunda ao outro mudo, ou plano espiritual superior.
A solução do enigma relacionado ao post-mortem infelizmente não é acessível aos encarnados. A promessa de um mundo superior no qual vivem os espíritos serve como estímulo a muita gente, Mas, não existe qualquer tipo de certeza em relação a isso.
Talvez o detetive River tenha alguma razão ao classificar os estranhos fatos que a ele sucedem como “manifestações”. Entretanto, mesmo essa explicação não soa convincente.
A série “River” parece ser instigante.
Negando sempre
Certa ocasião meu pai contratou um sujeito para ajudá-lo em seu pequeno negócio. Era um homem cortês, aplicado, recém-saído do presídio onde ficara por dois anos. O crime que resultara na prisão: roubo. Mas, emendara-se – dizia. Tonara-se crente na prisão, respeitava a Deus e ao próximo. Vida de criminoso nunca mais.
Naquela época não existiam computadores e o movimento diário era lançado num caderno ao fim do dia. Melhor dizendo: lançava-se o “fiado” porque muitos fregueses deixavam para pagar depois o que levavam. O dinheiro que entrava meu pai guardava numa gaveta que permanecia aberta durante o dia e trancada à noite.
Certo dia de maior movimento as idas e vindas à gaveta para fazer troco fizeram com que ela ficasse aberta com notas e moedas expostas. Em dado momento o empregado aproximou-se da gaveta e, naquele momento, surgiu um outro homem à minha frente. Jamais me esquecerei da transformação que se operou na face daquele homem a dar com o dinheiro. Sua face iluminou-se, seus olhos adquiriram súbito brilho, nos lábios plasmou-se estranho sorriso. Revelava-se o ladrão, talvez sua verdadeira natureza.
Lembrei-me desse fato hoje de manhã ao mais uma vez ler nos jornais a incrível sucessão de delações e negativas envolvendo pessoas que militam nas altas cúpulas do país. A cada dia surgem nomes de pessoas consideradas acima de qualquer suspeita acusadas de receberem propinas. Dia após dia a Operação lava jato traz à luz uma inimaginável rede de corrupção que nos leva a perguntar se de fato existem pessoas honestas por aí. Obviamente todos negam. Ninguém sabe de nada, não é comigo, trata-se de mentira, nunca me envolvi nesse tipo de coisa, não conheço as pessoas, a delação é mentirosa e feita para redução de pena, etc.
Há dúzias de casos. Hoje mesmo divulga-se que um dos envolvidos no comércio de propinas está processando um banco do qual roubou-se o equivalente a 7 mi de reais, dinheiro de propina. Esse dinheirão estava guardado num cofre particular do banco. Aconteceu de o banco ser assaltado e os cofres particulares serem roubados. E lá se foi a grana da propina, dinheiro roubado repassado no crime. Agora o banco alega que nada tem a pagar ao dono do cofre porque o dinheiro que lá estava não fora declarado. E o banco já venceu a ação em primeira instância.
Presidentes, ex-presidentes, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, policias, grandes empresários, a lista de acusados nas delações é enorme. Obviamente, todos negam. A regra daqui para frente parece ser: “negando sempre”.
Americanos
Americanos são interessantes - mas nem sempre. Americano é quase sempre um cara treinado a olhar para o próprio umbigo. Ou seja: no mundo só existe a tal “América” que é a terra deles. O resto é o resto. Exagero? Tá bom, obviamente nem todo americano é assim. Mas, o povo de lá conhece seu país e ignora detalhes sobre o exterior. Talvez façam boa ideia do que sejam a França, a Inglaterra, a Rússia e uns outros poucos. Mas, parecem não ter geografia nas escolas. De modo que o Brasil, por exemplo, para muitos continua a ser uma selva, com índios armados de arco e flecha em cada esquina.
Conversei com um americano no dia em que desembarcou aqui. Além de não ter a menor ideia sobre o Brasil confessou que não queria vir de jeito nenhum. Foi obrigado pela mulher a pisar no solo brasileiro. Não fazia ideia da existência de uma cidade como São Paulo, uma das maiores do mundo. Olhou-me desconfiado quando ouviu ser São Paulo maior que New York.
A certa altura o homem quis saber o que eu fazia aqui. Enfim, se morava bem, tinha posses etc. Ia me mandar, deixando-o falando sozinho, mas um amigo me reteve. Respondi qualquer coisa do tipo que não passava fome, não. Insistiu em saber se vivíamos bem no Brasil. Olha… Por fim falou sobre a violência, única coisa que ouvira falar sobre o país. Expliquei a ele que toda grande metrópole tem regiões mais nobres e periferia. São Francisco, por exemplo. Perguntei se ele andaria à noite em ruas da periferia de Frisco. Ele entendeu.
A mídia internacional não fala bem do Brasil. País de corruptos, estupradores, bandidos, terra de epidemias, violência desmedida, insegurança crescente e por aí vai. Um ciclista acaba de desistir da competição nas próximas Olimpíadas por medo da Zica…
Do americano guardei o olhar de espanto diante das boas cosias servidas na festa em que estávamos. Gostou da cerveja, comeu bem, foi bem tratado. Nada de índios.
Muhammad Ali
O mundo acaba de perder Muhammad Ali Ali ou Cassius Clay. Posso me considerar um cara sortudo: vi Pelé jogar - no Pacaembu – e Ali - pela televisão, ao vivo, nos momentos em que lutava.
Gente como Pelé e Ali tornaram-se personagens emblemáticos. Representantes de uma época caracterizaram, no esporte, um modo de ser que encantou milhares de fás em todo o mundo. Ali dizia-se o maior: foi de fato muito grande, impressionantemente grande. Destacou-se não só como notável pugilista: igualou-se a Martin Luther King e Malcolm X na luta contra o racismo branco. A carreira de Ali floresceu nos anos 60 quando aos negros dos EUA eram negados direitos básicos. A recusa de Ali em lutar no Vietnam e a suspensão de seu título de campeão mundial, em 1967, acrescentaram à sua biografia o caráter de alguém além de um grande ícone esportivo.
Falante, desafiador, Ali encantou-nos dentro dos ringues. Inesquecível sua vitória contra Sony Liston, conquistando o título mundial dos pesos pesados. As imagens do Ali saltitante, enlouquecido, gritando para Liston levantar-se e continuar a luta, o mortal ataque que se seguiu, obrigando o juiz a encerrar a luta, geraram a mítica do Ali invencível, “o maior de todos”. E que dizer de suas duas lutas contra Joe Frazier, a primeira delas depois de sua volta aos ringues, em 1971, na qual foi derrotado, deixando-nos boquiabertos diante da TV naquela que foi considerada a “luta do século”? Mas, na segunda luta ali venceria o grande adversário, vingando-se de uma de suas raras derrotas.
De Muhammad Ali Ali guardo memória de sua incrível luta contra George Foreman, então campeão mundial, realizada no Zaire em 1974. Ali já não era o jovem que derrotara Liston, em 1965. Foreman era um monstro de força, imbatível, que arrasara todos os seus adversários. Embora Ali fosse o grande Ali, não se acreditava que pudesse superar Foreman. Lembro-me de estar diante de minha TV de 14 polegadas, assistindo a Ali sentado nas cordas, submetendo-se ao duro castigo infligido por Foreman. Lembro-me, também, de ter dito a quem estava ao meu lado: Ali nunca deveria ter feito essa luta.
Na luta com Foreman o sofrimento durou até o 8º round. Então ressurgiu, nas cordas, o grande Ali, numa sequência formidável de golpes que derrubaram Foreman. Era o nocaute. Mais de onze da noite, corri à janela de meu apartamento e olhei os prédios ao redor. As pessoas saíram às janelas, surpresas. Um homem havia ultrapassado a barreira do impossível. Éramos humanos, capazes de tudo, vencedores. Ali nos deu esse sonho naquela noite.
Ali morre aos 74 anos, após ter passado anos sofrendo com o mal de Parkinson. Deixa saudades não só do notável pugilista, mas de uma época de nossas vidas da qual ele fez parte marcante.
Boa viagem Muhammad Ali Ali.
Perigos do mundo
O mundo é um lugar perigoso. Tudo pode acontecer de repente, inesperadamente. Estar no lugar errado, na hora errada, constitui-se em passaporte para tornar-se vítima do inesperado. O sujeito que anda numa calçada e vê desabar sobre ele parte de uma laje de concreto, roubando-lhe a vida, não é um azarado: foi vítima do acaso e dos perigos do mundo.
Há casos e casos. Não se pode esquecer de que mesmo dentro de casa, no aconchego do lar, é possível que algo terrível nos aconteça. Duvida? Pois veja o caso acontecido dias atrás na Tailândia. Um tailandês, gordinho e feliz, estava sentado no vaso sanitário, calmamente fazendo suas necessidades fisiológicas. De repente, sentiu forte dor em seu pênis. Ocorreu que, dentro do vaso sanitário, havia uma cobra píton de 3 metros de comprimento. Pois a danada da cobra mordeu justamente o pingolim do sujeito. E ficou presa ao pênis até que seu proprietário conseguisse abrir a mandíbula do ofídio. A essa altura, socorrido pelos familiares, o pobre homem pode se levantar enquanto dava-se um jeito de amarrar um saco plástico envolvendo a cabeça da cobra.
O tailandês está em leito hospitalar, recebendo antibióticos. Confessa que na hora do acidente teve a impressão de que teria perdido o pênis. Felizmente, isso não aconteceu.
Embora existam controvérsias a verdade é que o mundo é um lugar muito perigoso.
Gente conhecida
Dias trás o jornalista Salomão Ésper falava, na Rádio bandeirantes, sobre seu tempo de rapazote em Santa Rita do Passa Quatro, sua terra natal. Destacava pessoas como o sapateiro que enchia a boca de tachinhas, o único comunista da cidade e muitas outras em cujo modo de ser havia algo de incomum.
Certa vez um amigo me disse que minha tendência a contar histórias particulares de pessoas com hábitos incomuns se devia ao meu nascimento e juventude em lugarejo no qual existiam personagens muito curiosos. Lembrava-me de que o mundo em que vivi para ele era de todo inacessível. Certamente por isso seus textos seriam mais cosmopolitas.
O Brasil pode ter crescido, mudado bastante nos últimos 50 anos. Entretanto, não creio que nas pequenas cidades as pessoas tenham perdido o jeito de ser incomum que a muitas delas caracteriza. O fato é que nas cidades maiores a pressa do cotidiano, a urgência criada pela necessidade de sobrevivência, o contato midiático com a realidade global e do país, tudo isso colabora para que se perca o olhar sobre o próximo, sobre aquele vizinho que ignoramos, mas têm lá as suas esquisitices.
A fala de Ésper ressuscitou em minha memória outro sapateiro que só atendia aos fregueses quando terminavam as tachinhas que tinha na boca e, então, podia falar, ou o seu Armando que todo dia aplicava uma injeção de veneno numa árvore que queria matar em seu quintal; no velho que era seguido por pássaros; no rapaz que, casado há pouco, fugiu com a mulher do circo a cujas prendas não resistiu; ao apaixonado que largou da linda moça que se casara por descobrir que ela não era virgem e permaneceu solteiro até a morte; ao Chico que andava pela rua perseguido por uma trupe de maus espíritos aos quais xingava o tempo tido; ao velho da telefônica que assinava o Correio da Manhã cujos exemplares recebia com atraso de vários dias; ao padre que exigiu do povo da roça um jipe sob pena de deixar a paróquia caso não fosse atendido; à japonesa que veio de longe para matar-se com inseticida sobre o túmulo dos pais; às tiras de Mutt e Jeff que o velho da telefônica recortava do Correio e me dava para ler; dos caminhões carregados com a carga perecível e parados porque chovia muito e não seria possível descer pela estrada de terra da serra; do policial temido que apareceu certo dia para tirar a limpo diferença que tinha com um local, devedor de mortes; da moça que se casou com quem não amava pelo medo de ficar solteirona; e por aí vai.
O interessante é que nessas comunidades as pessoas eram e são aceitas do jeito como são. Admite-se mais facilmente as diferenças, convive-se com a proximidade da loucura. Existe o perdão porque subtende-se que os seres humanos são imperfeitos e sujeitos às imposições de suas mentes e corpos.
Talvez por isso tanta gente já desaparecida continue viva na minha memória. Eram seres humanos, nada mais que isso, iguais aos outros tantos que encontro e tão bem disfarçam suas idiossincrasias.