Arquivo para maio, 2017
Livros
Então me rendi ao Kindle. Olhe que não foi sem resistência. Amo os livros, o contato com o papel e até a poeira que se junta nas velhas páginas. Existe sensação melhor que rever anotações feitas há anos nas páginas de livros? Não há jeito melhor de nos reencontrarmos com a pessoa que um dia fomos. Aquele parágrafo destacado que causou tanto interesse ao leitor que fomos ontem talvez seja muito revelador sobre a personalidade que assumimos na época da leitura. Livros anotados são confissões não só sobre nossos interesses, mas documentos sobre nossas almas. Por que destaquei essa página que hoje parece nada me dizer? Eu era outro, alguém que desapareceu de mim, alguém que já não sou, mas ainda vive nas páginas de livros que li no passado.
Livros são companheiros inseparáveis. Guardam ideias que nos interessaram e comoveram, conceitos que moldaram nosso modo de pensar e ser. Que prazer circular entre as estantes, vez ou outra destacando delas um livro de que nos havíamos separado a muito. Ou redescobrir um escritor cuja obra nos atraiu. Cada página uma revelação, labirinto de significantes que moldam a atenção do leitor.
Ao longo da vida corre-se sempre o risco de perder-se livros. Isso sem falar no destino a eles reservado após a morte de seus proprietários. Nunca me sai da cabeça a biblioteca de um professor, meu vizinho. Quando morreu a mulher dele apressou-se em colocar os livros na caçada para quem quisesse os levar. Soubesse que a velha na verdade odiava aqueles livros contra os quais competia na atenção do marido. Daí livrar-se dos inimigos que enfrentara vida afora.
Também perdi muitos dos meus. A vida é longa. Muitas mudanças. Numa delas perderam-se os livros. A transportadora bem que se ofereceu para indenizar-me. Mas, como fazê-los entender que o dano era irreparável? Como entender que parte da minha alma se fora com os livros perdidos?
Agora o Kindle. Você faz o download e abarrota o leitor com vários títulos. Leva consigo uma biblioteca que pode acessar a qualquer momento. Pode fazer anotações, marcar parágrafos, enfim…. Muito prático. Mas, não há folhas, poeira, cheiro. O Kindle é insensível, não participa: ele serve. Nele todas as páginas são iguais, mesmo as de livros diferentes, exceto pelo conteúdo. As publicações estão descaracterizadas. Não há capas grossas, sem orelhas. Mundo plano, gráfico, com os livros escondidos atrás da telinha.
Estou me habituando à modernidade, embora ainda resista.
Pena de morte
Desde a execução de Caryl Chessman, em 1960, sempre me senti atraído pelas notícias sobre execução de criminosos. O caso Chessman atraiu a atenção mundial. Ele era um ladrão e violador condenado por uma série de crimes praticados em Los Angeles. Preso, estudou direito e fez a própria defesa, dispensando a ajuda de advogados. Além disso, publicou alguns livros, inclusive um romance. Esses livros percorreram o mundo daí a atenção especial dada ao caso. Muita gente via Chessman com carinho e pena. Outros o odiavam, destacando nele a figura de bandido.
Naquele ano eu cursava a primeira série do ginásio. No dia previsto para a execução de Chessman pairava grande curiosidade sobre o desfecho do caso. Sempre existem pedidos de adiamento de execuções, em algumas situações concedidos já com o condenado na sala de execução. Entretanto, naquele dia o adiamento não foi concedido a Chessman.
Estávamos em sala de aula quando o diretor da escola assumiu à porta com ar de gravidade. Inesquecível a imagem daquele homem, ainda moço, e de sua voz potente, comunicando-nos que minutos antes Chessman fora executado. Éramos crianças de 12 anos de idade e o sentido geral daquilo certamente nos escapava. Mas, ficaram as impressões sobre o caso que tanta comoção provocou mundo afora.
Nos casos de condenações à pena de morte sempre nos intrigam aqueles nos quais o condenado nega até o último instante sua culpa no crime que lhe é imputado. Existem casos nos quais mais tarde se descobriu que um inocente fora executado. Ontem, nos EUA, um homem foi executado, embora negasse até o fim ter cometido crime pelo qual fora acusado. Teria ele matado o marido de sua amante para dividir com ela o prêmio do seguro que ela receberia. Acontece que o caso se prolongou demais, ficando o condenado muito tempo no corredor da morte. Esse fato despertou reações por se entender que houvera tortura mental do preso. De fato, numa das vezes estava ele já na sala de execução quando houve mais um adiamento. Mas, ontem, finalmente, realizou-se a execução através de uma injeção letal.
Hoje em dia vigora em nosso país situação caótica na qual a bandidagem está fora de controle, embora esforços do corpo policial. Assassinatos, assaltos, revoltas em presídios e toda sorte de crimes e acidentes ocupam a maior parte do noticiário. Publica-se que no Brasil o número de mortes violentas iguala-se ao de algumas guerras que acontecem ao redor do mundo.
Diante de quadro tão desolador com alguma frequência o assunto pena de morte é lembrado como possível solução para a redução da criminalidade. Como não poderia deixar de ser o assunto empolga, havendo pessoas favoráveis e contrárias à adoção da pena. Especialistas indicam que nos EUA a pena de morte de modo algum influi na redução da criminalidade. Os favoráveis à adoção da pena dizem o contrário. De modo que ficamos mais ou menos na base de palpites que a nada levam. Entretanto, dá para se dizer que antes da adoção da pena de morte no país existem muitas medidas a serem tomadas, medias essas que trariam bons resultados no setor de segurança pública.
O nó górdio
Relata-se que após a morte do Rei da Frígia o trono ficou vago por não existirem herdeiros. Consultado o Oráculo declarou que o próximo rei seria um homem que chegaria numa carroça. Foi assim que um camponês, de nome Górdio, veio a assumir o trono. Para não esquecer sua origem humilde Górdio amarrou a carroça numa coluna do templo de Zeus, dando um nó impossível de ser desfeito. Ao morrer o filho de Górdio, Midas, tornou-se rei e expandiu o reino, embora também não deixasse herdeiro. Mais uma vez consultado o Oráculo disse que o próximo rei seria quem desatasse o nó de Górdio. Passaram-se 500 anos até que Alexandre, o Grande, observasse o nó e o cortasse com sua espada.
Ao que parece o Brasil passa por momento no qual o próximo presidente só será empossado caso se conseguir desfazer o nó górdio que cerca sua escolha. Temer, o atual presidente, proclama que de modo algum renunciará. A opinião dos que se ocupam dos fatos políticos é a de que Temer não conseguirá governar após a delação que o expôs aos olhos da nação. Entretanto, caso a presidência fique vaga, não há consenso sobre a escolha de seu sucessor. Nem mesmo existe consenso sobre a forma a ser adotada para a eleição do novo presidente que governará até o fim de 2018.
Nesses dias tenebrosos teme-se não só pelo desgoverno como o agravamento da recessão. O desânimo é geral. Talvez como nunca antes precisássemos da existência de um oráculo. Seria ele quem talvez nos indicaria a natureza da pessoa capaz de desfazer o nó górdio que tanto nos assusta.
Mas, infelizmente, os tempos são outros. Já não existem oráculos daí dependermos de algum milagre que reconduza o país aos trilhos. Milhões de desempregados talvez orem todo dia pelo aparecimento de um santo milagroso que desfaça o nó que nos constrange.
A natureza humana
Hobbes dizia que o homem é mau. Já nasce mau, não sabe viver em sociedade e precisa ser conduzido por um estado autoritário que dite regras de convivência. Isso é o que está no livro “Leviatã” escrito pelo filósofo no século 16.
A visão de Hobbes é combatida. Difícil aceitar que a criança já nasce má e que a natureza ruim do homem justificaria estados totalitários. Entretanto, num momento como o atual, no qual a cada momento se exibem o que há de pior na natureza humana, não há como não se pensar no filósofo, ainda que só para citá-lo.
A balbúrdia que no momento sacode o país leva-nos a pensar que, afinal, ninguém presta. Não há dia em que não se aprofunde a visão da corrupção sem limites e envolvimento de personagens que, até a última hora, tínhamos como guardiões do bem comum. Trata-se de um jogo no qual peça sobre peça cai e o perigo é o de que não reste ninguém. Diante disso instala-se o desânimo: afinal existiria alguém em quem poderíamos confiar?
Um magnata do setor de carnes, acusado de envolvimento com a corrupção, é estranhamente atendido pelo presidente da República. Na conversa fala sobre seus delitos e, pior, grava a conversa. Tempos depois divulga a gravação com a única intenção de desestabilizar ainda mais a já combalida República. O desastre é inevitável. Pede-se a renúncia do presidente. O dólar dispara, a Bolsa de Valores fecha em grande baixa. O magnata da carne a tudo assiste bem instalado em Nova York. Que se se dane o país. Que se danem os brasileiros.
O Brasil de hoje é como aquela nau que avança no mar bravio ao sabor da tempestade. O capitão a custo tenta manter a rota, mas a marujada não confia nas ordens dele. Os passageiros, desesperados, lutam para salvar-se, embora presos aos destinos da nau em que viajam.
Hobbes estava errado. Ou será que sua teoria não seria válida para todo mundo, mas apenas para certa parcela de gente ligada ao poder?
Sugismundos
A Mariazinha era bonitinha, mas não gostava de banho. A mãe a colocava no banheiro. A menina fechava a porta, abria o chuveiro, molhava um pouco o cabelo para disfarçar e saia do mesmo jeito que havia entrado. Cresceu assim. Sem asseio.
Nos meus tempos de faculdade morei numa república onde também residia um certo Valter, ótimo sujeito, exceto pelo fato de não ser afeito à limpeza. Em pleno verão, suores abundantes, o gajo não mudava a camisa preta. Rescendia suor. Ótimo papo, inteligente, leitor voraz, para conversar com ele o jeito era observar certa distância. Depois da faculdade nunca mais o vi. Conhecido comum me disse que o Valter mora em outro estado e enriqueceu. Bom pra ele. Agora quanto à higiene não sei dizer se melhorou.
No início dos anos 70 surgiu na televisão um boneco alcunhado Sugismundo. Esse tal era um porcalhão. Por onde passava aprontava, deixando lixo para todo lado. A intenção de quem produzia os vídeos com o Sugismundo era de, justamente, advertir as pessoas sobre a importância da higiene. Deu tudo errado. O terrível Sugismundo era muito simpático e caiu no gosto popular. A turma simplesmente adorava o Sugismundo razão pela qual foi tirado de circulação. Entretanto, reapareceu uns dois anos depois, na ocasião acompanhado de um filho que fazia tudo certinho. Mas, o erro estava consolidado.
Nem todas as pessoas são afeitas a cuidados higiênicos. Fui apresentado a um cara que é o Sugismundo em carne e osso. O tipo é realmente um desastre. Qualquer coisa que esteja nas mãos dele está fadada a terminar no chão. No sofá, vendo televisão, não se levanta para levar ao lixo a lata de refrigerante e o saquinho de batatas que acabou de consumir: atira-os ao chão. Sem falar no reboliço da cama onde dorme, no papel higiênico fora do recipiente etc. O cara é demais. Escandaliza o pessoal da limpeza.
Num país com escassez de redes de água e esgoto, no qual proliferam favelas e a desigualdade social é chocante, talvez seja demais exigir-se mais asseio das pessoas. Crianças crescem em lugares de esgoto a céu aberto, morando em casebres. Entretanto, campanhas de conscientização sobre o perigo de doenças e a possibilidade de epidemias são sempre benvindas. Agora mesmo a febre amarela, a dengue, a zika e a chikungunya estão em pauta em várias regiões do país, fazendo vítimas e exigindo cada vez mais empenho das autoridades sanitárias.
Dia das mães
O bonde do meio-dia já tinha partido de modo que não havia mais como ver minha mãe no dia dela. Eu não fora. Simplesmente. Passara a manhã na dúvida. De um lado a namorada de quem não queria me separar. A namorada ali, perto de mim. Minha mãe distante. Teria sido pegar o bonde na estação de trens e seguir serra acima. Até desembarcar e pegar o ônibus que cumpria os últimos 4 km. Depois disso minha mãe estaria onde sempre esteve, no mesmo lugar onde ainda se encontra hoje, passados quase trinta anos de sua morte. Para mim mamãe nunca saiu daquela casa de esquina, do quarto ensolarado, da cozinha com fogão a lenha. Não importa que o tempo tenha passado. Nem importa que a casa de esquina já seja outra. Aquele lugar pertence a minha mãe, será dela enquanto o mundo for mundo. Ponto final.
Entretanto, havia um problema. Era dia das mães e eu tinha que ligar para a minha mãe. Desculpando-me. Mas, como telefonar se, àquela altura, ela já estaria esperando pelo ônibus do qual eu desceria e a abraçaria?
Pensei que o melhor seria ligar logo, evitar que ela esperasse em vão, evitar a decepção. Mas, e a coragem? Naquela época estávamos ainda distantes desse tempo de aparelhos celulares de cuja futura existência nem ao menos desconfiávamos. Restavam-me os orelhões da rua e as ligações a cobrar. Muitas vezes tirei o fone do gancho só para devolvê-lo ao seu lugar. Coragem. Até que me decidi, fiz a ligação. Meu irmão atendeu. Foi logo dizendo que a mãe estava esperando.
Na vez dela expliquei que não pudera ir. Ela ouviu em silêncio. Depois disse algumas coisas bem triviais. Despedimo-nos, afetuosamente. Ficou a voz dela. Não há dia das mães em que não a ouça de novo, perdoando-me pela ausência. Minha mãe fala comigo, ano após ano, pelo telefone. Já não tenho coragem de mentir. Tento dizer a ela que não fui porque estava com a namorada. Mas, é inútil. Minha mãe decerto me perdoa, mas mãe que é, conhece bem a verdade. E o filho.
O fim do mundo
A 13 de maio na Cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria…. A canção entoada por gerações de fiéis ao longo de décadas simboliza a fé no aparecimento de Nossa Senhora a três crianças portuguesas. No dia 13 de maio, na Cova da Iria, Nossa Senhora revelara-se aos três. Um mês depois confiaria a eles três segredos, os famosos Segredos de Fátima, interpretados por conceituados especialistas.
Na segunda metade do século passado o acirramento da bipolaridade política entre os EUA e a Rússia gerava a expectativa de iminente guerra nuclear. O homem conquistara o domínio do átomo e dispunha de armas suficientes para acabar com o mundo. Momentos delicados de confrontos entre as partes envolvidas causavam terror nas populações. Mas, como se sabe, o mundo não acabou.
Dos três segredos de Fátima, o terceiro estava por ser revelado antes do ano 2000. Sobre ele existiam muitas expectativas. Uma delas, muito corrente, era a de que o segredo seria de conhecimento apenas do Papa e relacionava-se à revelação sobre o fim do mundo. Esta hipótese contribuía para o reforço de teses milenaristas. Como ocorrera no ano 1000, a nova virada de milênio poderia coexistir com o fim da humanidade, castigada por Deus pelos seus erros e pecados.
Muitas vezes ouvi essa história de pessoas mais velhas que, assim me parecia, acreditavam nela. Falava-se sobre o terceiro segredo como sinal do fim dos tempos. O homem não estivera à altura da missão que lhe fora confiada pelo Criador. Chegaria o momento do apocalipse, do juízo final previsto nas escrituras.
Lucia escrevera o terceiro segredo, em 1944, por ordem do bispo de Leiria. A revelação pública deu-se em 2000. As crianças teriam visto um anjo, ao lado de Nossa Senhora, apontando uma espada de prata cujos raios, entretanto, eram bloqueados pela mão da Santa. O papa caminhava num mundo destruído em direção a algozes que o matariam. Entretanto, após a revelação, teóricos da Igreja esclareceram que de modo algum o contexto do segredo teria significado profético. Aliás, destacava-se a liberdade do homem sempre capaz de alterar o curso dos acontecimentos através de suas ações.
Amanhã, 13 de maio, comemora-se o centenário do grande acontecimento de Fátima. Estará no santuário o Papa Francisco e espera-se a presença de 500 mil fiéis. Quanto ao fim do mundo seguimos sem nada saber. Talvez esteja nas mãos de gente como Donald Trump ou daquele tal Kin Jong-um, o imperador da Coréia do Norte.
Ainda ela
Sim, a morte. Não ia falar sobre ela, mas…. Não é que se apresentou de novo? Sem avisar. Inesperadamente. Sorrateira como sempre. Como sempre não se fez anunciar. Sem pródromos. Assim, num piscar de olhos, certeira, roubou mais uma vida. Talvez ela tenha prazer nisso. Aprecia instalar a desordem, desconstruir. Deixar atônitos os que presenciam seu ato. Intimidá-los. Avisar a cada um que talvez seja ele o próximo. Rir a cambalhotas, olhando os que choram em torno do caixão. Futuros pendentes. Mais hora, menos hora, virá buscá-los. Um a um.
Desta vez foi uma velha conhecida a quem eu não via a algum tempo. Semana passada fez contato. Estava bem, apesar da idade. Uma dorzinha na perna esquerda, quem sabe a coluna, quem sabe a necessidade de trocar o colchão. Falamos sobre noites mal dormidas, travesseiros altos, preocupações disparatadas que nos agoniam justamente nas madrugadas. Ensaiamos iniciar conversa sobre os filhos, mas depressa desistimos. Por onde andarão esses que se alongaram de nós? Em que mundos estarão metidos? Eles que agora nos olham como pessoas de ontem. Ultrapassadas? Não é que de tempos para cá as crias têm-se revelado mais pacienciosas com a gente? Imagine que me pegam pelo braço toda vez que entro e saio do carro - disse a amiga.
Ninguém sabe. A amiga não sabia. Talvez enquanto falasse ao telefone comigo a morte a espreitasse. Talvez a morte tenha uma agenda com datas, horários. Para ela não contam os interesses daqueles que levará. Se a amiga precisasse de mais um dia, só mais um dia, para terminar algo essencial, então não se poderia conceder a ela o benefício de algumas simples horas?
Estive no velório. Observei a face emudecida da amiga. Recordei as últimas palavras que trocamos. Não derramei lágrimas. Abracei o viúvo inconsolável. Estava junto ao caixão quando pressenti que a morte estaria bem ali a observar-nos. Afinal, quem entre nós seria sua próxima vítima?
Chega o dia
Não adianta: todo mundo morre. Hoje mesmo noticia-se que o ator e diretor Nelson Xavier faleceu. Vitimou-o o câncer aos 75 anos. Ficam suas interpretações como Lampião, Chico Xavier e tantas outras. Mas, foi-se.
A morte sempre à espreita. Damos-lhe as costas. Não nos interessa. Nada a tratar com ela. Que circule por aí, levando gente, mas o mais longe possível de nós. Afinal, quem a quererá por perto?
Converso com uma senhora de 85 anos de idade. Reclama que as pernas não têm força e mesmo com o andador a locomoção está difícil. Já caiu algumas vezes e deu sorte por não ter quebrado nada. Além do que a memória já não é mais aquela. Os esquecimentos acontecem cada vez mais a ponto de não reconhecer certas pessoas. Mas, se eu a conhecia tão bem?
Outro dia a senhora me disse não conhecer pessoa com quem gostaria de se encontrar. Disse-lhe que na verdade a tal pessoa era sua conhecida e ela protestou: nunca pusera os olhos naquela mulher. Pois. Acabei mostrando foto da tal mulher abraçada com a senhora. Ela rendeu-se à evidência. Acreditava em mim, não seria fotomontagem. Ainda assim não se lembrava da mulher.
Na conversa citei o fato de que nos EUA estão testando um derivado da maconha com resultados benéficos para a reativação de memória em idosos. Mal ouviu a senhora protestou: maconha de jeito nenhum, é contra a minha formação. Em vão falei sobre a maconha medicinal. Ela resistiu. Além do que a droga ainda nem foi aprovada e não existe no comércio.
O que a senhora não admite é que, para ela, o cerco da morte pesa cada vez mais. Ela diz que pouco se importa com o momento em que deixará o mundo. Pede apenas para não sofrer. Acredita em Deus e a Ele pertence não só sua vida como o momento de deixá-la. Entretanto, embora negue, a senhora agarra-se à vida. Depois da morte, o insondável. Quem não se preocuparia?
Vejo a senhora em seu andador, distanciando-se. Morosa. Certa de que o relógio do tempo trabalha contra ela, cada vez mais agressivamente. Sua hora haverá de chegar. Não há como evitar a aproximação do fim do túnel, o escuro..
Tenho vontade de dizer a ela: todo mundo morre. Mas, me calo.
O depoimento
Amanhã será o grande dia. Finalmente, o ex-presidente estará frente a frente com o juiz da Lava Jato. Lula x Moro. O encontro a ser realizado em Curitiba é tratado como luta de boxe. O comparecimento do homem sobre quem pesam muitas acusações estimula a bipolaridade instalada no país. De um lado acusações contundentes feitas por alguns delatores. De outro o acusado que se coloca na condição de perseguido.
A muita gente parece pouco importar a verdade. Com custo a Justiça do Paraná tenta evitar aglomerações humanas que poderão descambar para batalha campal. Estão proibidas manifestações. Moro declara que o depoimento não é guerra. Gente grita dos dois lados.
Mas, no vai dar tudo isso? O país mergulhado na mais profunda recessão, com 14 milhões de desempregados, economia dando sinais ainda fracos de recuperação. Não seria hora de haver um pouquinho de bom-senso e união para sairmos da crise?
Dias atrás assisti, de novo, ao filme “São Paulo S/A” do cineasta Luís Sergio Person. A trama se passa na virada dos anos 50 para os 60 do século passado. No governo JK floresce a indústria automobilística. Retrato sensível da época o filme retrata a industrialização de São Paulo na qual Carlos, vivido por Walmor Chagas, veste a carapuça de homem perdido diante das transformações sociais. Ele é o homem que virou suco. Na cidade imersa na onda desenvolvimentista destaca-se a existência de uma classe média que enriquece, obtendo empréstimos públicos, sonegando impostos, enfim usando e abusando da corrupção. É o capitalismo que se impõe, fazendo das pessoas nada mais que mercadorias.
Exemplo de empresário é o italiano Arturo, vivido por Otelo Zeloni, com quem Carlos se associa. Estão no ramo de autopeças, indústria que cresce à margem da produção de automóveis. Arturo enriquece com a corrupção: sonega impostos, suborna fiscais, enfim faz uso de toda a maquinaria disponível para sair-se bem custe o que custar.
Passados 70 anos do filme de Person a corrupção acusada por ele agigantou-se. Faz-nos pensar numa falha de caráter de proporções endêmicas calcada numa danosa hierarquia de interesses: em primeiro plano os pessoais, abaixo deles os coletivos e de Estado.
Talvez por isso o depoimento de Lula amanhã desperte tanto interesse e apreensão. O país precisa lavar a roupa suja e, mais que nunca, conhecer a verdade. Mais cinquenta ou cem anos de inconsequências seriam inaceitáveis.