Arquivo para junho, 2017
São Pedro
De festas juninas guardo minha mãe comemorando o aniversário dela. Dia 29, São Pedro. Minha mãe passava o dia preparando a festa. Tínhamos um quintal grande. Armava-se a fogueira com troncos de lenha dispostos numa pilha que se afinava em direção ao alto. Na cozinha as mulheres trabalhavam. Preparava-se o quentão e coziam-se os doces em tachos no fogão de lenha. O de abóbora era o meu favorito.
No início da noite as pessoas chegavam. Vinham agasalhadas porque o frio era intenso. Passavam pelo portão com faces felizes, prontas para o divertimento que viria. Ateava-se fogo à lenha e logo a pira incandescente iluminava a noite.
Os convidados se reuniam em torno da fogueira. Rolava o quentão. Fazia sucesso a batata-doce, assada em meio às brasas da fogueira. Minha mãe circulava, agitando a festa. Estava feliz.
Pelas tantas surgia o bolo. Os amigos se reuniam no coro para os parabéns. Tinha-se a impressão de que, do céu, São Pedro abençoava aquela gente. Era o dia dele. Era o dia de minha mãe.
São passados seis décadas desde aquelas noites de São Pedro. Dos convivas em torno das fogueiras quase ninguém sobreviveu. São Pedro deve tê-los recebido com um sorriso na entrada do céu. Dizem que o santo não se nega aos seus que sempre o festejaram.
Liberdade de expressão
Em seu programa pela BANDFM o jornalista José Luis Datena reclama ter passado mal na noite anterior. Atribui o fato ao problema de não dispor de liberdade de dizer tudo aquilo que pensa. Avança, dizendo que a liberdade de expressão de fato não existe nos meios de comunicação. Há um limite imposto pelos mesmos veículos, quaisquer que sejam eles.
Ouvir isso do jornalista causa alguma estranheza dado ser conhecido por não ter papas na língua. Mas, sua declaração nos remete ao que nos é dado saber e, principalmente, à informação que nos é sonegada.
De que, enquanto público, não passamos de pessoas cujas opiniões são mediadas - de segunda mão - pela natureza das informações a que temos acesso, disso não restam dúvidas. De que tais informações são divulgadas sob o filtro de interesses daqueles que as recebem e passam adiante também não restam dúvidas. De modo que, enquanto público, estamos à mercê de toda sorte de manipulações. Pior: a formação das consciências pessoal e coletiva é afetada pelas verdades ou pretensas verdades a toda hora divulgadas.
Num momento em que o país atravessa talvez o mais tenebroso período de sua história não dispor de fontes de informação totalmente confiáveis nos coloca em situação complicada. Destarte as já conhecidas dificuldades relacionadas às fontes de notícias que nem sempre se caracterizam pelo compromisso com a verdade, estabelece-se um jogo no qual a opinião pública torna-se desvalorizada. As consequências desse fato são perigosas. Por exemplo: diante da maratona de acusações e desmentidos que pululam hoje em dia nos meios de comunicação, em quem deveríamos apostar para conduzir o país nas eleições do ano vindouro?
Não se descarte do dito acima o fato de que a unanimidade não só e burra com impossível. Nem nos enganemos na busca de verdades absolutas sobre as quais ninguém ousaria levantar as menores dúvidas. Entretanto, eis aí um momento no qual a velha boa-fé seria sempre bem-vinda.
Tem razão o Datena em perder o sono.
Quando parar
É difícil, muito difícil, dizer chega. Parar, simplesmente parar, deixar para trás algo que em que se empenhou vida afora. Nas idades mais que maduras o trabalho pode se tornar um fardo do qual se deseja escapar. Afinal, o que há pela frente quando na verdade a noção da proximidade da morte insinua-se de modo irreversível? Se você já chegou aos 70 quantas décadas o separam do desenlace final? Uma? Duas?
Ainda assim é difícil parar. Deixar de refazer, diariamente, o caminho que, durante anos, percorreu em direção ao local de trabalho. Desencanar-se das lembranças do trânsito ruim nos horários de pico. Deixar de ser aquele cara de antes para gozar o tempo livre, acostumar-se ao não fazer, a procurar soluções para preencher o tempo vago. O sempre imenso tempo vago.
Tempo é tudo o que tenho diz um amigo com quem me sento para uns goles. Já não trabalha, goza de situação mais que estável, teoricamente tudo está mais que bem. Mas, há o vazio. Há o imponderável amanhecer de um novo dia no qual nada há a se fazer. Ele reclama.
Acontece também a gente mais ovem. O esporte abre um abismo à frente do atleta que alcança o momento de aposentar-se. Quantas histórias. O ídolo venerado pelas fanáticas torcidas de repente sai de cena. Onde os aplausos? Onde a perseguição dos repórteres que não davam a ele sossego? De repente a vida frugal, o esquecimento, talvez a busca de outra ocupação para a qual nem sempre se está preparado.
Ontem um assessor do ator inglês Daniel Day- Lewis anunciou que ele não mais atuará. Trata-se de decisão particular e o ator agradece a operadores e plateias que o prestigiaram ao longo de sua carreira.
Day-Lewis despede-se deixando atrás de si uma gloriosa carreira no cinema. Inesquecíveis suas atuações em filmes como “Sangue Negro” e “Lincoln”. Único ator a conquistar três prêmios Oscar, despede-se aos 60 anos de idade. Deixa saudades. Sucumbirá a futuros convites? Voltará ás telas? Impossível saber.
Greta Garbo, considerada pela Academia de História do Cinema como “a quinta maior lenda da sétima arte” abandonou sua carreira de atriz aos 36 anos. Nunca mais tornou ás telas. Certas magias e caprichos dos deuses não são mesmo feitas para durar.
Maratona de denúncias
Qual será a próxima? Não há manhã em que não sejamos acossados pela notícia de nova denúncia. Alguém até ontem imaculado revela-se propenso a contra sobre o que sabe com o propósito de livrar-se de sansões.
Nas altas cúpulas do país marcha um exército silencioso cujos soldados escodem suas faces pelo medo de serem expostos. Parece que todos carregam pelo menos uma culpa. Daí o receio de uma inesperada evidencia, expondo-se ao pais algum tipo de falcatrua em que venha a ser arrolado.
No Brasil a deleção premiada virou moda. Converteu-se num tipo de negócio onde se trocam vantagens por informações sobre corrupção e propinas.
Mas, isso cansa.
Saudades do tempo em que líamos nos jornais notícias mais interessantes. Saudades de não conviver com nojeira tão insuportável.
Mas - pergunta-se - terá a crise um fim? Ou estaremos condenados a viver a confusão de hoje eternamente?
O Brasil pede socorro.
Para onde foram?
A todo transe realizam-se prisões de figuras notórias da política nacional. Advogados de renome empregam-se em intensa atividade. Acusações, denúncias, defesas, liminares, julgamentos, condenações, prisões e outras são palavras incorporadas ao dia-a-dia. Já não causa estranheza ouvi-las. Nada mais natural que alguém ser surpreendido em sua casa nas primeiras horas da manhã, sendo conduzido a interrogatórios ou prisão preventiva.
Diante de situação tão alarmante pergunta-se sobre a natureza dos homens que cuidam dos destinos do país. Uma cambada de safados? Salva-se alguém? Existirá na classe política alguém que não possa ser acusado de receber propinas e obter favorecimentos? O ilícito virou regra?
Desconfiança geral. Não há mais surpresa quando alguém de reputação ilibada até ontem de repente seja denunciado como envolvido e alguma falcatrua. Por outro lado, prospera a indústria da denúncia. Vale a pena contar tudo em troca de benefícios, entre eles livrar-se da prisão, redução de penas etc. Em curso no país um novo “game” do qual resultam prejuízos incomensuráveis à população.
Mas, terá o Brasil sido sempre assim? Não é de se duvidar que a corrupção tenha existido em todos os escalões ao longo de nossa história. Entretanto, convenhamos: vivia-se num mundo mais interessante. Personagens públicas de destaque: quantas delas encantavam os brasileiros. Gente do porte de Getúlio Vargas, Juscelino, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e tantos outros. Obviamente, cada um deles tinha lá os seus senões. Mas tinham porte, não lhes faltava a categoria hoje tão rara. De quebra nos anos 50 e 60 do século passado estavam vivos Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira….. Liam-se seus textos no calor da hora de suas publicações. E Ari Barroso, Tom Jobim…
Para onde foram todos? Infelizmente pessoas brilhantes não funcionam como peças que possam ser facilmente substituídas. Daí que deu no que deu.
No caminho da onça
Uma onça parda invadiu um galinheiro e matou 41 galinhas. Aconteceu em Duartina, interior de São Paulo. De manhã o proprietário do sítio dirigiu-se ao galinheiro para alimentar as galinhas. Deu com a onça e os animais mortos. Assustado, chamou a polícia ambiental que, usando tranquilizantes, capturou a onça. Agora o animal será devolvido ao ambiente selvagem.
Nos anos 50 do século passado a rede viária do país era ainda mais precária. Cidadezinhas do interior não possuíam estradas transitáveis. Asfalto nem pensar. Na Serrada Mantiqueira caminhões usavam correntes nos pneus para avançar em trajetos de puro barro. A forte lavoura da região enfrentava problemas para o escoamento de seus produtos. Não era incomum que caminhões carregados com hortaliças permanecessem dias parados sem poder descer pela serra, a ponto de se perderem totalmente as cargas. Sabemos que ainda hoje o problema persiste em várias regiões do país. Mas, naqueles tempos era regra geral a tremenda dificuldade de transportes.
Cabia-me, quando ginasiano, percorrer alguns quilômetros com a finalidade de embarcar no bonde da Estada de Ferro Campos do Jordão. O trajeto era cumprido a pé, na ida e na volta. Certa ocasião, chegando no bonde noite, segui pela estrada de terra, utilizando a luz de uma lanterna. Cumpre lembrar de que a estrada era circundada por densa mata na qual pontificavam árvores e muitos pinheiros. A certa altura o facho de luz da lanterna encontrou-se com dois olhos que brilhavam no escuro. Era uma jaguatirica. Essa onça, de porte médio, tem hábitos solitários e alimenta-se de outros animais que obtém através da caça. Em geral mantém relação de distância com o homem, a quem não tem por hábito atacar. Entretanto, dar com uma jaguatirica no meio da estrada, estranhamente parada e sem dar sinais de que sairia do lugar onde estava, era assustador. Na ocasião pareceu-me que o melhor seria manter-me firme, sem demonstrar medo. De modo que quedei paralisado, sem saber o que fazer, esperando.
Não sei dizer quanto tempo durou a inesperada situação. Talvez não mais que um minuto que a mim simulou a eternidade. Enfim, a jaguatirica se moveu, tornou ao mato. Respirei aliviado. Ainda fiquei por alguns instantes no mesmo lugar, indeciso sobre seguir adiante. E se a jaguatirica estivesse emboscada, esperando-me passar para dar o bote. Ora jaguatiricas não costumam atacar o homem. Fazendo muita força para tomar isso como verdade, enfim segui adiante.
Ficou-me a imagem do animal selvagem em meu caminho. Como acontece a toda gente vida afora enfrentei situações complexas, simulando onças às vezes bem maiores que aquela jaguatirica. Daí que sinto que foi importante não ter-me acovardado naquela noite, na estrada. A jaguatirica terá me ajudado a forjar pelo menos parte da resistência de que precisei em muitas situações ao longo desses anos.
Terror em Londres
Aconteceu em Londres. Mais uma vez. Pessoas morreram, há feridos graves. Vidas ceifadas em nome do terror. Incompreensível? Para nós sim. Para os que praticaram o ato criminoso não. Diferenças de crença, fé e ideologia separam dois mundos.
Mas, se a vida é a mesma para todos…. Se o significado de existir…. Bem, esse certamente não é o mesmo. Quando um homem-bomba explode o próprio corpo, acreditando em compensação futura seja lá qual ela for, isso nos divide em categorias e subcategorias de seres humanos. Há diferenças essenciais entre os homens a ponto de existirem aqueles que entregam a própria vida, levando consigo o máximo número de vítimas inocentes.
Dias atrás revi o filme sobre o voo 93 no qual terroristas do 11 de setembro sequestraram um avião com intenção de jogá-lo na Casa Branca. O filme busca retratar a tensão dos passageiros e a determinação dos terroristas cuja missão era a de sacrificar a própria vida e a dos passageiros no acidente aéreo. Como se sabe, os passageiros se insurgiram contra os sequestradores, o avião caiu e todos morreram. Mas, as imagens são fortes. As torres gêmeas já tinham vindo abaixo pelo choque de aviões sequestrados. Outro avião chocara-se com o Pentágono. A última aeronave não chegou ao seu destino final que era a Casa Branca.
Não há como não se pensar na lógica que conduz a ação terrorista. Quando alguém se coloca sobre a calçada de uma ponte de Londres e passa a atropelar os desconhecidos que encontra pela frente esse ato contradiz tudo o que acreditamos. A barbárie nunca terá sentido para seres civilizados. Entretanto, o ódio ao Ocidente consumado em nome de crença não só justifica como é motivo de regozijo para organizações terroristas que se apressam a responsabilizar-se pelo ato.
Ficam a insegurança e o medo. Divulga-se que, de modo algum, os países envolvidos se renderão a atos que colocam em risco a sociedade. Entretanto, valem-se os terroristas de ataques inesperados como o recente no qual vitimaram-se crianças que assistiam a um show musical na Inglaterra.
A agonia no mundo parece não ter fim.
Garrincha
Vi Garrincha jogar o que não é pouco. Melhor dizendo: tive o privilégio de ver Garrincha jogar.
As gerações mais recentes não tiveram a oportunidade de ver o Mané em ação. Dispõem de vídeos sobre o jogador atuando, mostrando seus dribles desconcertantes. As pernas tortas faziam a loucura dos defensores. Os jogadores da seleção russa, derrotada pelo Brasil em 58, diziam que não só nunca tinham visto como não entendiam o que fora a atuação de Garrincha naquele jogo. Um dos laterais russos confessou ter pensado em não jogar mais futebol: jogar não era o que ele fazia em campo, mas sim o que Garrincha era capaz de fazer.
Irreverente, genial. Destruidor de defesas contrárias. Imprevisível. Proprietário de familiaridades com a bola não acessíveis aos seres mortais. Por isso foi único. Nenhuma genética, nenhuma máquina, será capaz de gerar outro Garrincha. O molde que o fez quebrou-se após gerá-lo. As incríveis pernas tortas não foram e jamais serão novamente produzidas. Garrincha terá sido um capricho dos deuses. Não era desse mundo. Viveu e jogou para trazer alegria a milhões de brasileiros que o idolatravam. Esquecido de si mesmo, fez o que sabia fazer e desencontrou-se com o mundo quando as pernas não o deixavam mais exibir sua arte. Já não podia mais jogar, nem ouvir o carinho das torcidas. Então entregou-se a um caminho espinhoso que o levou à morte precoce. Garrincha nasceu para viver dentro das quatro linhas. Fora delas inexistia, daí seu infortúnio.
Fora dos gramados o herói deixou herança confusa. Folclórico até depois de sua morte, vez ou outra Garrincha reaparece nos noticiários envolto em brumas de informações contraditórias. Agora surge uma de suas filhas a declarar que os restos mortais do pai haviam desaparecido do Cemitério Municipal de Raiz da Serra, distrito de Pau Grande, em Magé, onde o ex-jogador foi enterrado, em 1983.
A notícia nos comove. Impossível aceitar tal descaso em relação a um ídolo nacional. Entretanto, dois dias depois, aparece um neto de Garrincha para garantir que o avô se encontra na cova de sempre, um pequeno túmulo de onde seus restos mortais nunca foram removidos. Mané está seguro, portanto.
Passados mais de trinta anos do desparecimento de Garrincha seu nome ainda causa comoção. Se você nunca o viu em ação dentro dos gramados, assista a algum vídeo que o mostra destruindo defesas de seleções e times de futebol. Ficará com algumas imagens, pálidas é verdade, mas as que restam sobre a carreira do gênio. Para nós, mais velhos, o Garrincha sempre será aquele monstro que nos levava à loucura ao ouvir, pelo rádio, suas impressionantes jogadas nas Copas de 58 e 62. Ou o mágico da bola que vimos em ação nos estádios.
Na verdade Garrincha nunca morreu. Foi tirado do mundo para encantar com suas jogadas os deuses que sempre reclamaram da permanência dele entre nós.