Arquivo para julho, 2017
Missas
Fui coroinha, participando de missas celebradas em latim. Ainda menino decorei o “confiteor” e outras falas da língua mãe, dando continuidade às palavras dos padres que celebravam missas.
Já não era coroinha quando as missas passaram a ser rezadas em português. Não me habituei a ofertório, consagração, comunhão e outras partes da missa ditas em português. As vozes dos velhos padres, repetindo à exaustão o fraseado latino ainda ecoam na minha cabeça.
Hoje as missas são diferentes, havendo maior participação dos fiéis que compreendem em sua língua nativa o que se passa nos altares. Telões mostram letras das preces cantadas, estimulando os presentes a entoá-las. A missa tornou-se mais comunitária.
Semana passada assisti a uma missa numa grande igreja em São Paulo. Mais uma vez me defrontei com o desestímulo de seguir adiante, justamente por conta do sermão. Desde já aviso que não se espera a presença no púlpito de um padre do quilate de Antônio Vieira. Entretanto, muitas vezes somos postos a ouvir o sermão através de clérigo sem o menor pendor para falar em público. E como se alongam nas palavras mal colhidas, tantas vezes desnecessárias. A sacralidade do momento é abalada. O enlevo da entrega do espírito à proximidade com Deus é interrompido.
Não sei se nos seminários preparatórios para o sacerdócio existe empenho quanto à oratória. Deve existir. De resto, nem todo mundo é dotado de propensão para falar em público. De modo que seria de bom alvitre aos menos dotados abreviarem seus sermões.
Falar em público é complicado. Lembro-me de um colega de classe sorteado pelo professor para apresentar um trabalho de grupo. O rapaz era gago. Em vão tentou-se junto ao professor que o dispensasse do encargo. No dia sofremos algumas horas com a dificuldade do apresentador em expressar-se.
Nos meus tempos de coroinha conheci um padre que não era dado a fazer sermões. Nas missas que celebrava as coisas se passavam de modo sucinto. Após a leitura do evangelho o padre restringia-se a breves comentários, aliás quase sempre os mesmos. Ele substituía a dificuldade de expressão pelo encanto de belas celebrações. Os fiéis o adoravam.
Automóveis
Parece que falamos sobre coisas da Idade Média, mas o fato é que, não faz muito tempo, circulávamos por aí com carros muitas vezes mais simples que os atuais. O Volks 1300 era o campeão de nossas ruas. Mas eram comuns o Fiat 147, o DKV e outros. Obviamente, existiam os mais caros e confortáveis como o Opala e o Maverick. Mas não dispunham dos recursos presentes nos modelos atuais desenvolvidos com o progresso da tecnologia.
Para que se tenha ideia o Volks não tinha o espelho retrovisor no lado oposto ao do motorista. Quanto aos cintos de segurança nem pensar.
Confesso que não sou um aficionado em carros. Conheço muita gente para quem os automóveis são muito mais que apenas um veículo para locomoção. A indústria automobilística produz automóveis para todos os gostos e bolsos. Modeles caríssimos como a Ferrari e o Lamborghini constituem-se em sonho inacessível para apaixonados.
A citação de Lamborghini e Ferrari não se faz por acaso. Ambos são notícia nesta semana. Renomado empresário brasileiro, em prisão domiciliar determinada pela Lava Jato, acaba de colocar à venda seu Lamborghini cujo valor estimado é de R$ 2 mi.
Entretanto, a notícia mais acachapante é a de um inglês que acabara de comprar uma Ferrari, pagando por ela o equivalente a R4 1,6 mi. Uma hora depois circulava em uma estrada quando perdeu o controle do carro. A Ferrari saiu da estrada e pegou fogo, sendo completamente destruída. Milagrosamente o motorista saiu ileso. Quando a polícia chegou ao local do acidente perguntou-se ao motorista sobre a marca do carro. Segundo um policial o proprietário mostrou certo orgulho ao responder tratar-se de uma Ferrari.
Consta que a Ferrari não trafegava em excesso de velocidade. Teria sido a pista molhada a razão da perda de controle do carro.
Coisas desse tipo nos fazem pensar em sorte e azar. Acaso? Perder um automóvel de tão alto valor apenas uma hora depois de sair com ele da revendedora? E quanto à sorte de sair ileso do acidente?
O jeito é deixar as coisas do jeito em que acontecem e estão. Mas, que é estranho, lá isso é.
A língua geral
Então eu pedi um “galfo”.
Isso mesmo: um “galfo”. Pedido feito tive que suportar o olhar surpreso das pessoas à mesa. Então a dona da casa levantou-se e colocou ao lado do meu prato o “galfo”.
Mas, por que “galfo”? Acontece que almoçávamos na casa de um médico conhecido. Para mim aquele era um ambiente muito chique. Antes de chegar meu pai tinha me advertido sobre os cuidados com o jeito de falar. Principalmente com os meus “Rs”. Ora, eu não entendia o que havia com o meu “R”. De fato, carregava muito na pronúncia, consequência do dialeto que falávamos no lugarejo em que morávamos. Era a nossa “língua geral” que ainda hoje é falada pelo povo da roça. Língua truncada na qual subtraíam-se consoantes e vogais de palavras, daí o sotaque estranho e quase incompreensível. O Onofre era o “Norfo”, forçando-se no “R”, por exemplo. Afora dizeres como “pinchar fora” muito usado no cotidiano. E muitos outros.
No dia do tal almoço eu tinha pouco mais de 10 anos de idade. Era um pequeno caipira desambientado no “chique” da cidade. Acostumara-me a ver pessoas simples, dividindo a comida de uma panela, passada de um a outro num círculo com uma única colher de uso coletivo. Vivíamos num delicioso ambiente simples.
Vida afora tive que lutar para reduzir a potência do meu “R”. Quando comecei a falar em público os ouvintes riam da minha pronúncia, aliás aprimorada nos dois anos em que vivi em Itu-SP. Mas, com o tempo fui me envernizando.
Vez ou outra falo em casa como nos velhos tempos. As pessoas me olham curiosas, às vezes me perguntando sobre o significado do dialeto caipira. Mas, o que eu queria mesmo dizer é que tenho saudades daqueles tempos e de nossa língua geral. Hoje tenho que me esforçar - aliás, sem conseguir - para reproduzir aqueles deliciosos “Rs”, coisa de gente forte que dá belas bananas para o mundo. Entretanto, no dia-a-dia continuo dentro desse verniz que se colou à minha pele. Infelizmente.
Tempo ocioso
Ouço de velhos reclamações sobre a lentidão na passagem do tempo. Os dias são enormes, as noites muito longas. Existe uma vastidão de momentos ociosos, difíceis de preencher com as pouquíssimas coisas a fazer.
Vive-se hoje em dia sob o império da velocidade. O dia-a-dia é mais que nunca exaustivo. O cidadão chega à casa, no fim do dia, estafado. Leva consigo pelo menos parte dos problemas do dia ainda por resolver. Tarefas para amanhã fazem parte do descanso obrigatório diante da TV. A família? Bem, resolveremos os problemas das crianças até o fim da semana. Exceto as urgências urgentíssimas como as ligadas à saúde.
Vive-se nesse embalo. De repente a pausa: uma semana de folga passada em cidade pequena do interior. O choque é inevitável. Entra-se no ritmo do lugar onde nada acontece e tudo segue morosamente. O organismo habituado ao estresse diário demora a se adaptar. O cérebro recusa-se a descansar. Como desligar uma máquina habituada ao “tudo para ontem”?
Então surge a inevitável pergunta: você voltaria a viver num lugar desses, logo você habituado e treinado na competição diária dos grandes centros? Logo você? Resposta imediata: nem pensar.
A velhice é como essa cidade onde as cosias se passam devagar. Chega a aposentadoria, enfim a hora de parar. Perde-se massa muscular, o coração já não trabalha tão bem, um ou outo exame pedido pelo médico tem resultado fora do padrão de normalidade. Aproximam-se os dias enormes e as noites muito longas. De repente surgem do nada crianças chamando você de avô.
É inevitável. A face que você vê no espelho já nem parece ser sua. O tempo vai cravando rugas aqui e ali, sua disposição é ótima, mas não é a mesma de outros tempos. Não demora para você descobrir que a tal “melhor idade” não passa de uma grande farsa.
……
No consultório do cardiologista reclamo de minhas tonturas periódicas. Ele me diz que a minha pressão arterial oscila muito. Comento que não é fácil tornar-se septuagenário. O médico sorri. Ele tem 73 anos e reclama da perda de massa e força muscular. Faz pilates três vezes por semana, mas os resultados são inexpressivos. Por fim diz que está pensando em reduzir os horários de atendimento em seu consultório. Será uma fase intermediária até para por completo.
O cardiologista é médico competente. Mais hora, menos hora abandonará o trabalho e ficará em casa. É inevitável que eu acabe parando - comenta. Olho para esse senhor e penso em como será sua vida no mundo do tempo ocioso. Tenho vontade de alertá-lo sobre os dias enormes e a noites muito longas. Mas, me calo. Ele bem sabe.
Deserções
Meu pai referia-se a deserções quando recebia a notícia de morte de alguém conhecido. A paisagem perdia componentes, tornava-se vazia porque estranhos não contam.
O problema é que o tempo passa. A paisagem humana muda. A certa altura as deserções dentro da geração à qual pertencemos crescem desesperadoramente. A tal ponto que é impossível não nos perguntarmos sobre quando será a nossa vez.
Nesta semana a deserção relevante foi a do Valdir Peres. Grande goleiro, Valdir deixou-nos momentos inesquecíveis com suas brilhantes atuações sob as traves do gol do São Paulo. Com a morte de Valdir algumas cenas de suas atuações foram mostradas nos noticiários televisivos. E pode-se rever Valdir a comemorar a conquista do título brasileiro pelo São Paulo em 1978.
Março de 1978. No avião em voo a Belo Horizonte ouvi de um jornalista carioca que ia assistir ao jogo apenas pelo compromisso profissional. Nenhuma surpresa ocorreria no jogo entre o São Paulo e o Atlético. Mesmo porque o Atlético tinha, na ocasião, um formidável time do qual faziam parte Toninho Cerezo e Reinaldo, entre outros.
Na véspera do jogo jantei com amigos atleticanos num restaurante onde imperava o clima de vitória. Na manhã seguinte a cidade amanheceu atleticana. Bandeiras do Atlético eram vistas por toda parte e milhares de torcedores preparavam-se para a grande festa que viria.
Fui levado ao Mineirão pelos amigos, torcedores do Atlético. Entrei num estádio em que só se viam as corres preto e branco da equipe que logo mais ganharia o título. Festejava-se por antecipação.
O resto todo mundo sabe. Jogo equilibrado para desespero da torcida local. Empate nos 90 minutos, prorrogação e novo zero a zero. Então a cobrança de pênaltis e o grande papel de Valdir Peres. Valdir não defendeu nenhum dos pênaltis cobrados pelos jogadores mineiros. Mas, de tal modo infernizou os jogadores do time adversário que deu no que deu. O último jogador do Atlético a cobrar foi justamente Toninho Cerezo. Ainda vejo Valdir, ao lado dele, infernizando-o. E Cerezo chutou por cima. São Paulo campeão brasileiro de 1977, título conquistado no jogo final em 1978.
Com o coração aos pulos mantive-me quieto. Seria loucura comemorar naquele ambiente agora hostil. Na volta com meus amigos não emiti palavra sobre o jogo.
Daquele 5 de março restaram-me a alegria do título, a performance de Valdir Peres e o absurdo silêncio que se instalou numa cidade calada.
Valdir Peres deixa grande saudade.
Leilões
Há exatamente 48 anos Neil Armstrong pisava na Lua naquele que foi um pequeno passo para um homem, um gigantesco passo para a humanidade. Por várias vezes me referi ao dia 20 de julho de 1969 como marco de conquista humana. Vi as cenas do homem na Lua na tela de uma TV preto-e-branco. Na sala poucas pessoas que simplesmente não acreditaram no que viam. Coisa de americano - diziam. Como nos filmes, afinal americano é bom nisso.
Na ocasião Neil Armstrong portava uma sacola na qual armazenou objetos retirados do solo da Lua. Essa sacola foi comprada por uma senhora que empregou 1000 dólares na compra. Hoje a sacola vai a leilão esperando-se atingir 6 milhões no arremate por algum interessado.
Caso você tivesse muito dinheiro gostaria de adquirir algum objeto nesses leilões nos quais se arrematam peças ligadas a pessoas famosas e fatos relevantes?
Confesso não entender a estranha atração por peças que passam a fazer parte de importantes coleções. Que tal ter a posse de uma carta escrita por Abraham Lincoln? Pois essa carta foi leiloada em Nova York e atingiu, em 2008, o valor recorde de 3,4 milhões de dólares. O penico de Napoleão foi leiloado em Londres por 1000 dólares. Os proprietários de uma loja arremataram por 1.267 milhão de dólares o vestido usado por Marylin Monroe na noite em que cantou “Parabéns a você” ao presidente John Kennedy. Por 135 mil euros foi arrematado, em 2015, um selo lançado na Alemanha com a foto da atriz Audrey Hepburn.
Obviamente, trata-se de um mercado ao qual tem acesso apenas os endinheirados. Quadros de pintores famosos, por exemplo, são leiloados e arrematados por valores altíssimos. O quadro “Les femmes d’Alger”, de Pablo Picasso, foi leiloado por 179 milhões de dólares em Nova Iorque; “O grito”, de Edvard Munch, recebeu 119,92 milhões de dólares em maio de 2012.
Conheço pessoas que frequentam brechós em busca de peças antigas para ornarem suas casas. Móveis antigos, cada vez mais raros, compõem ambientes com mobiliários recentes. Peças que pertenceram a nossos avós figuram entre adornos em nossas casas.
O homem não rompe sua ligação com o passado. Os tatos e meu avó e meu pai permanecem no jacaré de ferro que foi usado para amassar rolhas, adaptando-as para fechar vidros e garrafas. O jacaré permanece comigo, dando continuidade a existências desaparecidas.
Se eu compraria o jacaré que foi de meu pai caso o encontrasse num leilão? Ora, certamente o arremataria.
Medos
Quando menino tinha medo do escuro. Temia que de repente, das sombras, emergissem figuras fantasmagóricas. Mais especificamente receava ser visitado por pessoas já mortas. Seria possível ao apagar a luz e dar de cara com algum falecido?
Bem, o mundo era bem diferente naqueles tempos. A iluminação das casas muitas vezes precária. E corriam histórias e mais histórias sobre assombramentos. Na casa de minha avó, por exemplo, existiriam algumas almas penadas que, vez ou outra, davam as caras. A menina que assombrava o cômodo de passagem para os quartos fora vista por mais de uma pessoa. Minha tia acordara de madrugada e dera com um homem estranho em pé, ao lado da cama. Meu tio socorreu-a. Acendeu a luz e nada, ninguém no quarto onde a porta se mantinha trancada.
Casos como esses infundiam terror em crianças. Os antigos pareciam tratar sobre a morte com mais naturalidade. Uma tênue membrana separaria os mundos dos vivos e dos mortos. Outra tia seria vidente. Não era incomum estarmos à mesa para o jantar e ele nos comunicar que “alguém” estaria ali conosco. Esse alguém seria um espírito. Jantávamos com fantasmas.
Na casa de meu pai existiam muitos livros. Cresci ao lado deles e devagar fui me inteirando de seus conteúdos. Criança é criança. Tinha medo, mas, estranhamente, atraiam-me contos de terror. Durante muito tempo tive medo do Horla de Maupassant. Se bem me lembro o Horla era uma força maligna que isolava um cômodo e chegava a atar fogo às cortinas.
Li todos os contos de Edgard Allan Poe. Aos 14 anos já tinha devorado toda a obra do grande escritor norte-americano. Mas, tinha medo das personagens. A leitura de “Enterrado Vivo” despertou-me ao medo de vir a ser enclausurado debaixo da terra ainda vivo.
Das histórias de vampiros nasceu o receio de que viessem me atacar nas madrugadas. Os filmes em preto-e-branco sobre vampiros eram uma delícia no cinema. A face enigmática de Christopher Lee no papel de Drácula terá embalado situações nas quais a possibilidade de ser visitado por um vampiro parecia-me muito real. Daí que colocar alho junto a janela do quarto e crucifixo na guarda da cama passaram a ser rotina. Afinal, nos filmes esses recursos se mostravam úteis para afugentar vampiros.
Passadas décadas dos tempos de menino ainda olho para as sombras com algum receio. Não tenho medo, mas não acho de todo improvável que do escuro possa brotar algum ser vindo de outra dimensão. Dizem que isso acontece porque guardamos em nosso ser a criança que um dia fomos. Entretanto, não passam de impulsos que logo sucumbem à lógica de homem adulto.
Presidentes
O avião levantando voo de Congonhas e levando o cadáver de Tancredo Neves é das cenas mais emblemáticas na história do país. Desaparecia Tancredo, esmaecia o sonho. A transição do regime ditatorial com o poder transferido a um governante civil recolocaria o país em ordem. Tancredo era experiente, seguro, preparado, político capaz de comandar seus pares e determinar os rumos do país. Mas, morrera. Simplesmente.
E vieram o Sarney com seus fiscais, o Collor com seus congelamentos e bloqueio de contas. Depois, a renúncia de Collor. Itamar Franco assumiu e o Plano Real vingou, espantando a correria inflacionária.
Collor caiu por conta de acusações de corrupção. Seu chefe de campanha política era PC Farias que, Collor no governo, foi acusado de ser testa-de-ferro de vasto esquema de corrupção. PC Farias foi encontrado morto, tempos depois, com sua namorada numa praia do Nordeste. Até hoje persistem dúvidas em relação ao seu desparecimento.
Todo mundo sabe disso. E do que veio depois, dos governos de FHC e dos dois petistas. Até sermos trazidos ao inferno de hoje cujas labaredas chamuscam nossas consciências. Afinal, em quem temos votado?
O Brasil sofre com seus presidentes. Getúlio Vargas suicidou-se em 1954 deixando órfão milhares de seguidores. Dizia-se que “Getúlio deixara o café no fogo” - Café Filho era o vice que substituiu Getúlio na presidência. Seguiu-se período de incertezas passando pelo governo Carlos Luz e Nereu Ramos. Até o Marechal Lott garantir a posse de Juscelino, eleito em 1955. Juscelino que, entre outros feitos, construiu Brasília. E veio o Jânio que simplesmente renunciou ao cargo sem que até hoje se entenda bem o porquê. Até que, em 1964, os militares deram um basta nos governos civis e iniciaram o longo período ditatorial.
Hoje, 13 de julho de 2017, Temer está no governo e deputados discutem se aceitarão a denúncia de corrupção feita pela Procuradoria Geral da República contra o presidente. Ontem o ex-presidente Lula, acusado de corrupção, foi condenado em primeira instância a mais de 9 anos de prisão.
O Brasil sofre com seus presidentes.
Práticos
Arranquei um dente. Molar. Não queria se separar de mim. Resistiu muito, lutou contra a força do boticão. Residiu na minha boca tempo demais para não ter amor à casa. Veio à luz trazendo aa raízes desfeitas, carcomidas por bactérias que não o pouparam.
Extraído o molar o dentista exibiu-o para que o visse. Vi nele um tipo forte, corajoso, mas abatido. Perdera a função, a força. Separava-se mim para sempre fato que me fez pensar no destino final das partes do meu corpo. Quando morrer serei enterrado ou cremado? O fogo da cremação assusta. Enquanto vivos é difícil engolir a versão de que o corpo que será atirado ás chamas já não nos pertence. Se existir vida após a morte com que horror presenciaremos a queima daquilo que fomos? Por outro lado, ser progressivamente decomposto dentro de uma cova não se figura estimulante. Certa vez assisti à exumação do cadáver de uma mulher. Teria falecido a menos de um mês. Aberto o caixão estava o cadáver coberto por uma nuvem de insetos, baratas, muitas baratas…
O molar me trouxe imagens do passado no qual militavam no país os práticos. Não sei se ainda é assim hoje. Consta que os sindicatos das categorias hoje em dia controlam a atuação de profissionais em suas áreas, exigindo formação para que possam exercer. No passado, mormente em pequenas localidades, os práticos supriam as deficiências de profissionais licenciados. Práticos de dentista existiam e muitos. Na infância tive problemas dentários resolvidos por práticos. Atendiam em consultórios com instrumental bastante precário. Inesquecíveis os motores acionados com pedais. Afora o material cirúrgico e os meios de esterilização.
Na área do Direito existiam os rábulas. Autodidatas entendiam de leis. Muitos deles eram bastante respeitados. Conheci um senhor que granjeou fama não só e sua cidade como nas vizinhanças. Estudioso, dedicado, faltava a ele o talho universitário. Meu pai tinha esse homem em elevada conta.
Confesso não ter me entristecido com a perda do meu molar. O danado a custo exercia suas funções mastigatórias. De uns dias para cá pusera-se a causar dor. De modo que o ver, depois de extraído, serviu-me como alívio. Impressionante como nos destacarmos facilmente de coisas que nos incomoda.
Adeus molar
TOC
Ela me cumprimenta sorridente a cada manhã. Entra na minha sala com ares de quem dormiu bem e teve bons sonhos. Pela casa dos 30 não se pode dizer que seja exatamente mulher bonita. Minha mãe costumava dizer que para certas pessoas falta um pequeno detalhe para que sejam lindas. A beleza é sempre discutível. Há quem a veja mesmo em faces que fogem ao comum dos gostos. Quanto a mim tenho a impressão de que não falta nada num rosto quase bonito. A meu ver o problema reside na busca da sempre inexistente perfeição. Certas pessoas não chegam a ser belas, mas, sim, são quase bonitas. Ao olhar para elas sentimos que a natureza poderia ter sido só mais um pouquinho generosa. Faltou a elas algo indefinido, como se ao artista que moldou suas faces tivesse falhado a inspiração, justamente no fechamento da obra.
O que está escrito acima pode ser bobagem, mas é o que me parece a cada manhã quando a mulher de quem falo entra na minha sala. Tratamos de assuntos comuns ao dia-a-dia do serviço. Pessoa agradável e inteligente ela discorre sobre coisas mais prementes e logo se despede. Mas, por que falo dela? Bem, o problema é o TOC. A mulher não consegue se manter parada sem ajeitar a minha mesa. Não diz anda, mas não suporta a desordem. Enquanto está comigo, junta papéis, devolve canetas ao cubinho onde são guardadas, levanta-se e recoloca as cadeiras, observando diferenças milimétricas no posicionamento delas, acerta as folhas da impressora, enfim…
Dias atrás perguntei a ela sobre como se comporta em sua casa. Disse que a faxineira já sabe: cada coisa tem seu lugar que de modo algum pode ser mudado. Quando entra em casa seus olhos escrutinam a organização. Briga com o marido a quem classifica como desordeiro. Confessa que nos primeiros tempos juntos as brigas eram constantes. Agora o marido está mais adestrado. Adestrado? Sim, como animais a quem se ensina certas rotinas diárias.
Ela tem consciência de seu problema e é feliz com ele. Confessa ter TOC. Diz que é melhor ser assim que sair por aí, matando gente. Perguntada se já pensou em tratar-se para resolver o problema apenas sorriu. Gosta de si mesma do jeitinho que ela é.
Assim segue a mulher com seu distúrbio obsessivo-compulsivo. O distúrbio psiquiátrico de ansiedade parece ter sido incorporado por ela na categoria “sob controle”. Atravessa os dias cumprindo a rotina de seu ritual pré-estabelecido. Diz-se portadora de uma mania, nada mais que isso. Sabe-se lá como funciona a cabeça dela, se os pensamentos que não consegue controlar estão restritos apenas à mania de ordem. E parece não se preocupar como crescimento de sua obsessão fato que provavelmente acabará afetando as pessoas de seu convívio.
Falar diariamente com alguém que tem TOC nos leva a perguntar se também não temos lá uns toquezinhos por pequenos que sejam. Desde que o meu dentista me submeteu a uma lavagem cerebral sob cuidados com os dentes passei a escová-los muitas vezes por dia. Não será um começo?