Arquivo para janeiro, 2018
Temores na velhice
Quando se fica velho? Não existe data marcada. Aos cinquenta, sessenta, aos setenta, depende de cada um. Há quem diga que a velhice começa quando a dor aparece.
Pesquisa do Datafolha informa que os brasileiros não temem a morte. O s temores dos idosos relacionam-se com dependências física, mental e econômica. Existe o horror a tornar-se dependente, não ao de simplesmente morrer.
Tornar-se dependente de alguém é de fato um horror. A dependência física é terrível, seja com a dificuldade ou impossibilidade de se locomover, sejam as limitações para alimentar-se ou cuidar-se sozinho. Em relação à dependência mental eis, entre outros, o fantasma da Doença de Alzheimer. O progressivo apagamento das memórias e a triste condição a que se é levado no período final da doença realmente aterrorizam.
Mas, em nosso país a dependência financeira talvez seja a que mais precocemente assuste. O problema está ligado à previdência e aposentadoria. Ao parar de trabalhar o aposentado passa a contar, mensalmente, com valores muito inferiores aos que recebia enquanto em atividade. Por outro lado, sabe-se que o Estado de modo algum pode arcar com os custos da previdência, daí a urgente necessidade de reformas nesse setor. Entretanto, não há como resolver o problema da queda de padrão de vida entre os aposentados. Idoso e sem condições de continuar na ativa resta ao idoso enfrentar situações que chegam a ser humilhantes. A queda de padrão acontece justamente no momento em que surgem os inevitáveis problemas de saúde, consequentes ao desgaste do organismo.
Medo da morte? Talvez o resultado da pesquisa, negando o medo da morte, se relacione com algum conformismo diante do inevitável. Aos setenta anos de idade pode-se olhar retrospectivamente ao passado e constatar a proximidade do fim. O peso de temores como os já apontados, a chegada de limitações tantas vezes irreversíveis, as dificuldades de superação de obstáculos antes mais facilmente transpostos, a ameaçadora possibilidade de dependências inaceitáveis, tudo isso concorre para pelo menos um olhar mais sereno em relação à morte.
Semana passada faleceu um professor de quem fui aluno em meu curso de graduação. Fora excelente profissional ao longo de sua vida, preparando gerações de alunos para o futuro exercício de suas profissões. Já entrado em anos o professor foi subitamente vitimado por um AVC que o prostrou ao leito, tirando dele todo o controle sobre si mesmo. Nesse estado permaneceu por poucos meses até que a morte colocou fim a seu sofrimento.
Há pouco tive a oportunidade de ver uma fotografia do professor, já em seu período final de vida. Ao vê-la lembrei-me do homem em atividade, ministrando suas aulas em laboratório, pleno de energia e longe de suspeitar qual seria a natureza de seu fim de vida. O contraste entre minhas lembranças e a dura realidade mostrada na fotografia impactou-me.
O fim da vida em idades mais avançadas reserva situações das quais queremos a todo custo ser poupados. Talvez por essa razão a morte nos surja como a boa amiga que figura no horizonte para colocar fim ao sofrimento. Mas, enquanto ela não vem o que nos resta é torcer para uma vida longa e boa, longe dos temores que tanto nos incomodam.
A náusea
Dia de julgamento do ex-presidente Lula. Ele esbraveja, protestando contra o que qualifica como julgamento político. Seus seguidores vivem desesperadamente o momento de transe. Do outro lado dedos acusadores se levantam. Quer-se o ex-presidente não só condenado como preso.
Lula faz o que sabe de melhor. Sua imensa capacidade de persuasão é propagada por todos os ventos. Dizendo-se vitima das elites que querem destruí-lo veste a camisa dos pobres e trabalhadores de quem se qualifica como legítimo representante. Propaga que as elites não podem aceitar alguém vindo de baixo.
Mas, existem as acusações de corrupção. Avolumam-se acusações de vantagens oferecidas em troca de propriedades e dinheiro. Mensalão, petrolão etc. Lula estaria por trás do imenso processo de corrupção que arrastou o país à pior depressão de sua história.
Enquanto isso a vida segue com seus infortúnios. A miséria das classes menos favorecidas permanece inalterada. Os constantes problemas relacionados à saúde, segurança etc. só fazem crescer. Para além dos discursos tão impactantes uma realidade bastante triste persiste.
Publica-se que no Brasil cresce o número de bilionários. A fortuna dos cinco maiores bilionários do país equivale à renda somada de 100 milhões de brasileiros. O quinto bilionário da lista é proprietário de 27,5 bi; o primeiro de mais de 100 bi.
Diga-se o que quiser, mas não existe perspectiva de que a desigualdade venha a desparecer tão cedo. De modo que assistir a tudo o que hoje se passa no país passa a ser motivo de náusea. Não se acredita em ninguém. Pouca gente escapa. Não se trata de crise de confiança. Está-se vivendo “a desconfiança”.
Naquela noite
Pertenciam ao tempo em que se viajava na boleia de caminhões. Não porque precisassem. Eram filhos bem-nascidos e tinham algum dinheiro. Mas, o convite para uma festa reunia-os em qualquer meio de locomoção.
Chegaram ao anoitecer. O caminhão estacionou na rua de terra, defronte casa de comércio. Um deles pulou da carroceria para obter informações sobre Santana. Onde ficava Santana? No Sul de Minas, uns 30 km à frente na estrada de terra. Ali no Rio Preto que se cuidassem para não seguir direto na estrada que ia dar em São José. No trevo, virar à esquerda e seguir adiante, logo encontrariam Santana.
Bebiam cerveja, cantavam felizes. Iriam à festa. Meu pai sentenciou que era perigoso aquela moçada bebendo em cima do caminhão. Recomendou cuidado à rapaziada. Um deles deu de ombros e sorriu naquele “Deus tá comigo”.
Não sei dizer que horas da madrugada seriam quando ouvimos bater à porta de nossa casa. Meu pai levantou-se e deu com um dos rapazes. Acontecera um desastre. Um deles bebera muito e, na volta, caira do caminhão. Batera a cabeça numa pedra, perdera a consciência e estava mal.
Foi meu pai quem disse aos rapazes que, em verdade, o companheiro de festa estava morto. Seguiram-se os momentos de incredulidade, a busca de um telefone para avisar à família, o desespero dos amigos.
Minha curiosidade de menino me levou à carroceria do caminhão. Encontrei um jovem ensanguentado. Estava deitado e tinha no rosto aspecto sereno. A morte o colhera de improviso, inesperadamente.
Foi o primeiro cadáver que vi. Numa me esquecerei daquela noite. Nem da morte que entrava subitamente na minha vida para nunca mais desaparecer.
Velhice
Chega pra todo mundo, basta aguardar. Muita gente se declara velho antes da hora. Mulher de cinquenta, em forma, bonita, sedutora, reclamando da velhice que, aliás, para ela ainda não chegou. Antecipa sofrimento.
Mas, dá tristeza observar certos capítulos da velhice. Eis o caso de Pelé que é e sempre será notícia. Nós que o vimos jogando nos estádios, guardamos dele as maravilhosas atuações de que era capaz. Dizer que era um gênio é pouco. Poucos humanos terão nascido com a perfeita compleição física do “Rei”. A combinação de genialidade, esplendor físico, habilidade e outras características fez dele o que se tornou para os amantes do esporte.
De modo que não há como não engolir em seco ao ver fotografias atuais desse senhor de 77 anos que um dia abalou os estádios, admirado em todo mundo. Com a saúde em crise o grande jogador segue adiante, admirável como sempre. Mas, sucumbindo, como os demais mortais, aos caprichos da velhice.
Ontem um casal de idosos, aos 71 anos, foi atropelado por um carro na velocidade de 120 Km/h num lugar onde a permitida era a de 60 km/h. As fotos do casal mostram duas pessoas aparentemente felizes e com alguns anos ainda por desfrutar. A mulher que dirigia o veículo feriu-se gravemente. Mas, nem por isso deixa de ser absurdamente responsável pela morte do casal. Nada mais triste que a interrupção violenta de trajetórias.
Um amigo, militante de esquerda, tem-se mostrado sensível a coisas que antes negava ou abominava. Confessou-me atualmente pensar muito na religião, coisa antes inaceitável. Aterra-o o fim da vida e o que está por vir após a morte. Provoco o amigo, perguntando sobre o que teria acontecido ao ateu inveterado de outros tempos.
O amigo me responde que se trata da velhice. Há nela algo insondável que nos leva a curvar-se sobre o nosso espirito, interrogando-nos sobre o significado de tudo isso. Aconselhe-o a se distrair mais, vida mais leve. Reponde que não sabe se isso será possível.
Agora Pelé se levanta da cadeira, aos 77 anos, e corre em direção ao gol.
Sempre Canudos
Não sei se daqui a mil anos não mais e falará sobre Canudos. O fim do arraial, em 1897, permanece vivo nas memórias e vez ou outra reaparece no noticiário. Seguem por aí as muitas interpretações sobre a destruição pelo Exército das forças de Antônio Conselheiro. Os episódios finais relacionados à terceira e quarta expedições continuam entusiasmando pesquisadores e estudiosos.
Mas, este é o Brasil, pátria onde tudo acontece. No momento, a expectativa diz respeito ao julgamento do ex-presidente Lula que está para acontecer. O falatório em torno do caso é grande. Lula se vitimiza, assumindo a posição de perseguido pelas elites. Faz muito bem seu discurso, arrasta atrás de si a confiança de milhares de seguidores que acreditam no que ele diz. Daí a preocupação das autoridades com as possíveis repercussões do julgamento de Lula. Movimentos de trabalhadores ameaçam retaliações. Recomenda-se o fechamento de prédios públicos no dia. No Rio grande do Sul o governo chegou a pedir reforço do Exército o que tem sido tomada como exagero.
Mas, o que Canudos tem a ver com isso tudo? Acontece que num pronunciamento o ex-presidente afirmou que um dos juízes que vai julga-lo é bisneto do general que invadiu Canudos e matou Antônio Conselheiro. O juiz se chama Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e na verdade é sobrinho-trineto do coronel - e não general - Tomás Thompson Flores. Thompson morreu em Canudos durante a ação do Exército no lugar. Mais: o coronel morreu em julho de 1897 e o Conselheiro só morreria em setembro do mesmo ano. Thompson Flores não poderia ter matado Antônio Conselheiro por ter falecido antes dele.
A política envolve um jogo de discursos nos quais inverdades são mais que comuns. Em busca de apoio e aprovação pública usam-se argumentos de toda sorte. Antônio Conselheiro é um ícone dado pertencer ao lado mais fraco e sua comunidade ter sido arrasada pelas forças do Estado. Ninguém enga isso. Mas, não por acaso o ex-presidente cita o Conselheiro. Agora o “neto” do “general” estará incumbido de mais um julgamento em nome das elites.
No Turcomenistão
Confesso não ter notícias desse país até ler, nesta manhã, que lá os carros de cor preta foram proibidos. É a nova lei. Quem tem carros pretos não poderá circular com eles a partir de agora. O jeito é pintá-los de branco ao preço entre U$500 e US1000.
Mais: no Turcomenistão as mulheres são proibidas de dirigir. Quem visitou o país avisa tratar-se de uma das ditaduras mais repressivas do mundo. Não é mole viver por aquelas plagas.
Se você se interessar pelo país vai ler que se trata de uma das antigas 15 repúblicas da então União Soviética. A independência aconteceu em 1991. O país fica perto do Irã, do Cazaquistão etc. A população é de turcomenos embora existam russos, uzbeques, etc. São pouco mais de 5 milhões de pessoas que vivem na região metropolitana próxima da capital, à beira do mar Cáspio.
O Turcomenistão tem proeminência graças as suas estupendas reservas de gás e petróleo. A exploração de petróleo nos últimos anos propiciou crescimento de cerca de 10% ao ano.
Cerca de 80% da área do país consiste de desertos. A grande atração turística chama-se “Porta do Inferno”. Trata-se de uma enorme cratera sempre em chamas depois que os russos atearam fogo a ela, esperando eliminar o gás metano.
“Mundo, mundo, vasto mundo” canta o poeta. Inimagináveis as condições de vida num país distante e gerido por mãos de ferro. Professando religião islâmica do ramo Sunita o povo do país tem, certamente, vida e hábitos diferentes dos que conhecemos. Os sunitas, ao contrário dos xiitas do Irã, comprometem-se com as práticas de Maomé e desejam manter a comunidade unida través de governo formado pela lei e a persuasão. Seguem o Alcorão e a Sharia, além de se basearem sua crença na Suna, livro que relata os feitos de Maomé.
Para ocidentais proibições como a de usar carros de cor preta surgem como estapafúrdias. Impedir mulheres de dirigir é inaceitável. Entretanto, há que se considerar a existência de culturas e religiosidades que nos escapam, embora difíceis de engolir. De todo modo não faz parte do ser humano ser submetido a restrições quaisquer que sejam elas. Daí poder inferir-se que a vida no Turcomenistão não seja agradável para a população, embora desde pequenos os habitantes do país estejam sujeitos a normas que se tornam cotidianas. Em suma: é como se passam as coisas lá.
O inferno é aqui mesmo
O medo do inferno fazia parte dos meus horrores ao tempo de menino. Na igreja o padre alertava-nos sobre os perigos do pecado. Morrer em pecado significava a condenação para arder nas chamas do inferno por toda a eternidade. Devassidão, bebida e a prática do mal estavam entre os grandes pecados que poderíamos cometer. Para evitá-los muita fé, oração e determinação.
Por detrás disso tudo a enigmática figura do diabo. O decaído que se revoltara contra o Criador e fora desterrado para o inferno nada mais fazia que maquinar toda sorte de tentações contra as quais os pobres mortais pouco podiam fazer. Como resistir às tentações da carne durante a explosão hormonal imposta pela adolescência? Como tornar-se infenso às tentações do mundo?
Escapar a tudo isso figurava-se tarefa impossível. Nesse estranho jogo as melhores cartas estariam mesmo nas mãos do Capeta. Mas, havia uma curiosa solução. Muitas vezes ouvi que o problema maior seria morrer em pecado. Arrependimentos sinceros pouco antes da morte significariam a possibilidade de perdão e abririam o caminho para o céu. Essa hipótese, simplista é verdade, servia-nos como socorro, última chance antes de ser fuzilado no paredão. Era assim.
Não sei dizer como andam hoje em dia as recomendações religiosas em relação ao pecado. Entretanto, é crescente o número de adeptos a outras crenças que não a católica romana. Além do que muita gente tem vindo a público para dizer-se ateu.
Não é o caso de aqui se discutir a eterna questão da existência de vida após a morte. Exista ou não, há quem afirme que “o inferno é aqui mesmo”. Ou seja: “aqui se faz, aqui se paga”. Será?
Se observarmos o mundo atual fica difícil acreditar nisso. Não há como não reconhecer a maldade intrínseca ao ser humano. Diariamente recebemos notícias de ações ultrajantes com profundo desrespeito à vida. Um bando que invade uma casa e barbariza a família que nela reside, tantas vezes foge impune. Pagarão? Às vezes alguns com a própria vida durante a prática de outros crimes, alvejados pela polícia.
Mas, há o caso de gente que, vida afora, serve-se da arrogância, da perseguição, do embuste, enfim de maldades que afetam duramente a vida daqueles que com eles convivem. Superiores que tornam um inferno a vida de seus comandados. Então pergunta-se: para esses existe algum tipo de pagamento aqui mesmo, antes da morte?
Ficaríamos nisso durante muito tempo sem obter consenso ou definição. Mas, não deixa de ser estranho quando conhecemos alguém que não se esmerou em ser razoável, sociável e bom sujeito ao longo de sua vida. De repente, tudo vira, inexplicavelmente, para esse tipo de pessoa. Saúde abalada, sofrimento, problema familiares e por aí vai. Será que, pelo menos para esses, o inferno é aqui mesmo?
Minha tia sentenciava: “o inferno é aqui mesmo”. Pelas dificuldades por que passou deve ter morrido convencida disso.
O caso Waack
Tempos trás dei carona para um rapaz. Seguíamos por uma avenida e, ao realizar a conversão para a direita, fomos fechados por uma motociclista. Por pouco não o atropelamos. No momento da quase colisão o rapaz que me acompanhava disse: “coisa de preto”.
Acontece que o meu caronista era um negro. Obviamente, não foi movido por nenhum racismo ao dizer o que disse. Apenas apelou para o manancial de dizeres comuns - e ofensivos - que fazem parte do vocabulário a que se está habituado. Negros, judeus e tantas outras etnias não escapam ao olhar deletério de uma população acostumada a ofender por simplesmente ofender. Mas, no fundo do poço, isso será sempre racismo?
Waack afirma que não. Disse o que disse, mas alega ter sido uma piada. Invoca sua longa e brilhante carreira jornalística para gritar alto que não é racista. Acusa as grandes corporações de covardia diante das redes sociais contra as quais não se propõem a pelo menos dialogar. Termina dizendo que sua obra é testemunho de que não é racista.
Não restam dúvidas de que Waack pagou alto tributo devido a posição que ocupa. Não fora ele jornalista de alto gabarito - sua ausência no Painel da Globo News é terrível - não teria o seu caso a repercussão que alcançou. Mas, era bem ele, vidraça das grandes e deu no que deu.
Não nos cabe afirmar com certeza sobre o foro íntimo do jornalista sobre racismo. Entretanto, não se desconhece que nos tempos atuais vicejam o conservadorismo e o politicamente correto. Tudo bem, mas insuportáveis os novos arautos da verdade que se levantam a todo instante em nome do politicamente correto. Que se veja celeuma estabelecida em torno do problema do assédio sexual. Sem jamais negar o grande drama vivido pelas mulheres constantemente assediadas – e estupradas – é preciso lembrar de que nem tudo é estupro.
Recentemente li que as redes sociais não nada criam, apenas servem para destruir. As “fake news” tornaram-se rotina e a manipulação da informação na internet coloca-nos em dúvida sobre a veracidade do que se divulga. Reina grande preocupação com o que está por vir no período que antecede as próximas e decisivas eleições. Uma delegacia para acompanhar a divulgação de notícias pela internet está em andamento.
Lastimo o acontecido a William Waack. Perde-se com a ausência de sua figura alguém em quem se pode confiar. Criterioso, perspicaz e informado, emprestava-nos alguma serenidade no julgamento dos fatos alarmantes que constituem o cotidiano desse enlouquecido Brasil.
Mas, que fazer?
Nuances do discurso
Nem sempre nos damos conta, mas vivemos num mundo de falas repetitivas. É incomum que ouçamos algo fora dos padrões, algo que nos surpreenda de fato. Observe-se, por exemplo, o discurso político. Terá alguém do ramo nos surpreendido com algo em que não pensáramos?
Tem-se falado muito sobre religião e ateísmo. Ateus de carteirinha reclamam que, em situações agudas, mesmo eles imploram a Deus. Mas, com a ressalva: pronunciam o nome do Senhor, nada esperando. Questão cultural, de hábito.
Um conhecido comentarista de televisão, ateu, falou sobre o chamamento de Deus em momentos difíceis. Relatou que dias atrás perdeu um membro muito querido da família. Na vigília do hospital os parentes oravam, pediam a clemência de Deus. Ele, ateu, também, mas com a ressalva de não acreditar, absolutamente, na eficácia de seu pedido.
No mesmo programa de televisão um padre foi questionado sobre críticas à religião. Sua resposta foi muito interessante. A certa altura disse que os que atacam a religião, entre outras críticas, falam sobre o absurdo de ser vedado o casamento aos padres. Em relação a isso ponderou não entender o sentido dessa crítica. Segundo o padre o problema de não poder se casar pertence a só ele (o padre). Ele fez a escolha e nunca se sentiu cerceado em sua liberdade por isso. Quisesse se casar não teria sido padre. Daí não entender porque os críticos avançam sobre questão que a eles não pertence.
Eis no raciocínio do padre algo incomum, diferente das falas cotidianas. Trata-se de arrazoado no qual, pelo menos eu, não havia pensado.
O filósofo e escritor romeno Emil Cioran discorre sobre o fato de que é a necessidade de se acreditar em algo que nos faz apelar para a religião. Diz Cioran:
“Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência do ridículo.”
O discurso do padre a quem ouvi pela televisão impressiona porque foge ao padrão repetitivo das coisas que diariamente ouvimos. Seria estimulante se pudéssemos ser acossados por modos de expressar que nos colocassem a pensar. O continente de ideias é infinito, mas a mesmice da repetição muito cansativa.
Frio de rachar
A grande onda de frio nos EUA está de amargar. Hoje, quinta-feira, esperam-se temperaturas negativas recordes na costa leste daquele país. Para que se tenha ideia, no Canadá, as Cataratas do Niágara estão congeladas. Frio de rachar. Em algumas cidades os governantes encarecem que as pessoas nãos saiam às ruas. Nas ruas e em torno das casas muita neve. Mortes, aulas suspensas, vento forte, mais nevascas. A situação é alarmante.
Com a onda de frio voos estão cancelados. O transtorno é grande. As companhias aéreas apressam-se em flexibilizar a remarcação de passagens para facilitar a vida dos passageiros.
Anos atrás passei horas no Aeroporto de Guarulhos, esperando voo para New York. Muito tumulto, gente reclamando, até que fomos avisados da suspensão do voo. A tempestade de neve fechara o John Kennedy.
Diante da notícia o jeito foi passar a noite num hotel e esperar o dia seguinte. Enfim embarcamos, mas paramos em Miami. Mais uma vez New York estava fechado.
Depois de uma noite em Miami, marchas e contramarchas para a relocação de passageiros, seguimos ao nosso destino. Confesso que temi a aterrisagem na pista coberta por neve e gelo.
Mas, por que me refiro a esse episódio? Acontece que brasileiro, nato em país tropical, não está habituado a sensações térmicas abaixo de menos 20º C. Nunca me esquecerei da inadequação de minhas roupas àquele frio desumano, tanto que me vi obrigado a substituí-las depressa. Como andar nas calçadas cheias de lama e cercadas por altos blocos de neve com os meus sapatos muito úteis em São Paulo?
Ouvi que ontem, nos EUA, um homem foi encontrado morto do lado de fora de uma casa. Morreu congelado. Fez-me lembrar de gente dentro de carros em estradas interrompidas, lutando conta o frio, morrendo de frio.
Por tudo isso devo dizer que talvez nós, brasileiros, muitas vezes reclamemos demais do calor reinante em nossa terra nessa época do ano. Rapaz, muito frio é bem pior que calor exagerado. Claro, há quem discorde. De resto não existe mesmo unanimidade em nada.