Arquivo para agosto, 2018
O primeiro salário
Leio sobre a tentação de queimar o primeiro salário. Grana no bolso a pessoa mal vê a hora da saída do emprego. Lá fora um mundo repleto de coisas a consumir a espera. O bolso cheio hora de experimentar, pela primeira vez, a sensação de poder comandada pelo dinheiro. Não importa se o dinheiro recebido é suficiente para aplacar os desejos. O que vale é a sensação de fazer parte de um mundo de consumo até ontem talvez inacessível.
Não foi o meu primeiro emprego mas, pela primeira vez, recebia um salário mais substancial. Àquela altura da vida pesavam-me os baixos ganhos, insuficientes para fazer frente às contas do mês. Dívidas de pequena monta acumulavam-se, sem solução. De modo que aquele novo primeiro salário significaria a redenção, mudança de patamar.
No dia de receber compareci à sala da empresa na qual se faziam os pagamentos e sai de lá com o belo cheque do primeiro salário. Estava feliz da vida, louco par retornar à casa e festejar.
Entretanto, como se diz, alegria de pobre dura pouco. Não saíra ainda do prédio quando recebi o recado de que o diretor da empresa queria me falar. Era o cara que me contratara, aquele que apostara em mim, selecionando-me em meio a uma penca de candidatos.
Depressa tomei elevador e logo estava na sala do diretor na qual fora introduzido por uma bonita recepcionista. Sentei-me diante da mesa de trabalho e, minutos depois, chegou o homem, muito sorridente e amigável. Falou-me sobre a satisfação com o meu desempenho e o acerto da minha contratação. Contou-me de sua pressão na reunião com os patrões para que justamente eu recebesse o emprego.
Até ai tudo bem. Cheque na carteira, elogios do diretor, como o mundo era bom. Entretanto, o amigável diretor não me chamara só para elogios. De repente, eis que me disse que, em verdade, me chamara porque necessitava, com urgência de um empréstimo. O valor? Ora, exatamente o do cheque que eu acabara de receber. Passaria a ele o cheque que me devolveria em exatamente um mês.
Atônito, não soube o que dizer. Precisava, desesperadamente, do emprego cuja continuidade dependia justamente daquele sujeito. Outra atitude não tive que passar-lhe o cheque e ir para casa desolado.
Mas, o diretor honrou sua promessa. No mês seguinte devolveu-me o dinheiro e nos anos que se seguiram mantivemos muito bom relacionamento.
Se bem me lembro estive ligado àquela empresa por 10 anos. Depois que sai não mais ouvi falar sobre o diretor. Até recentemente. Pouco tempo atrás encontrei-me, por acaso, com um antigo funcionário daquela empresa. Através dele fiquei sabendo do destino de muita gente que trabalhara comigo naquela época. A certa altura lembrei-me de perguntar sobre o diretor. Relatou-me o antigo funcionário que tempos depois da minha saída se soube que o diretor sempre fora viciado em jogo. Participava ele de mesas de jogos com apostos altíssimas. Acabou quebrando. Foi despedido e desapareceu.
Essa revelação teve o condão de ressuscitar em mim a antiga dor. Então aquele empréstimo, tão dolorido, fora feito para que o diretor saldasse alguma dívida de jogo. Retornei ao rapaz que fui e à minha viagem num ônibus circular, de volta para casa. Era noite e seguia eu torturado por não saber como pagaria o aluguel e as contas de minha família. E não ajudara a um amigo necessitado de um empréstimo. Sofrera para que ele pagasse dívida de jogo.
No mundo dos chefs
Culinária é assunto para quem entende. Criado na base do arroz-feijão- bife- batata frita tenho consciência de que meu paladar não seja muito sofisticado.
Certa vez jantei num restaurante no qual militava conhecido chef. A bem da verdade não consegui sentir a magnitude daquela famosa cozinha. Para começar o estranhamento com alguns pratos, para mim intrigantes e desconhecidos. Era bom. Muito bom. Mas eu não comeria aquilo todo dia.
Noutra aconteceu-me jantar num restaurante de Montreal. Não foi pelo fato do cardápio em inglês: cada prato tinha um título que não se relacionava muito com o seu conteúdo. Em vão o garçom me explicou o significado de cada um daqueles títulos. No fim optei por uma massa que degluti com algum esforço.
Noutra, ainda, fui ao casamento do filho de um amigo. Muito ricos os pais do rapaz promoveram a festa num lugar chiquérrimo. O responsável pela comida foi um chef de renome. Acontece que a maioria dos convidados não se deu bem com a comida e de modo algum pode apreciar aquelas iguarias. Arroz, bife e batatas fazem um estrago danado na gente.
Está na moda a TV apresentar programas nos quais cozinheiros preparam pratos, ensinando os espectadores em como fazê-los. Isso sem falar em concursos nos quais os participantes preparam pratos para o julgamento de premiados chefs. São programas interessantes que nos fazem refletir sobre a beleza da grande culinária.
Mas, como em outros setores, a culinária também tem os seus grandes. Trata-se de chefs badaladíssimos, alguns deles louvados por ter implantado significativas mudanças na arte de fazer boa comida. Hoje o mundo lamenta a morte do chef francês Joël Rubuchon. Ele detinha o maior número de estrelas do “Guia Michelin”. Sob seu comando 26 restaurantes e cafés em nove países. Considerado o cozinheiro do século XX, Rubuchon renovou a cozinha francesa daí sua morte ser lamentada por chefs estrelados, em vários países.
A culinária é arte para poucos. Infelizmente o que se vê por aí são pratos elaborados sem cuidado e a preços exorbitantes. Difícil servir-se bem nesse manancial em que o lucro antecede a qualidade.
1975
- Mataram o Herzog
- Quem?
- O Herzog, porra.
A conversa se deu enquanto esperávamos pelo elevador. O meu amigo estava transtornado. A ditadura seguia feroz, estávamos todos ameaçados.
A bem da verdade eu não sabia quem era o Herzog. Depois soube que trabalhava na TV Cultura e era militante do Partido Comunista. Recolhido ao Doi-Codi par ser interrogado, apareceu morto. Enforcara-se com o cinto de pano do macacão que usava. Assim a morte de Herzog foi noticiada. Todo mundo sabia que a explicação oficial era falsa. Em verdade o jornalista sucumbira em razão de maus tratos e tortura. A linha dura não perdoava ninguém.
Em 75 Geisel era o presidente. Seu governo seria marcado pelo esforço em torno da abertura. Os militares haviam já passado do tempo no poder. Mas, só dez anos depois, Tancredo Neves seria eleito presidente e morreria antes de assumir o cargo. Era o fim da ditadura.
Tempos difíceis aqueles. O amigo que me deu a noticia da morte do Herzog era, ele mesmo, fugitivo por ter participado de ato terrorista. Disso só vim a saber anos depois. Vivia em São Paulo sob nome falso. Sujeito inteligente, intelectualizado, era um doce de pessoa. Mas, como vim a saber depois, adepto da violência. Esse cara morreu precocemente. Apaixonado por uma jovem que lhe deu o cano, matou-a e suicidou-se. Um doce violento.
Hoje em dia o país está mergulhado numa onda de violência. Dizem por aí que é chegada a hora do retorno da força. Ouço pessoas dizerem que falta governo, falta reação à bala. Não sei se as novas gerações têm noção do que foi o longo período de trevas entre 64 e 85.
Geisel morreu em 1996 e agora se noticia sobre sua conivência com crimes praticados pela ditadura militar. Quanto a Herzog ainda hoje seu caso continua em aberto. Agora a Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de condenar o Brasil por não esclarecer o crime e ordenou a retomada das investigações.
O fato é que os horrores da ditadura permanecem vivos. Há quem os negue. Mas, quem viveu naquele período conhece a verdade.
Aquela foto de Herzog enforcado é terrível.
Fotografias antigas
Recebo, via e-mail, fotografia de tempos passados. São pessoas defronte uma igreja, cada uma portando um instrumento musical. A banda é pequena, são poucos músicos. A pessoa que me envia a foto pergunta se reconheço os músicos. Passo algum tempo observando as faces em preto-e-branco. Até que reconheço dois deles, aliás irmãos. O mais alto trabalhava como ajudante de pedreiro e jogava na ponta esquerda do time reserva - o segundo quadro - do esquadrão local. O mais baixo foi, vida afora, um tipo encrencado. A mãe dele tinha um pequeno cinema que exibia filmes nos fins de semana. Bancos de madeira, tela pequena, por ela desfilavam John Wayne ou outros stars americanos. Mas, o filme era de celulose e, vez ou outra, arrebentava em meio à sessão. Só o baixinho sabia colar as partes e dar seguimento a diversão da plateia. Mas, ele era encrencado… Convencê-lo a consertar o filme era um grande problema.
Reparo nos outros, em vão. Vou desistir, mas sou salvo pela memória. Está ali um pedreiro que construiu casas do lugar. Ao lado dele um rapaz que se casou com moça simpática, mas acabou se entregando aos braços de uma amante. Esse rapaz costumava beber e a sorte foi a ele madrasta. Por volta dos 30 aconteceu-lhe um derrame que o fez incapaz. Então a amante caiu fora. O incrível é que a mulher, a quem abandonara, enterneceu-se com a situação do ex-marido. Trouxe-o para casa e cuidou dele até que a doença o levou.
Todos mortos. Histórias de vida posteriores ao momento em que foram flagrados defronte a igreja. As fotografias têm o dom de eternizar não só momentos, mas, também, memórias. Assim como eu ainda existem por aí uns poucos capazes de reconhecer aquele pequeno grupo de mortos. Mas, não se passará muito até que também estejamos desaparecidos e ninguém se lembrará dos moços da fotografia, os jovens algo sérios, compenetrados em seu ofício de participar de uma banda.
Fotografias antigas vez ou outra saem de sua reclusão como a solicitar que os mortos nelas impressos sejam relembrados por alguém. Diziam os mais velhos que isso não acontece por acaso. Quando uma gaveta é aberta, depois de muito tempo, e alguma fotografia dela é destacada isso aconteceria com propósito certo. Seriam os mortos a decidir para que mãos suas imagens deveriam ser encaminhadas. A ser isso verdade sempre restará aos desparecidos um sopro de vida a iluminar suas sombras no território da morte.