Arquivo para novembro, 2019
De trem ao Rio
O trem de segunda classe passava à meia-noite na estação. Não sei em que hora saia de São Paulo, mas chegava ao Rio no começo da manhã seguinte. O problema para os passageiros que embarcavam no caminho era a parada na região de Cruzeiro. O trem de segunda classe saia dos trilhos principais, deixando caminho aberto para o luxuoso Trem de Prata (Trem de Aço) que vinha do Rio. A espera oscilava entre duas e três horas. Em plena madrugada o passageiro armava-se de paciência para permanecer no duro assento de madeira, aguardando.
Aliás, o segunda classe era todo ele desconforto. O preço inferior da passagem servia para justificar a falta de qualquer arremedo de coisas relacionadas ao bem-estar. As pessoas sentavam-se em seus lugares, preparadas para a noite de sofrimento. Aos mais velhos reservava-se a certeza de dores nas costas. Aos mais jovens talvez incomodasse um torcicolo.
Fiz essas viagens algumas vezes. De trem para o Rio, fosse o que fosse, era chique. Mas, o sofrimento da noite insone era compensado no momento em que o trem chegava ao seu destino, a Estação de D. Pedro II. Você estava no Rio, cidade realmente maravilhosa na qual a violência nem de longe era comparável à dos dias atuais.
Não longe da estação estava a Cinelândia que não sei se hoje mantém sinais do que era nos anos sessenta do século passado. Ali se localizavam teatros, bares, boates, restaurantes etc. A Cinelândia fervia à noite com suas luzes e encantos. A mim não importava muito o fato de mal ter no bolso o dinheiro para a passagem de volta. Era “estar” ali. Circular pelo grande agito daquela cidade maravilhosa da qual, habitualmente, recebíamos notícias pelas ondas de rádio. O Rio do carnaval, da folia que nunca terminava. O Rio do samba, das mulatas, das vedetes, da malandragem, da política, do Cristo Redentor, do Pão de Açúcar, da Rádio nacional, do Correio da Manhã etc. O Rio, pô. O Rio mágico tal como se apresentava aos olhos de um adolescente vindo do interior.
As minhas aventuras nas plagas cariocas duravam no máximo três dias. Duas noites mal dormidas nos bancos da Estação D. Pedro II eram demais mesmo para um rapazote. Então eis que o santo trem de segunda classe me devolveria ao interior de São Paulo, onde vivia. Num desses retornos passei mais de 24 horas dentro do trem, parado na serra. Um acidente resultara no bloqueio da linha. Mas, no fundo, tudo era festa.
Ao longo dos anos retornei algumas vezes ao Rio. Mas, a cidade sempre linda, pareceu-me ter perdido pelo menos parte do antigo encanto. Hoje em dia o Trem de Aço e o de segunda classe não mais correm nos trilhos entre São Paulo e o Rio, o que é uma pena. Havia muito de aventura naquelas travessias entre os dois estados que se ligavam por locomotivas e vagões.
A segunda instância
O Gaiola tinha dado golpe grande num clube de futebol de São Paulo do qual fora secretário. Eu o conheci anos mais tarde, depois que saíra da prisão. Era um rábula de talento. Militava num escritório, na capital, ocupando-se da defesa de todas as causas. O proprietário do escritório exercia várias atividades de modo que deixava ao Gaiola os rendosos casos que defendia.
A primeira vez que ouvi falar sobre o Gaiola foi através de meu pai que o fora visitar no presídio. Achara-o magro e um tanto abatido, embora melhor de saúde por estar afastado do álcool. Isso porque o Gaiola fumava bastante e tomava uns bons tragos.
Coisa impactante para quem o conhecia foi o momento da prisão do Gaiola. Ele foi surpreendido pela polícia em plena Av. São João, na capital. Repórteres fotográficos documentaram o momento: a foto do Gaiola saiu na primeira página do jornal “Última Hora”. Na foto ele demonstrava surpresa, olhos esbugalhados.
Não sei quantos anos o Gaiola cumpriu. Aliás, o apelido “Gaiola” viera do fato de ser preso. Mas, me lembrei do Gaiola agora, quando se divulga que o STF votou contra a prisão em segunda instância. Daqui para frente só irão para a prisão pessoas condenadas, mas só após se esgotarem todos os recursos possíveis de defesa. Hoje o Gaiola contaria com mais tempo sem ser preso.
O Gaiola pertenceu a um tempo no qual a violência existia, mas nem de longe seria comparável ao que hoje acontece. Não há dia em que não se recebam notícias alarmantes sobre episódios escabrosos. A vida deixou de valer qualquer coisa. Mata-se por matar, impunemente. Ao cidadão comum cabe cuidar-se e contar com a sorte.
É nesse contexto que devedores da lei passam a contar maiores possibilidades - e tempo - de não serem recolhidos à prisão. Verdade que a Constituição de 88, atualmente vigente, tem texto favorável à decisão tomada pelo STF. Mas, dá medo. A impunidade gera medo. Os crimes perpetrados geram horror.
Agora é esperar. Afirma-se que, a partir de agora, muita gente que está nas prisões será devolvida às ruas, gozando da prerrogativa garantida pela decisão do STF.
Os próximos meses darão a medida exata das consequências - ou não – da difícil decisão tomada pelas excelências do STF.
Aventura em Minas
Excursões de estudantes são festivas. Muitas delas envolvem formandos em comemoração ao encerramento de ciclos de estudos.
O mundo mudou muito nos últimos cinquenta anos. De modo que referências a acontecimentos de passado distante poderiam soar estranhas aos jovens de agora. Mas, talvez baste lembrar a eles que naqueles tempos não existiam celulares e internet, aliás ninguém ao menos sonhava com isso. De modo que, uma vez dentro do ônibus e na estrada, ficava-se incomunicável.
Termináramos a quarta série do ginásio e recebemos o presente de uma excursão a Minas Gerais. A viagem se realizaria num ônibus, se não me engano cedido pelo governo do estado. Assim, partimos, felizes, colegas, amigos inseparáveis. A Fernão Dias, rodovia federal que liga Belo Horizonte a São Paulo, não era duplicada. Daí a lentidão de uma viagem quase sempre interrompida pelo grande trânsito de pesados caminhões. Mas, eis que chegamos a Belo Horizonte num fim de tarde e fomos alojados num grande dormitório de uma escola.
Iniciava-se produtivo período de grande valor cultural para o qual não estávamos preparados. Meninos do interior, certamente impressionou-nos a capital mineira com seus prédios e traçado de ruas sempre retas. Lembro-me bem do palácio do governo e da praça defronte a ele. Perto dali uma sorveteria na qual compravam-se deliciosos gelados.
Entretanto, a maior conquista que teríamos aconteceria nas vistas a cidades próximas como Ouro Preto, Congonhas do Campo e Mariana. A Congonhas que conhecemos era, naquela época, despojada dos cuidados hoje adotados em relação às obras do Aleijadinho. No Santuário de Bom Jesus de Matosinhos as capelas eram abertas para visitação. Estive, por exemplo, ao lado das obras do grande artista do barroco. Aliás, essa primeira imersão do barroco teria, pelo menos para mim, profundo impacto: não seriam poucas as vezes em que, ao longo do tempo, eu me deixaria perder naquela região, mormente na sempre querida Ouro Preto.
De Congonhas também trago a curiosidade e ter visto em ação o famoso médium Zé Arigó. Circulávamos pelas ruas da cidade quando, por acaso, demos com pequena multidão, postada diante de uma janela pela qual podia-se ver o médium em plena atividade.
Visitei as igrejas de Ouro Preto, guardando para sempre o encanto da Igreja de São Francisco. No Museu da Inconfidência falaram-nos sobre a Inconfidência Mineira e seus participantes. Em Mariana ouvi recital no qual destacava-se a poesia de Alphonsus de Guimarães - o solitário de Mariana.
E poderia prosseguir falando de lugares nos quais eu e meus amigos nos divertimos tanto e nos instruímos. Mas, o tempo passou. Daquele grupo muita gente segue por aí, uns tantos outros já desertaram da vida. Permanecem as imagens, as faces jovens que retenho na memória, muitas delas que não mais revi.
Essas lembranças voltaram-me hoje ao presenciar a saída de uma excursão escolar. Lá iam aqueles jovens, cheios de alegria e energia. Seguiam num ônibus moderno, cada um com o celular que os torna aptos a comunicar-se com a gente de casa.
Então, voltou-me meu retorno à casa de meus pais, depois de dez dias em Minas. Lembro-me bem do meu quarto, das incontáveis horas de sono reparador após a longa viagem de volta pela Fernão Dias. Inesquecível a imagem de minha mãe, acordando-me e a perguntar sobre o que, afinal, eu vira lá em Minas.
Eu vira.