Giovanni Papini
Você pode escrever sobre tudo ou nada numa manhã de sol nas montanhas. Também pode ficar em silêncio, ouvindo o barulho do vento suave entrecortado pelo canto dos pássaros que nunca se cansam.
Pode, ainda, perguntar-se sobre o significado de tudo e, depressão avizinhando-se, socorrer-se com algum livro de uma antiga biblioteca, da qual restaram poucos volumes.
Livros velhos guardam o pó de outros tempos e exalam odores capazes de reconstituir impressões adormecidas. Basta ter um só deles em mãos para que a biblioteca que conhecíamos e à qual ele pertenceu se erga das cinzas, imponente no ar, tão real que podemos tocá-la com mãos que já não são as nossas, mas das pessoas que fomos no passado.
Abro a porta da estante, pego um livro ao acaso e de repente lá está toda a biblioteca desfeita à minha frente, tão vívida que posso ler nas lombadas alguns títulos e mesmo supor que posso buscar certo livro que se encontra num canto, atrás de uma pilha, ali onde o deixei há muitos anos.
O livro que me entroniza no passado e que agora está em minhas mãos chama-se “Loucuras do Poeta”, de Giovanni Papini. Trata-se de uma edição portuguesa, sem data, publicada por “Livros do Brasil, Limitada – Lisboa”, distribuída no Brasil pela “Editora Globo – Porto Alegre”.
Em “Loucuras do Poeta”, Papini dá a conhecer alguns ensaios nos quais se revelam o poeta e o pensador que faz uso de alegorias muito próximas de parábolas. Do livro me é particularmente caro o texto “O Congresso dos Loucos” ou “Da loucura dos sãos”, verdadeira parábola acerca de uma reunião de loucos que protestam contra o seu aprisionamento em manicômios. A cada momento um dos loucos toma a palavra e o tom dos discursos é a reconquista da liberdade já que as pessoas consideradas normais e não sujeitas à reclusão são muito parecidas com eles – os loucos - em seus hábitos, ações e pensamentos.
Giovanni Papini (1881-1956), escritor italiano, tornou-se católico fervoroso após longo período de ceticismo. Entre suas várias obras destaca-se, segundo a crítica européia, o livro “Gog, uma coletânea de contos filosóficos escritos em estilo satírico. Admirado por escritores como Jorge Luis Borges, Papini escreveu mais de 60 livros destacando-se, além de “Gog”,”Palavras e Sangue”, “Trágico Cotidiano”, “Juízo Final” (contos) e “Um Homem Acabado” (autobiografia) . Seus livros fazem parte do que de melhor foi publicado em língua italiana no século XX.
A lembrança de Giovanni Papini retorna muito forte nesta manhã de muito sol nas montanhas tornando-me capaz de abrir uma estante imaginária e dela retirar um livro a muito perdido, sobre o qual não tenho mais notícias. Na verdade desse livro me restaram apenas a memória da publicação portuguesa e fragmentos de um único ensaio, justamente o citado “O Congresso dos Loucos”.
A literatura tem dessas coisas: ela nos permite participar de aventuras imaginárias, criar ambientes como esse de uma manhã de sol nas montanhas com pássaros cantando, reconstruir bibliotecas perdidas, devolver-nos páginas esquecidas de livros e libertar-nos da realidade imposta por manhãs nubladas, passadas em quartos fechados.