O religioso do jardim
Encontrei na minha caixa postal o cartão de um pedreiro, oferecendo os seus serviços. O homem se chama Zalboeno e se apresenta como especialista em vazamentos, mormente os causados por chuvas. Nesses tempos de tempestades é bom ter um endereço assim, quem sabe venha a precisar dele.
É a segunda vez que ouço falar sobre alguém chamado Zalboeno. O Zalboeno anterior não era pedreiro, mas estava no ramo: tinha-se por construtor de personalidades às quais buscava moldar utilizando princípios nada convencionais.
O primeiro Zalboeno era um religioso. Muito claro e magro, perfil ariano, não fora a batina passaria por um desses jovens militares nazistas que figuram nos filmes. Sabem aqueles mocinhos aloirados que dirigem jipes ou assessoram militares graduados nos filmes de guerra? Pois o Zalboeno a quem conheci seria o retrato de um deles, sem tirar nem por, inclusive nos detalhes do cabelo cortado à escovinha e o semblante fechado.
Mas, entre um jovem nazista e um religioso extremado existem diferenças significativas, embora não se descarte a possibilidade de que ambos possam agir de modo semelhante. No fundo trata-se de uma questão ideológica ligada aos símbolos em nome dos quais se atua: no caso do jovem nazista, Hitler, evidentemente; no religioso extremado, Deus, simplesmente.
O primeiro Zalboeno agia em nome de Deus, tendo como fundamento o texto bíblico. Creio que em poucos religiosos terão se manifestado com tanta clareza os contrastes entre o Velho e o Novo Testamento. Do Velho Testamento Zalboeno retirava o rigor de Deus sempre pronto a punições exemplares àqueles que não seguiam à risca os ditames das tábuas da lei entregues por Ele a Moisés; do Segundo Testamento Zalboeno copiava um pouco da bondade do Jesus dos evangelhos, embora demorando-se nas críticas do crucificado aos fariseus. Daí fazerem parte do discurso do primeiro Zalboeno expressões como “fariseus”, “sepulcros caiados” e outras com as quais o filho de Deus condenava o modo de ser dos homens falsos que viviam às portas dos templos de sua época.
Era com termos como já os citados que o primeiro Zalboeno se dirigia a nós, os jovens internos do colégio onde ele servia. Tratava-nos com rigor e ao menor deslize, aplicava-nos punições terríveis. Era de seu gosto particular atribuir-nos o castigo das “páginas de cópia”, isso significando copiar textos de livros. O número de páginas a serem copiadas nem sempre condizia com a infração cometida; na verdade esse número mais variava em função do humor do religioso, quando não de sua antipatia por esse ou aquele jovem. Foi assim que eu mesmo cheguei a dever a ele mais de 100 páginas de cópia, dado que as penas aplicadas às infrações cometidas eram cumulativas.
Outro aspecto da pedagogia do nosso preceptor religioso era o castigo de decorar poemas inteiros que seriam recitados diante de todos os colegas. Foi assim que me vi obrigado a decorar vários poemas, entre eles o I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, inteirinho! Aliás, desse longo poema trago, ainda hoje, fragmentos na memória. Acrescento que graças a esse fato muito cedo desenvolvi grande ódio a toda a forma de manifestação poética. A explicação me veio anos depois: decorávamos por obrigação, sem entender direito aquilo que repetíamos. Em todo caso, foi bom: quando passei a entender e amar poesia eu já retinha muitas delas na memória.
A máxima punição aplicada pelo grande Zalboeno consistia em raspar a cabeça dos temperamentos mais indisciplinados. Imagino a repercussão de uma coisa assim nos dias atuais quando uma simples palavra inadequada a um aluno chega aos noticiários. Mas o primeiro Zalboeno chegou a fazer isso algumas vezes, tanto que acabou sendo afastado de suas funções.
Hoje sei que o religioso a quem me refiro era um homem torturado. Pesava sobre ele uma imensa culpa pelos pecados do mundo; a retidão absoluta figurava a ele como único caminho. As normas para uma vida reta buscava ele nas páginas da bíblia, livro que deve ter lido à exaustão sem conseguir abarcar verdadeiramente o seu significado.
Quando saí do colégio, Zalboeno já não era preceptor e nem fazia parte da equipe de professores. Poucos anos depois, prestei um vestibular no Rio de Janeiro e, enquanto esperava para entrar na sala de exame, vi, através de uma grade, um homem ainda moço circulando entre os canteiros de um jardim. Ele usava batina, tinha os olhos fixos no porvir e carregava um pesado livro nas mãos. Era o primeiro Zalboeno, levando consigo a sua inseparável bíblia.
Depois desse dia, nunca mais o vi. Deixei-o ali, entre as flores, com o grande livro a ditar-lhe os passos e os pensamentos. Depois a vida prosseguiu e eu o esqueci. Até esta manhã quando encontrei na minha caixa postal o cartão de um pedreiro chamado Zalboeno e o passado me devolveu a imagem do homem religioso meditando no jardim.