Retratos
- Fiu,fiu,fiuuuuu.
O menino assovia avisando que o jogo deve parar porque está na hora do trem da Central do Brasil. As crianças correm; um rapazote espigado pega a bola e a segura debaixo do braço com ares de proprietário.
Agora o trem apita e logo a locomotiva aparece puxando os vagões. As crianças estão sentadas na calçada esperando o trem passar.
Logo depois o jogo recomeça e é a vez do sorveteiro gordo passar no meio da criançada empurrando o carrinho.
Faz calor. O sorveteiro segue lentamente até que, de repente, curva-se e cai. Dois homens que passam o ajudam a levantar-se. Um dos homens acompanha o sorveteiro até casa dele, ajudando com o carrinho.
Mais tarde o sorveteiro vai ao médico. Tem os pés inchados e o médico avisa que é problema do coração. A solução é tratar-se em São Paulo, no Hospital das Clínicas.
O sorveteiro pega o trem da manhã para São Paulo. Ninguém vai com ele à estação, nem mulher, nem filhos. No meio da viagem os pés incham demais: ele tira os sapatos e adormece. Quando acorda verifica que alguém roubou os seus sapatos. Descalço, ele desembarca na estação rodoviária e desse modo se apresenta no Hospital das Clínicas.
A última notícia sobre o sorveteiro é a do roubo dos seus sapatos. Um mês depois uma cunhada dele vai a São Paulo procurá-lo no Hospital das Clínicas. Lá é informada de que o cunhado morreu e seu corpo está no IML à espera alguém que o reclame.
Lembrei-me desses fatos hoje de manhã ao encontrar, em meio a velhos papéis, duas fotos. Numa delas vêem-se meninos sentados na calçada esperando a passagem do trem. Na outra está um homem gordo e sorridente junto do seu carrinho de sorvetes.
O sorveteiro era meu tio; a cunhada que foi procurá-lo, minha mãe. Do sorveteiro e dos meninos sentados na calçada restaram essas fotos que tornei a guardar e talvez nunca mais tenha ocasião de revê-las.
As memórias se apagam, lentamente, como as fotos que se desbotam. Do mesmo modo desaparecemos: devagar, desbotando, para sempre.