Atearam fogo ao ônibus
Um dos problemas relacionados à passagem dos anos é o de que, a certa altura, ousamos ter a impressão de que já vimos de tudo e nada mais poderá nos surpreender. O cotidiano é de fato repetitivo, temos os nossos horários, lemos os jornais mais ou menos à mesma hora, almoçamos, jantamos etc. Os problemas que nos afetam podem se apresentar com pequenas variantes, mas exceto por uma enorme quebra em nossa rotina, podemos dizer que as coisas se passam segundo uma lógica esperada.
Não se está a dizer que inexistem surpresas. O recente terremoto do Chile nos surpreendeu, catalisou as nossas atenções e, ainda agora, acompanhamos de perto os desdobramentos dos infortúnios que assolam o povo chileno. Hoje mesmo comenta-se sobre o erro da marinha chilena ao retirar o alerta de tsunami, fato que pegou de surpresa as populações litorâneas com terríveis consequências. A isso se acrescenta a recente tragédia acontecida no Haiti que tanto nos consternou, justamente causada por um terremoto.
Outra desgraça que nos aflige é o crime que, por ter-se tornado cotidiano, banalizou-se. Se você toma café de manhã com a televisão ligada em algum noticiário, diga lá se as imagens sobre algum assassinato pioram a sua digestão ou o fazem parar de comer. Se você chega a casa no início da noite e está tomando uma taça de um bom vinho após um dia e tanto, conte aí se as barbaridades exibidas por um desses programas policiais televisivos interfere no seu paladar a ponto de fazê-lo deixar de lado o precioso líquido.
Com esses e outros arrazoados nem tanto sólidos o que se quer demonstrar é que nos habituamos até mesmo com acontecimentos em geral inaceitáveis. De repente – e para tristeza geral – passa-se ao estágio de entendimento de que o mundo é assim e se eu levar a sério tudo o que se passa por aí o jeito é me submeter a uma lobotomia ou deixar de viver no planeta.
Entretanto, o horror não tem limites. As imagens de destruição causadas por um terremoto nos atingem num plano superior, aquele que nos dá conta da fragilidade de nossa espécie diante de forças incontroláveis. Acontecimentos de tal ordem nos falam sobre a possibilidade do fim da vida no planeta e o grande medo de que, afinal, a história da humanidade nada mais seja do que um breve capítulo nessa grande orgia de tempo que envolve bilhões de anos. Isso nos traz o sentimento de não passarmos de grãos de poeira, apesar de toda a nossa empáfia e pretensões.
Vá lá que seja assim. Entretanto, em relação ao crime as coisas se passam de modo diferente porque os atos criminosos simplesmente não precisam, nem devem acontecer, embora estejamos habituados à ocorrência deles. Fica, portanto, o nosso asco represado, numa espécie de estado de latência que nos leva a “aceitar o mundo como é” porque o desânimo nos induz à errada compreensão de que pouco ou nada pode ser feito para deter a marcha da criminalidade.
Ocorre que o nosso estado de latência, esse ver sem sentir, essa disposição para ignorar o óbvio como meio de sobreviver, tudo isso tem limites. De fato, algo tão medonho pode vir a acontecer, despertando-nos do estado de letargia voluntária que nos impomos. Quando isso acontece, ocorre uma quebra de rotina e, finalmente, a nossa repulsa aflora em toda a sua intensidade.
Exemplo? Ora, a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, já foi tema de filme e consta que está sendo protegida por força policial. Ontem, na Cidade de Deus, foi preso um rapaz, traficante de drogas – papelotes de cocaína. Em protesto, os comparsas do rapaz pararam, aleatoriamente, um micro-ônibus, atirando pedras e explosivos contra ele. No momento em que a porta foi aberta, um dos meliantes jogou gasolina para dentro e ateou fogo. O micro-ônibus estava com passageiros em seu interior; uma mulher tentou descer, caiu entre as chamas e foi pisoteada, sendo salva por outro passageiro. Quinze pessoas sofreram queimaduras em mais de 30% de seus corpos e estão internadas.
É preciso repetir que a escolha do micro-ônibus foi aleatória. Poderia ser qualquer outro. O que importava aos bandidos era o “protesto” sob a forma de aviso para que novas prisões não se repitam. Note-se que o motorista e os passageiros nada tinham a ver com o caso da prisão do traficante. Eles simplesmente passavam por ali naquele momento, deram o azar de serem escolhidos, ao acaso, para morrer queimados.
Agora imagine-se tomando o café da manhã antes de sair para trabalhar. O noticiário da manhã que você está assistindo, meio distraído, pela televisão, apresenta as desgraças de rotina. De repente são exibidas imagens de um micro-ônibus queimado e de um homem, numa maca, narrando , entre lágrimas, a brutalidade de que foi vítima. Ele chora, agradecendo por ter escapado e dizendo que tudo o que quer é viver para cuidar do filho.
Então, você sai do estado de letargia em que se encontra: não existe catarse possível para um horror assim. Você para de comer, levanta-se, é preciso fazer algo, alguém tem que impedir que coisas assim aconteçam, passou da hora de decidir entre o que é humano e o que não é; daqui para frente tem que ser olho por olho, dente por dente, assim se expressa a sua revolta.
No fim resta o vácuo, a sensação de impotência, a certeza de que é preciso acabar como crime e condenar bestas a viverem como bestas. Fatos como o ocorrido ontem, na Cidade de Deus, não podem mais acontecer.