Queimando o passado
- Brasileiro não tem memória.
Quem me diz isso é um rapaz que mora no quarto andar. Eu o ajudo, abrindo a porta do elevador de serviço onde me encontro. Ele vem carregado, trazendo duas caixas cheias de papéis. Está sem camisa, exibindo várias tatuagens no tórax e nos braços.
O rapaz coloca as caixas no chão e eu aproveito para cutucar:
- Então, brasileiro não tem memória?
- Ah, não tem, não. O senhor se lembra do Collor? Pois todo mundo se esqueceu dele. Fez o que fez e está aí, o homem é senador e vai voltar ao governo de Alagoas.
A minha intenção é jogar conversa fora. Digo:
- Mas não existe o perdão? Um cara erra e o erro é para sempre? Não existe regeneração?
- Ah, professor, que nada. Malandro é malandro.
Chegamos ao térreo, abro a porta do elevador e o rapaz sai com as duas caixas. Mostro interesse:
- Quanto lixo, hein?
- São documentos, professor. Tudo o que se refere à gente vira documento. Por isso vou por fogo em tudo. Vou queimar o passado, entende?
Queimar o passado! Eis aí uma idéia interessante. Passar o apagador em coisas que detestamos nos lembrar. Sabe aquela coisinha feia que você fez meio sem querer e ainda hoje tem vergonha de ter feito? Pois é só queimar algo relacionado a ela e ficar com a ficha limpa. Trata-se de uma lobotomia por via indireta, sem lesar o cérebro.
Enquanto reflito sobre isso o rapaz se afasta, carregando o seu passado que, pelo visto, cabe dentro de duas caixas pouco maiores que as de sapatos. Que lembranças e provas estará ele queimando?
Na verdade pouco importa o conteúdo das caixas. O que vale é a certeza cega de que é possível zerar a vida num dado momento e isso está ao alcance de todos: basta reunir tudo o que possa servir como prova de que você existiu antes do dia de hoje. Vale tudo: contas com o seu nome, escrituras, intimações, cartões postais, certidões, documentos, coisas que escreveu etc. E não se preocupe com o testemunho de pessoas que o conhecem porque, como diz o rapaz, brasileiro não tem memória.
Queime tudo o que diz respeito a você! Eis aí um meio simples de renascer, novinho em folha e pronto para novas aventuras.