A força da juventude at Blog Ayrton Marcondes

A força da juventude

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O meu vizinho de andar é um rapaz educado a quem às vezes encontro no elevador. Meamos, eu e ele, uma parede que separa os nossos apartamentos. O prédio é uma dessas construções mais recentes nas quais engenheiros e arquitetos sempre acham um jeito de economizar argamassa. Disso decorrem divisões menos espessas que não vedam completamente a passagem de sons.

Sendo assim, entre eu e o meu vizinho vigoram inevitáveis invasões de privacidade determinadas pela livre circulação de sons de um apartamento para outro. Não se pode ouvir tudo e quase sempre o que se quer é evitar o barulho que tanto incomoda. Ainda assim, um pouco do modo de ser de cada um passa a fazer parte do cotidiano do outro lado, ainda que as pessoas envolvidas nessa troca não privem de relações de proximidade.

Suponho que o meu vizinho seja um estudante da escola de Propaganda e Marketing que funciona aqui na nossa vizinhança. Creio que ele mora sozinho embora um rapaz e uma moça sejam presenças frequentes. Ouço quase todos os dias as vozes dessas duas personagens a quem nunca vi, mas que chegam sempre no final da tarde e partem por volta das onze horas da noite. Dos dois, a moça é a que fala mais, daí ser possível conhecer os pontos de vista que ela defende. O rapaz tem voz rouca, quase enfadonha e fala pouco. Sua participação parece limitar-se a colocar panos quentes nas discussões entre o morador e a moça.

Mas é nas noites de sexta-feira que o apartamento do meu vizinho entra em plena função. Nessas ocasiões ele recebe vários colegas da faculdade que se entregam a intermináveis conversas regadas a algum tipo de bebida e montanhas de cigarros. Não se trata propriamente de uma festa. As pessoas não chegam juntas e os últimos retardatários só partem com o dia já claro.

Embora o que se passa no apartamento do lado me incomode – o barulho, o cheiro da fumaça dos cigarros que se espalha pelo andar, etc. – confesso que sinto muita inveja da força e modo de ser desses jovens. Eles me remetem às repúblicas de estudantes em que morei, nas quais era livre a circulação de rapazes e moças e isso a qualquer hora. Não tínhamos outro compromisso que não o de comparecer às aulas e então o mundo apresentava-se a nós como um grande ponto de interrogação a ser desvendado. Ah, quantas teorias, às vezes esdrúxulas, defendidas com as certezas de quem acaba de descobrir verdades aparentemente imutáveis; quantos embates entre temperamentos distantes resolvidos com um bom copo de cerveja de repente capaz de restituir sobriedade e ordem ao mundo; quanta esperança na vida, quanta fé no ser humano, quanto desapego a exterioridades, quanta confiança no futuro.

E dizer que tudo isso foi sendo metodicamente abalado com o passar dos anos, que a esperança e a fé deram lugar ao descrédito e ao ceticismo. Quanto aos amigos inseparáveis que tanto se amavam, onde estão eles? A maioria desapareceu arrastada pelas exigências da vida que põe e dispõe sobre os nossos caminhos. É desse modo que se fazem homens ricos e pobres, felizes e infelizes, bem e mal sucedidos, vivos e mortos; e foram todos jovens, na mesma república, vivendo os mesmos sonhos, discutindo tantas vezes utopias que o futuro teimou em rechaçar.

Às vezes penso que a vida tenha algo de inversão do roteiro proposto na Divina Comédia. Dante vai do inferno ao purgatório e daí ao paraíso. Acho que vivemos primeiro o paraíso para depois passar pelas fases mais difíceis.

Em todo caso, que ninguém desanime: existirão sempre rapazes morando em repúblicas, fornecendo energia boa ao mundo, lembrando-nos de que vale a pena viver. Como disse Machado de Assis em seu leito de morte:

- A vida é boa.

Foram essas as últimas palavras do grande escritor.

Escrito por Ayrton Marcondes

24 abril, 2010 às 7:57 am

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