Mickey Rourk - O Lutador
No livro Mitologias o crítico, filósofo e semiólogo francês Roland Barthes, analisando a luta conhecida como catch, explica porque pessoas assistem a um divertimento forjado, cujos resultados são previamente conhecidos. Barthes nos informa que o catch não é esporte, mas sim um espetáculo no qual os lutadores, como no teatro, têm papéis definidos. Cada um representa com perfeição o papel que deles o público espera, daí pouco importar se o espetáculo é falseado ou não. Não existe, portanto, no catch o problema da verdade. Oferece-se ao público o espetáculo da Dor, da Derrota e da Justiça. Há lutadores que transgridem as regras e causam dor, mas a idéia geral é que devem “pagar pelo que fazem” e, quando isso acontece o público é levado ao delírio porque se confirma a noção de justiça. Assim, explica Barthes, o espetáculo do catch é exatamente o que o público espera dele. Pouco importa se os combates são combinados ou não, “o que interessa é o que se vê, e não o que se crê”.
Retorno ao ensaio de Barthes após assistir ao filme The Wrestler – O Lutador no qual Mickey Rourk faz o papel do lutador - The Ram. Afinal, porque assistimos a um filme de ficção sobre a trajetória de um lutador de catch em fim de carreira, cujo final, como o próprio espetáculo das lutas, é mais que previsto?
Desde o começo sabemos que a trajetória de The Ram não pode dar certo. Ele foi um grande lutador de catch que envelheceu. Viveu as benesses da fama, gastou o dinheiro. O que resta a ele é viver num trailer de onde por vezes é expulso por falta de pagamento ou sai para realizar lutas de resultados arranjados. Sua família restringe-se a uma filha abandonada na infância e com quem agora tenta reencontrar-se. A mulher por quem se interessa é uma striper que se prostitui para sustentar o filho de nove anos.
Nada disso pode dar certo. Resta-nos acompanhar os progressivos fracassos de The Ram: a filha o repele, a striper tenta salvá-lo sem conseguir e ele não se adapta a qualquer atividade fora dos ringues de onde é afastado após um ataque cardíaco.
The Wrestler é um filme triste e que expõe em grau superlativo a miséria humana. A deterioração progressiva de The Ram, a consciência que possui da própria miséria e a aceitação de suas culpas não nos servem como lenitivo. Nós o vemos em sua progressiva degradação, luta após luta arranjada, correspondendo aos mitos sobre o qual Barthes nos alerta, atuando com perfeição dentro do papel que o público das lutas espera.
Entretanto, não nos é possível a imersão total nesse curioso filme, trama de ficção que abriga personagem que pratica outra ficção: a das lutas de catch. É que entre a tela do cinema e a cadeira do espectador existe um espaço de realidade que acaba interferindo na ficção. Esse espaço é dado por Mickey Rourke, ele próprio um lutador cuja vida tem pontos em comum com a do personagem que interpreta. A grande atuação de Rourke representa a sua volta por cima após períodos em que chegou a não ter onde morar.
A vitória do ator em trama semelhante à do filme faz dele um vencedor e coloca as coisas no lugar devolvendo-nos ao texto de Barthes: ele nos fala sobre espectador de catch que sai da das lutas, anônimo e impassível e sob o efeito da transmutação operada pelo espetáculo a que assistiu:
“No ringue, e no mais profundo de sua ignonímia involuntária, os lutadores são deuses, porque são durante alguns instantes a chave que abre a Natureza, o gesto puro que separa o Bem do Mal e desvenda a figura de uma Justiça enfim inteligível” – conclui Barthes.