Recado do passado
Em certas ocasiões o passado decide enviar recados. A coisa se dá como se ele quisesse avisar-nos de que o presente – e o futuro! – se confundirão numa só massa de tempo decorrido, em memória.
O passado é uma casa de suspiros interrompidos e emoções terminadas. Continua existindo na imobilidade que lhe foi imposta, quase sempre pela morte, mas seus sinais persistem por aí, desafiando os arroubos de vida os quais um dia também incorporará. Machado de Assis captou com precisão o contraste da morte com a vida, a sinalização do passado em vista do presente, no cemitério, por ocasião do enterro do livreiro Garnier:
“Quando outro dia fui enterrar o nosso velho livreiro, vi no de São João Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres como quem não pisa memórias, nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embrago das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal a visão dos primeiros anos”.
O texto faz parte de uma crônica do escritor, publicada em “A Semana”. As lindas bonecas de pedra encerram histórias terminadas e nada mais são que sinais de advertência sobre a passagem do tempo, o perecível e a própria morte, todos eles temas de predileção de Machado de Assis.
Pois. Há poucos dias o passado decidiu enviar um recado muito interessante: um mergulhador encontrou 30 caixas de champanhe antigo, no fundo do mar. Estavam nas profundezas geladas do mar Aaland, próximo à Finlândia. São garrafas produzidas pela Clicquot, provavelmente entre 1782 e 1788. Segundo especialistas é possível que se trate de uma remessa de champanhe enviada pelo rei Luís XVI, de França, para a imperatriz russa, Catarina, a Grande, por volta de 1780.
Como se vê as garrafas não reapareceram sozinhas. Trouxeram consigo parte da história da França no período que antecedeu a Revolução Francesa. De um momento para outro, fizeram reviver no mundo os ipods a figura daquele Luis XVI, preso em Varennes e depois guilhotinado, assim como a de sua esposa, Maria Antonieta, também guilhotinada seis meses depois.
Mas e muito mais que isso, as garrafas guardaram nas solidões geladas dos mares profundos, o sabor de uma época, fazendo ressuscitar o paladar das cortes desaparecidas.
As garrafas da Clicquot são uma desforra do passado, o grito longo e profundo daquilo que um dia foi e ao qual seremos, inevitavelmente, incorporados com nossos gostos, prazeres, sofrimentos, enfim, as nossas historias convertidas em bonecos de pedra.