Carta de um amigo
Recebi, ontem, carta de amigo que supunha morto. Aqui no prédio colocaram caixas postais nos corredores, em cada andar. Toda semana abro a minha com a estranha chave que me coube: uma peça dourada que mais parece capaz de abrir um sofisticado cofre ou até mesmo um baú esquecido em porão de castelo antigo.
Foi da minha caixa postal que saiu a mensagem que restituiu a vida ao meu amigo. Do envelope pardo, com o meu endereço escrito a mão, saiu uma folha de papel, ligeiramente amassada, na qual li:
Caro amigo
Por alguma razão lembrei-me de você dias atrás. Não foi difícil encontrar o seu endereço que obtive de uma lista de antigos colegas enviada a mim há algum tempo. Não sei dizer com precisão a razão desse meu contato que não espero seja retribuído. Soube que você publica livros, coisa que, sinceramente, tenho por inútil: há muito tempo desisti da cultura por acreditar que o homem atual encontra-se em irreversível involução, nada podendo salvá-lo em seu retorno à condição animalesca. A violência crescente é apenas um dos sinais de involução que a arrogância dos homens insiste em olvidar.
Como disse, tenho me lembrado de você, das discussões que tínhamos em noites inteiras regadas à bebida barata. Ainda hoje me parece que você não tinha razão em alguns pontos, coisa que hoje já não tem nenhuma importância.
Abraço do amigo…
Fernando, assim se chama essa pessoa que não vejo há muito e que tinha por morto. A história que corria sobre ele é que abandonara o cargo de professor numa universidade para tornar-se fazendeiro em pleno sertão. Tempos atrás correu o boato de que teria sido assassinado por um vizinho durante conflito de demarcação de divisa de terras. Na ocasião deplorei que uma das mentes mais brilhantes que conheci tivesse desaparecido de forma brutal e desnecessária.
Mas, felizmente, Fernando está vivo e, pelo jeito, o mesmo de sempre: anotou o endereço no remetente com letra ilegível, mostrando que não quer ser encontrado. A carta foi postada em Manaus, fato que apenas delimita a região onde Fernando circula atualmente.
Gostaria muito de rever o Fernando para que encerrássemos diálogos há tanto interrompidos. Como não sei para onde mandar a resposta escrevo neste blog que talvez ele possa vir a ler -duvido! Entretanto, caso isso aconteça, Fernando, quero que saiba que afinal você estava certo em relação a alguns aspectos que discutimos da última vez, dos quais eu discordava inteiramente. Talvez isso não tenha mesmo a menor importância a essa altura do campeonato, mas o fato é que, Fernando, eu não mudei muito, continuo acreditando em coisas em desuso como a fidelidade às ideias e o descarte a coisas que professei e, mais tarde, descobri estarem erradas.