Finados
Se bem me recordo foi há cerca de uns quatro anos que deixei de prestar atenção ao dia de finados. Deixo o dia transcorrer normalmente e quanto a ir ao cemitério nem pensar. Não se sabe se há vida após a morte ou se os nossos mortos esperam com alguma ansiedade que visitemos os túmulos deles na data convencionada para isso. Também não se sabe se é verdade que missas realizadas em intenção de pessoas mortas facilitem a existência das almas deles do lado de lá. Outro dia acompanhei a minha mulher a uma missa de sétimo dia e fiquei impressionado com uma família que conversava e ria o tempo todo. Estavam lá pela morte de parente. No momento em que o padre pronunciou o nome do parente, levantaram as mãos como se estivessem em algum show de rock ou coisa que o valha. Existem, verdadeiramente, modos diferentes de encarar a morte.
De minha parte sempre encarei a morte com naturalidade. Como todo mundo, temo por situações como doenças prolongadas e sofrimento para morrer. Entrei no mundo chorando, mas não quero sair dele aos prantos. Uma morte seca e vadia, dessas irreverentes e inesperadas é tudo o que peço. Nada de coisa planejada, com final previsto e data certa: morte e pronto.
Mas, fujo do meu assunto que é o dia de finados. Para mim o problema desse dia começa mais ou menos ao anoitecer. É como se de repente imagens passadas se refizessem com cor e som absolutamente perfeitos. Sabe aquela noite gelada, as ruas desertas, molhadas de chuva e com muito barro, o alto-falante da igreja matriz fazendo ecoar a tristeza enorme da hora do Angelus, sabe aquele mundo perdido da infância em lugarejo do interior onde as lâmpadas dos postes nada mais são que um aviso de que a noite será longa, sabe tudo isso? Pois começa assim, com a imersão nesse mundo, a minha noite de finados.
O sino da igreja que bate pesadamente é o sinal para que os mortos se levantem e desfilem pela minha memória. Não posso evitá-los, nem ignorar o que dizem. De repente estão de novo como eram, bons, maus, lúcidos, obtusos, humanos. Eu os recebo e cai sobre mim o peso da transitoriedade, a sensação de que tudo passa e termina. Revejo pessoas a quem conheci, seus hábitos, enfretamentos, problemas, discussões, paixões, amores e não posso deixar de pensar que tudo isso simplesmente acabou, foi selado por lápides.
Rever mortos nos traz a sensação de que damos valor demais ao que somos e à nossa existência. Levamos por demais a sério os nossos problemas, mesmo os insolúveis que só a morte resolve. Por isso, faço o possível para tornar o dia de finados nada mais que uma data no calendário.
Obviamente, não é bom pensar nisso. A coisa é meio depressiva e não vale a pena errar entre túmulos, ressuscitando mortos. Por isso, o melhor é deixá-los lá, onde viveram: o Jorge, com o bar aberto até de madrugada, vendendo, todas as noites, cerveja para um único cliente; o Onofre tendo ataques epilépticos; o Toninho Maneta, bêbado de cair, batendo na mulher dele; o Hilário, italiano que veio para o Brasil após a segunda guerra, perseguindo gatos que eram o seu prato favorito; o Tião Alfaiate que era capaz de ruindades calmas; enfim, aquela gente toda que viveu lá, gente que anda pelas ruas de pouca luminosidade, enfiando os pés no barro, mortos que usam a memória dos outros para continuar vivendo.