Lembrança de carnaval
Não me lembro do ano, mas que importa? Ela era a Belíssima e destaque do carnaval. Naquele tempo minha mãe me alistara nos Congregados Marianos e eu estava obrigado a seguir as regras da Congregação. Uma delas rezava sobre a devassidão do carnaval e a obrigação de evitar a festança em todas as suas formas. Isso, aliás, foi bem frisado pelo chefe dos Congregados, um caboclo sério e boa gente que respondia pelo nome de João Humberto.
Na semana anterior eu fora chamado à Igreja para confirmar a minha presença no retiro espiritual que ocorreria justamente nos dias da folia. Diante do padre e do João Humberto aleguei compromissos terríveis que me impediriam de participar. Eu ainda não sabia, mas o meu problema é que estava de olho nela, a Belíssima.
Na sexta-feira os congregados partiram para o retiro e os sinos da igreja se calaram. No sábado a folia correu solta: blocos e cordões nas ruas, bailes de salão. A tudo assisti quieto e distante, louco para entrar, mas a minha mãe, o padre, o João Humberto… Sem falar na vergonha da traição aos irmãos que a essa altura estariam meditando e orando pelos pecados do mundo.
Resisti bravamente no domingo. Na segunda-feira, sangue em ebulição, decidi dar uma olhada no baile. Fiquei boa parte da noite do lado de fora, observando de longe as pessoas dançando. Belíssima estava lá, pulando. Vez ou outra ela vinha até a porta para acenar para mim, eu que naquela altura transformara-me em estátua no meio da rua.
Voltei para casa desesperado, não consegui pregar os olhos durante a madrugada. Mas, na manhã da terça-feira gorda, enquanto tomava café, achei que aquilo era demais, estava além das minhas forças. Passei o dia macambúzio, entre a fé e o pecado, entre a cruz e a espada. Até que na noite do último baile fui tomado por frenesi extremo, desses em que o corpo sacoleja por conta própria ao som dos tambores. De todo modo eu era um congregado e o máximo que poderia fazer era dar uma passada perto do salão de baile, olhar de fora e voltar para casa.
Devo ter chegado ao baile perto das onze da noite e fiquei no lugar de costume, olhos compridos na gente que dançava. Como no outro dia, a Belíssima estava lá e, de vez em quando, vinha até a porta para me acenar.
Devo ter resistido até pouco depois da meia-noite. Então uma força maior que eu, poderosíssima, me arrastou para o salão. Sobre o que veio depois não sei direito, mas me lembro de estar sempre ao lado da Belíssima, enfiado com ela nos cordões. Também me lembro de um beijo ao ritmo de uma marchinha cujo som nunca mais me saiu da cabeça.
Não contei nada para a minha mãe. Nos dias seguintes, arrependido pela minha fraqueza, rezei para que ninguém tivesse me visto ou fosse contar aos congregados sobre a minha ida ao baile carnaval.
No domingo fui à missa com minha mãe. Na hora do sermão, igreja cheia, o padre comunicou que eu e outro rapaz, a partir daquela data, estávamos expulsos da Congregação. Quando isso aconteceu, o João Humberto, sempre na primeira fila, voltou-se e cravou os olhos em mim.
Ainda hoje trago esse olhar de reprovação na memória. De minha mãe ficaram as imagens de vergonha pelo filho expulso diante dos demais fiéis e a bronca terrível que veio depois.
A Belíssima? Ora, éramos na época adolescentes e ela, naturalmente, cresceu e tornou-se mulher, não tão bela como seria de se esperar. Anos mais tarde eu a revi e preferiria que não tivesse acontecido porque a nova imagem sobrepôs-se àquela da noite de carnaval, impregnando a antiga de realidade desnecessária.