Por quem dobram os sinos?
Assim como o poeta fui criado ao som dos sinos. Tinham eles papel preponderante na vida da comunidade, funcionando como marca-passo a ditar o ritmo dos dias. Havia o toque de acordar das seis da manhã, o chamado para as missas das oito e das dez aos domingos, a hora do Ângelus às seis da tarde, o toque fúnebre e pausado que anunciava o réquiem dos mortos, o repique agudo e corrido das festas dos santos. A todos eles atendiam fiéis, chamados que eram às práticas religiosas.
Hoje em dia, em muitos lugares, os sinos já não dobram como antigamente. Na minha cidade um padre moderno substituiu os repiques da minha infância pelo som gravado de carrilhões das grandes catedrais. Assim, os fiéis são alertados pelo som de sinos não ligados às suas tradições e que não lhes dizem respeito.
Mas, isso não é o pior. Recentemente os bons de velhos sinos das igrejas tornaram-se objeto de desejo de ladrões: nos últimos dias foram roubados sinos de algumas igrejas do Vale do Paraíba. Para dizer a verdade, não imagino como possa ser a ação de uma quadrilha de rouba sinos. Acontece que sinos são grandes e pesados, como, então, podem ser subtraídos das torres, trazidos ao chão e levados sem que ninguém se dê conta do crime? Nenhuma testemunha? Não sabem esses desalmados ladrões que, mais que os próprios sinos, estão levando as memórias de várias gerações que deixaram-se guiar pelas badaladas das igrejas?
Roubaram o sino da minha cidade. Não sei para onde o levaram. Pois parte da minha vida está ligada a esse sino desaparecido. Ele era talvez, uma das últimas ligações materiais que eu tinha com a minha mãe, falecida há tantos anos. Era o repique dos sinos que nos levava, juntos a igreja, como se fôssemos atraídos por um tipo de código que nos unia e aos demais que acorriam às missas.
Mas, não é só isso. Notícia recente nos dá conta de que, finalmente, consertaram os sinos da Catedral da Sé, em São Paulo. A partir de agora o carrilhão, composto por 61 sinos, será acionado por um sistema digital. Então, depois de cinco anos quietos, os sinos voltarão a badalar na capital, mas não diretamente pelas mãos de alguém, embora também possam ser acionados manualmente ou através de um órgão.
Nunca pensei que sinos e tecnologia se dessem bem. De algum modo esse acionamento digital desmistifica toda uma escola de sineiros que ensinavam uns aos outros a arte dos diversos tipos de toque, adequados para cada ocasião. Era assim que, de geração em geração, mantinha-se a tradição. Mas, os tempos são outros, os tempos são outros.
Disse um padre da Sé que o som dos sinos representa a voz dos anjos chamando os fiéis para a igreja, lembrando-os da existência do Senhor. A partir de agora, na Sé, a voz dos anjos será acionada eletronicamente. Quem sabe um dia a tecnologia chegue ao ponto de abrir as portas do céu.