Os perigos da ironia
Foi quando assisti, por acaso, na televisão, ao filme Dogville que passei a prestar atenção ao trabalho do cineasta Lars von Triers. Foi ele, juntamente com Thomas Vinterberg, o fundador do movimento Dogma 95 que preconiza 10 regras para fazer filmes, entre elas a de não serem usados cenários.
Dogville é um filme que impressiona. Estrelado por Nicole Kidman e Paul Bettany, dele não se pode dizer que não tenha cenários. Na verdade Triers faz uso de cenários extremamente simples, bastando-se dizer que o filme foi inteirinho rodado dentro de um galpão localizado na Suécia. Dogville é uma pequena cidade que em realidade não sai do chão porque a delimitação entre as casas é feita por marcas no próprio chão, praticamente inexistindo cenários. Nesse ambiente, a um só tempo restrito e infinito, vive a população da cidade, destacando-se a falsa moral que dita as regras dos relacionamentos. Tudo isso é conduzido pela voz de um narrador onisciente que, num mundo propositalmente ficcional, conduz a trama de modo a revelar o perfil e comportamento dos cidadãos. Filme de atores, filme de diretor, aberto a interpretações, rico em referências – o teatro de Bertold Brecht é uma delas – chama atenção por suas inovações na arte de filmar e pela excelência das interpretações do elenco. O final é um ajuste de contas contra o falso moralismo e os descalabros cometidos pelas pessoas em nome da vida em sociedade.
Pois é esse Von Tries que acaba de ser expulso do Festival de Cannes. Desta vez a postura de rebelde do diretor de cinema não deu certo de vez que ele logrou atravessar a linha imaginária que delimita o chamado bom-senso: durante entrevista de lançamento de seu novo filme, von Triers afirmou identificar-se com Hitler e o nazismo fato que provocou justa revolta entre os jornalistas presentes à coletiva. Ato continuo houve a expulsão, seguida da proibição ao diretor de aproximar-se a distância inferior a 100 metros da sede do Festival.
Não deixam de ser interessantes as declarações de von Triers após ter sido expulso. Afirmando que se referiu ao nazismo por pura ironia – a inconfessável tentação de causar sensação e escândalo – reconheceu o diretor seu erro ao falar nos termos em que usou no momento em que se dirigia à imprensa mundial. Declarando que fizera uso da linguagem comum em contato com amigos von Tries deu-se conta de seu grande erro, indesculpável e sem remédio.
Do que se extrai alguma coisa sobre a metodologia dos irônicos e o perigo das ironias. Pano de fundo de participações pessoais infelizes é o descaso pela dimensão do meio onde se atua. Lars von Triers, aclamado diretor, deu uma tremenda bola fora ao se referir ao nazismo, ainda que ironicamente. Tipo da piada em hora e lugar errados, ato realizado para chamar a atenção com consequências bastante previsíveis.