A rebelião das pequenas coisas
De tempos para cá, certamente por erros de calendário, a minha idade tem aumentado. O fato é que não concordo com a progressão do calendário e me revolto com as imagens que os espelhos me devolvem. Não me reconheço nelas, definitivamente não sou eu, não tenho dúvida de que está em andamento uma conspiração atrás dos espelhos cuja finalidade é deturpar a minha aparência. O mais terrível é que a trama que se passa nos espelhos é progressiva, vejam-se os fios de cabelos brancos que aumentam a cada dia, a pele que devagar e metodicamente perde a sua flexibilidade e um mundo de transformações que acontecem à minha revelia, sem que eu as aprove.
Entretanto, isso não é o pior. De repente coisas inanimadas se rebelam contra mim como se em algum momento eu as tivesse ofendido ou a elas declarasse guerra. A situação tem se tornado tão grave que está a exigir algum tipo de atitude de minha parte, embora eu não saiba exatamente qual. É verdade que algum incauto, ao ler essas linhas, poderá deduzir que enlouqueci afinal coisas inanimadas não se rebelam etecetera e tal. Será que não? Pois afirmo que comigo tem acontecido e posso provar. Aliás, não vou citar aqui mais que o necessário. Basta dizer, por exemplo, que fatal e progressivamente, de tempos para cá os objetos, todos eles, têm ficado mais pesados. Coisas que sempre carreguei com pequeno esforço passaram a exigir cada vez mais empenho e força para que eu possa movê-las. Uma bolsa, uma pequena mesa que tenha que se arrastar de um canto a outro, as sacolas de compras de minha mulher que, como de costume, ficam a meu encargo. Todas as coisas - prestem bem atenção - todas decidiram que ficariam mais pesadas e parece não haver nada que eu possa contra essa fatalidade que tanto me apoquenta e me causa até dores musculares.
Obviamente, o problema é mais profundo e não se resume a isso. Existe um inferno de pequenas coisas que todo mundo tem a fazer em sua rotina diária e que, para mim, injustificadamente, têm se tornado difíceis. Imagine-se que algo tão simples como amarrar os sapatos de repente enche-se de dificuldades coisa que atribuo a uma engenhosa resistência dos fios ao contato com os meus dedos. Realmente é impressionante como os fios se negam aos mais simples dos nós e, mesmo quando amarrados, muitas vezes se desfazem sem a menor explicação. Tenho comigo que talvez a intenção dos fios seja a de me fazer tropeçar neles, provocando quedas com consequências imprevisíveis.
Como disse anteriormente, não é o caso de apresentar provas contra uma rebelião que se passa a olhos vistos. Entretanto, não resisto e lamento falar sobre algo que muito me incomoda, qual seja a desavença que os zíperes passaram a ter comigo. Não sei ao que atribuir esse fato porque nada fiz contra os zíperes e sempre os tive como fiéis aliados e protetores. Pois agora deixaram de sê-lo dado que se recusam a obedecer aos meus comandos manuais de abrir e fechar. Por natureza detesto ser explícito, mas não posso fugir a isso em relação aos zíperes das calças que deram de travar justamente quando mais se precisa deles, em banheiros, por exemplo, por ocasião de realizar necessidades fisiológicas.
Deixo aqui essas observações que, na verdade, constituem-se em advertência para muita gente. Repito que há uma rebelião de coisas inanimadas em andamento e talvez pouca gente se dê conta desse fato. Lembre-se, caro leitor, que também pode suceder a você o que acontece comigo. Fique de olho no espelho, veja se não estão a mexer na sua imagem, na sua pele, na tonalidade dos seus cabelos que, misteriosamente, começam a ser refletidos brancos. Esse é o sinal do começo de uma trama complexa que poderá alterar drasticamente o ritmo da sua vida.
Fique atento, é tudo que posso recomendar porque ainda não me ocorreu solução para o grande problema que tenho enfrentado.