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Desconforto

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Leio que uma senhora doou seu corpo para pesquisa científica. Fez isso há alguns anos. Morreu nesta semana e os que a conheciam estranharam que não houvesse enterro. Ocorrido o óbito a filha encarregou-se de avisar a entidade de pesquisa para a entrega do corpo.

Perguntei a um amigo se ele doaria seu corpo para pesquisas. A estranheza da pergunta deixou-o sem resposta. Ele pensou um pouco e me devolveu a mesma pergunta.

Eu? Rapaz… Esse corpinho aqui do qual cuido tanto… Ora, mas se estarei morto, que diferença faria ser comido por vermes ou retalhado a bisturis?

Não sabendo bem o que responder ponderei que talvez sejamos incapazes de dissociar o corpo do vivo daquele depois de morto. Separar a identidade pela inevitabilidade da morte é coisa complexa e difícil. Enquanto estou vivo imagino que continue a ser eu mesmo depois de morto, embora saiba que as coisas não se passam desse modo. Mas é o vivo quem pensa em seu corpo nu e exposto sobre uma mesa num laboratório de anatomia. Imaginar-me nessa situação, indefeso, ausente, submetido aos caprichos de um pesquisador ou algum estudante realmente causa-me desconforto.

O corpo de quem está vivo é uma propriedade particular da qual ninguém está à vontade para disponibilizar. Talvez pela posse inalienável de meu corpo eu jamais me disporia a doá-lo, mesmo depois de morto. Afinal, esse corpo sou eu a ideia de doá-lo me surge constrangedora.

Ademais, não imagino como ficam os familiares de alguém que doou seu corpo. Como é saber-se que os corpos de seu pai, sua mãe ou seu filho estão naquela rua, naquele prédio, insepultos? E se você tiver alguma inclinação a revê-los?

Felizmente, nem todo mundo pensa assim. Os cadáveres prestam inestimáveis serviços à formação de profissionais que se tornam aptos a auxiliar seus semelhantes. Daí que nesse caso pode parecer egoísmo negar-se a tão nobre ato de contribuição com os nossos semelhantes.

Lidar com a morte é difícil. Na medida em que envelhecemos somos gradativamente cercados por ela. Trata-se de uma cela na qual as paredes se movem lentamente, mas sempre no sentido de reduzir o espaço que de que dispomos.

Há quem tenha muito medo da morte. Uma das minhas tias recusou-se a emprestar seu vestido à irmã que falecera num acidente. Na ocasião ela me disse que não dormiria mais se soubesse que a irmã fora enterrada com um vestido de seu guarda-roupas.

Enfim…

Escrito por Ayrton Marcondes

14 março, 2014 às 12:45 pm

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