Do fundo da memória at Blog Ayrton Marcondes

Do fundo da memória

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Do que me recordo bem é que chovia. Chovia muito. Semanas inteiras de céu nublado e água jorrando dos céus. Chovia e chovia.  Chovia porque chovia. De madrugada a chuva piorava. E vinham os trovões. E os relâmpagos que chamávamos de coriscos. A chuva batia forte no telhado, fazendo um barulho danado. Os relâmpagos iluminavam a noite. De repente um estrondo, profundo, terrível. Era um raio que depois de um tempo se repetia.

As mulheres andavam pela casa carregando baldes, correndo atrás de goteiras. Em meio às tempestades faltava a luz elétrica e as velas nos salvavam do escuro. Cobriam-se os espelhos com toalhas, temendo que refletissem raios. Acendiam-se ramos de mato bento no Domingo de Ramos aos quais se atribuía proteção milagrosa.

Depois de alguns dias o sol reaparecia com ares de quem volta de viagem longa. Então o mato verde, iluminado, parecia encantado. As pessoas andavam nas ruas, nem alegres, nem tristes. A rotina do lugarejo tinha a simplicidade do pouco a fazer, das gentes sentadas nos bancos da praça, esperando por novidades que não viriam.

Às seis da tarde tocava o sino da Igreja. Então pelo alto-falante da igreja soavam as notas do Ângelus que faziam tristeza enorme na gente. Nas casas as mulheres ajoelhavam-se com os filhos diante de pequenos altares e puxavam o terço. Os homens ficavam no bar, jogando sinuca e bebendo.

O chão das ruas era de terra. Na falta de calçamento o barro se juntava nos tempos de chuva. Nos dias do sol o barro secava e erguia-se e subia o poeirão que o vento espalhava, sujando tudo.

Perto das oito da manhã a jardineira vinda de Minas parava defronte a sorveteria. Passageiros vestidos com guarda-pós desciam e logo tornavam aos seus lugares. Certo dia um certo Manoel ficou ali, de joelhos e chorando, implorando para que a mulher dele não fosse embora. A jardineira partiu e a mulher nunca mais foi vista.

No inverno o frio se instalava rigoroso. No fim de junho as fogueiras ardiam em homenagem a São João e São Pedro. Assavam-se pinhões e batatas-doces, fazendo a alegria das pessoas em torno das fogueiras

Naquele tempo o hábito era recolher-se cedo. Depois das nove da noite raramente alguém passava na rua.  Atribuíam-se passos ouvidos nas madrugadas a almas errantes que retornavam ao mundo para terminar assuntos deixados em aberto.  Ou fantasmas de animais como aquele cavalo sem cavaleiro que muitas vezes trotava de madrugada.

Era bem outro aquele mundo pequeno no qual as pessoas se conheciam e contavam histórias. Mas, havia ali amores e ódios, acontecimentos tristes ou engraçados, tragédias e comemorações.  E dizer que, entretanto, aquela gente toda hoje está morta e aqui estou eu, remanescente tardio, revendo faces desparecidas, lembrando-me das madrugadas gélidas de tempestades e das noites em torno das fogueiras, junto de pessoas a quem tanto amei.

Escrito por Ayrton Marcondes

11 agosto, 2014 às 12:01 pm

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