Sobre raios
Dos meus tempos de menino guardo caso que muito me impressionou. Um homem fora ao lugarejo, próximo de seu sítio, fazer compras no armazém. Aconteceu naquela tarde inesperado temporal que o reteve , impedindo-o de retornar. Ao final do dia, tendo a chuva amainado, o homem decidiu montar seu cavalo e empreender o retorno pela estrada barrenta. Conta-se que antes de partir teve ele o cuidado de verificar as ferraduras pelo receio de que o cavalo não pudesse enfrentar o solo movediço de barro.
Chegou ele ao sítio quando já era noite. No momento em que estendeu o braço para retirar o laço de arame que prendia o portão à cerca foi atingido por um raio. Na verdade o raio não caiu sobre ele: atingiu a cerca e a energia propagou-pelo arame chegando ao cavaleiro que não resistiu ao choque e morreu.
O homem que morreu atingido por um raio era pai de um meu amigo, colega do grupo escolar. O corpo foi velado numa casa velha do lugarejo e talvez tenha sido esse o meu primeiro contato real com a morte. De modo que nunca me esqueci da face do homem em seu esquife, nem do raio que o vitimou.
Desde então sempre temi raios e seu poder de destruição. Não chego aos extremos das pessoas mais velhas de minha família que, nas tempestades, cobriam espelhos e queimavam ramos benzidos no Domingo de Ramos. Confesso que não adianta saber que caso um raio caia sobre um automóvel fechado nada acontecerá aos seus ocupantes: detesto estar num veículo durante tempestades com raios.
Ontem um raio provocou a morte de quatro pessoas que se abrigaram sob um guarda-sol numa praia do litoral paulista. Entre elas uma moça gravida de cinco meses. Outras pessoas sob o mesmo guarda-sol se feriram e uma delas continua internada em estado grave.
Imagino essas pessoas saindo de suas casas para comemorar a passagem de ano no litoral, obviamente sem saber o que a sorte lhes prepara. Abrigar-se sob um guarda-sol durante tempestade com raios pode ser fatal, mas quem acredita?
Com frequência divulgam-se informações sobre cuidados a serem tomados durante tempestades. Insiste-se que ao ouvir o primeiro trovão deve-se procurar por abrigo seguro. Jamais ficar debaixo de árvores etc. Infelizmente muita gente se descuida daí os acidentes fatais.
Não me saí da cabeça a face do sitiante que morreu ao colocar a mão no arame da cerca. Desde que ouvi sobre a morte das quatro pessoas na praia as imagens do antigo velório retornaram vividamente. Dentro do caixão o morto exibia a pele escurecida, resultado do raio que o vitimara. Em vão tento me livrar dessa face, mas os raios insistem em me trazê-la de volta.