Ser como é
Ao longo da vida assumem-se vários personagens produzidos em função das circunstâncias de momento. Aos sessenta olhamos para trás e nem sempre é fácil visualizar - e compreender - certos tipos que já encarnamos. Todo mundo já fez coisas na vida que não se repetiriam nem a pau. A tal pergunta “como é que fui capaz de fazer isso” tem uma só resposta: não era você. Na verdade era aquele outro cara, o jovem de 19 anos de idade, capaz de loucuras impensáveis.
Tenho um amigo que se tornou noivo de uma moça, ela muito apaixonada, ele nem tanto. Eram jovens, namoraram desde meninos, pertencentes a famílias amigas, enfim tudo corria segundo o script. Até que, faltando uma semana para o enlace, ele decidiu não se casar. Chamou a moça e rompeu o noivado para desespero das famílias que faziam tanto gosto na união. A moça, inconsolável, passou por longo período de depressão. Ele? Seguiu em frente. Certa noite, entre um e outro gole de vinho, ele me confidenciou que tantos anos decorridos ainda se envergonhava pelo que fizera. Confessou que em muitas madrugadas, se acordava, lembrava-se do fato e cobria a cabeça com o lençol pela vergonha. Eu disse a ele: não era você. Coisa que, aliás, ele não aceitou dizendo que seguindo esse raciocínio deveríamos, por exemplo, perdoar todos os criminosos.
Como ligar as várias personagens que fomos ao único homem ou mulher que os representou? Como aplacar vergonhas, remorsos e erros que insistem em retornar à memória numa punição irremediável?
A solução talvez seja partir da lembrança de que, afinal, somos seres humanos. Mais que isso, não ficar apenas nos desacertos. Aqueles sujeitos de antes, que afinal somos nós mesmos, certamente fizeram muita coisa boa. Trata-se, ainda, de encarar o direto de ser como somos com nossas virtudes e defeitos. Esse é o caminho para aceitação de nossa condição, enquanto seres pensantes aos quais são pertinentes erros e acertos.
Há quem goste de festas, multidões, gente falando alto e até não repare em grosserias. Há gente que não se incomoda quando altas horas da madrugada somos despertados pelo som do rádio de um carro que passa rugindo na rua. Há quem desculpe os apressados que furam filas, aqueles que tomam assentos destinados aos idosos e até os pretensiosos que tratam mal aos subalternos. Há quem simplesmente ignore pessoas que desrespeitam a crença alheia e os que não aceitam que alguém possa ter opinião diferente das deles. Enfim, há todo tipo de gente sob o sol que nos ilumina. Cabe a cada um de nós a delimitação do seu território e não ignorar as próprias raízes. Afinal, viver em sociedade é desafio nada fácil de ser vencido.