Personagens secundárias
Viajar em ônibus coloca-nos diante da contingência de nos sentarmos ao lado de algum estranho. Fica-se ombro a ombro com alguém que não sabemos, como se dizia no passado, que apito toca.
Houve época em que fiz viagens semanais em ônibus e participei das mais diferentes, senão estranhas, conversas. Às vezes queremos apenas cochilar, mas o sujeito ao lado simplesmente não deixa. Certa vez meu companheiro de viagem era um baixinho de terno que logo que me viu se propôs a me doutrinar com a “palavra’. Eu precisava ouvir a “palavra” para repensar a minha vida, modificar-me. Assim, o baixinho de terno abriu a bíblia que trazia nas mãos e me orientou com uma passagem sobre os irmãos Macabeus. A tortura e morte do último dos Macabeus que recusara todas as riquezas oferecidas a ele pelo tirano fez correrem lágrimas na face do baixinho de terno. Era o ensinamento da “palavra” que mostrava aos homens o pouco valor da vida e assim por diante.
Recentemente, fiz viagem em ônibus tendo ao meu lado um outro baixinho, este sem terno. Era dessas pessoas agradáveis. Fala mansa, que gostam de conversar. Na verdade começou o papo sendo indiscreto, perguntando-me sobre o que eu fazia na vida. Depois, aproveitou o gancho e passou a falar sobre as aventuras dele.
O baixinho fora ator, desde logo destacando suas participações como coadjuvante. Explicou-me ele que nos papéis secundários reside toda a força das tramas exibidas nos palcos e em filmes. A personagem secundária, tantas vezes ignorada, abre caminho pra que as principais possam atuar com todo o esplendor. Por isso orgulhava-se o baixinho de sua trajetória. Contou-me que fizera inúmeras pontas em peças teatrais e trabalhara em companhias circenses de renome. Substituíra palhaços em várias ocasiões, trouxera pelas rédeas cavalos que adentravam o picadeiro e até mesmo tratara dos bichos em épocas de bilheterias magras. Orgulhava-se por ser aquele sempre pronto para o que desse e viesse.
Durante a longa exposição do baixinho lembrei-me de um faroeste estrelado por Henry Fonda e Anthony Quinn. Trata-se de “Minha vontade é a lei” no qual Fonda faz o papel de um pistoleiro contratado para defender uma cidadezinha contra bandidos. Fonda é sempre acompanhado por um auxiliar interpretado por Quinn. Numa noite o auxiliar bebe muito e diz que só a proteção que confere ao grande pistoleiro o mantém vivo. Ato continuo desafia o pistoleiro para um duelo, no qual promete provar ser melhor que ele. A personagem secundária insurgindo-se contra a principal é um dos grandes momentos de “Minha vontade é a lei”.
Foram muitas as peripécias narradas pelo baixinho em sua carreira de personagem secundária. Tantas e tão interessantes que mal percebi e já chegávamos ao fim da viagem. Entretanto, ao final, perguntei a ele porque não atuava mais como ator. Disse-me que pagava por um grande erro. Num de seus últimos trabalhos apaixonara-se pela mulher do dono de um circo. Tornara-se amante dela. Foi o mais saboroso e também perigoso papel que encarou como personagem secundária. Tanto que a principal, o dono do circo, ferira-o com tiro de revólver, daí a perna com a qual mancava.
Assim terminou a minha conversa com o baixinho. Esqueci-me dizer sobre o fim do papo com o baixinho de terno. Aquilo não era diálogo, antes monólogo no qual o baixinho de terno falava e falava sobre a palavra. Até que me cansei de tanta doutrinação inútil. Foi difícil, mas fiz o homem se calar após muitos protestos dele.