A palavra
Saio à rua para comprar o jornal e sou abordado por um homem que diz trazer a Palavra da Salvação. Antes que eu me recomponha ele passa a citar salmos até que consigo interrompê-lo. Vou dizer que não estou interessado quando ele apela para um argumento que me prende:
- Não se lembra de mim? Fomos colegas no curso primário.
Em vão procuro no rosto do homem sinais familiares que denunciem algum menino com quem convivi nos bancos escolares. Para me livrar logo, evito fazer perguntas que comprovem o fato. Enquanto isso o homem continua com a ladainha da salvação.
A coisa toda prossegue até que consigo desviar o assunto para reminiscências comuns que na verdade não existem. Então o homem – apresenta-se como Eduardo – deixa de lado a religião e passa a falar sobre a sua vida. Conta-me que há dois anos perdeu um filho num desastre. Até então vivia longe da fé e o acidente serviu-lhe como aviso. O conhecimento da Palavra deu-lhe forças para superar a grande perda e, a partir daí, passou a divulgá-la.
Não sou capaz de dizer a religião professada pelo Eduardo e fiquei com a impressão de que, talvez, jamais nos tivéssemos visto – ele não se lembrava do meu nome. Depois de algum tempo nos despedimos, não sem antes eu prometer que leria com atenção os folhetos que ele me entregou.
Já em casa e lendo o jornal de domingo volta-me a imagem desse estranho homem que perdeu o filho e agora anda por aí, levando a Palavra para quem queira ouvi-la ou não.