Cuidado com as cinzas
Não me lembro, em décadas passadas, de tantas incinerações de cadáveres. O sujeito morria, realizava-se o velório e terra encima dele. “Foi pro caixa-prego” era um modo de dizer que o sujeito estava preso dentro de um caixão e para sempre.
Hoje em dia cremações são muito comuns. Não tenho certeza, mas devem ser menos custosas em dinheiro que os enterros formais. Há cidades em que não se encontram vagas nos cemitérios mais conhecidos. Velórios, túmulos e lóculos em cemitérios verticais são caros. Obviamente, existem opções mais em conta. Nesse caso trata-se de cemitérios mais distantes e de alguma simplicidade.
No passado a Igreja proibia a cremação. Justificava-se a proibição através da ressureição dos corpos prevista pelo credo religioso. A permissão só veio a acontecer em 1963 embora os enterros fossem preconizados como forma de respeito ao corpo.
Hoje em dia a cremação é rotineira. Há quem deixe o desejo expresso de ser cremado. Em muitos casos a cremação é opção da família. Há pouco tempo na morte de pessoa conhecida a família decidiu cremar o corpo. Por conhecer a falecida e seus princípios pareceu-me que fosse ela a decidir teria sido enterrada. Passados uns dias da cremação houve o momento da entrega das cinzas. Levadas para a casa da falecida abriu-se a questão do fim que se daria a elas. Como a falecida gostava muito de propriedade em região marítima decidiu-se espalharam-se as cinzas naquele lugar: parte na casa onde às vezes ficava, parte no mar.
Meu irmão mais velho dizia-me que quando morresse queria suas cinzas espalhadas nos altos da Serra da Mantiqueira. Ele amava a região e desejava passar a eternidade entre os cumes montanhosos. Aconteceu a ele a morte inesperada em lugar onde não se cremavam cadáveres. Acabou sendo enterrado. Hoje seus despojos são identificados pela lápide na qual estão inscritos o nome dele e as datas de nascimento e morte.
Agora a Igreja divulga normas para o destino das cinzas obtidas pelas cremações. Não poderão permanecer nas residências, exceto em situações mais que especiais. Nem deverão ser lançadas na natureza ou divididas entre familiares. Por respeito aos mortos as cinzas serão colocadas em túmulos ou em locais sagrados. Segundo as novas regras do Vaticano um funeral cristão poderá ser negado caso a intenção seja de espalhar as cinzas.
Quando mais jovem gostava de cemitérios. Hoje em dia confesso que me esquivo deles talvez pela possibilidade não tão distante de vir a ocupar um lóculo num deles. A proximidade da morte não passa de uma questão de aritmética simples. Aos 70 não se pode imaginar que se tenham pela frente mais uns trinta.
Compareci a dois funerais nos quais os falecidos seriam cremados. A cerimônia da despedida dos parentes e amigos não deixa de ser algo teatral. O esquife é colocado num palco e os presentes sentam-se na plateia. Músicas suaves ou que eram do gosto do falecido são tocadas. Dependendo do credo alguém inicia uma oração seguida pelos presentes. Depois o caixão começa a ser baixado, lentamente, até que desparece. Então os presentes se levantam, despedem-se e saem. Lá fora a vida os espera. Do morto apenas lembranças cada vez mais esporádicas.