Isaurinha Garcia
Estréia no Teatro João Caetano, Rio de Janeiro, a peça “Isaurinha - Samba, Jazz & Bossa Nova” com Rosamaria Murtinho no papel da grande cantora.
A notícia sobre o evento me devolve a uma tarde qualquer em meados dos anos 80, na cidade de São Paulo. Na época eu exercia a profissão de médico, trabalhando numa clínica. Naquela tarde, a secretária entrou na saleta de consultas acompanhada por uma senhora e trazendo uma ficha que me entregou. A secretária saiu e a senhora sentou-se. Era uma mulher pequena, sessenta e poucos anos de idade, baixa estatura, muito simpática. Falava baixo, quase sussurrando, queixando-se de sintomas vagos.
A princípio não atentei para quem seria a paciente até que o nome escrito na ficha ligou-se à fisionomia e à voz. Era Isaurinha Garcia, em carne e osso, bem à minha frente, separada de mim pelo espaço de uma escrivaninha. A constatação imediatamente despertou em mim o fã incondicional, proprietário de alguns LPs da cantora.
Fã é fã em qualquer lugar. A primeira coisa que fiz foi revelar a Isaurinha a minha condição de admirador incondicional e o orgulho de tê-la ali comigo, dispondo-me a ajudá-la. Mulher simples, pés no chão, Isaurinha agradeceu os meus elogios, mas declarou não ser nada, bondade minha reconhecê-la numa época em que já se afastara das gravadoras e participava de raros shows.
Durante a nossa curta conversa pude notar em Isaurinha alguma retração, como se tudo o que falávamos se referisse a outra pessoa que não ela cujo período de notoriedade ficara para trás e agora vivia a realidade da velhice e algum desencanto. Entretanto, essa conotação um tanto depressiva durou apenas até eu dizer a ela que, entre todos os seus sucessos, a música “Mensagem” era a minha favorita.
A lembrança de “Mensagem” transfigurou Isaurinha. Subitamente mudada, a cantora encarou-me e perguntou:
- Lembra-se da letra?
Não tive tempo de responder: Isaurinha já começava a cantar a primeira estrofe de “Mensagem”:
“Quando o carteiro chegou
E o meu nome gritou
Com uma carta na mão,
Ante surpresa tão rude,
Não sei como pude
Chegar ao portão…”
Então aconteceu: enquanto Isaurinha cantava, os ruídos que chegavam da sala de espera subitamente cessaram. Houve um momento em que olhei pela janela do sétimo andar e tive a impressão de que o trânsito da Av. Paulista parara porque todos os carros haviam desligado os seus motores. Nenhum som de buzina, nenhum barulho, a sala onde estávamos definitivamente pairava no ar e estivemos assim, num mundo sem gravidade, até que Isaurinha parou de cantar e o sortilégio de sua voz se desfez para que a Terra voltasse a girar.