O pão “enlameado” at Blog Ayrton Marcondes

O pão “enlameado”

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Não gosto do funcionário da padaria. Me parece um sujeito desatento ao serviço. Não se orgulha do que faz. Meu tio dizia que na vida há que se fazer tudo com amor. Mesmo as pequenas coisas. O velho falava que é pelas pequenas coisas que se conhece uma pessoa. Se o cara é ruim nas pequenas coisas que dizer nas grandes.

Peço sempre um misto quente na padaria da esquina. No horário em que vou lá o funcionário que prepara os sanduíches é um baixinho que sempre parece estar de mal com a vida. Pega o queijo e o presunto com o descaso de quem toca um inimigo. Depois atira-os na chapa quente sem nem mesmo limpá-la.  Minutos depois queijo e presunto são arrastados para dentro do pãozinho e o misto é servido ao freguês.

Já me questionei se no fundo a minha repulsa ao rapaz não tem um pouco de implicância desnecessária. Todo mundo sabe que não custa encontrar pela frente alguém com quem não se combina de jeito nenhum. Uma amiga, por exemplo, tem aflição quando vê homens barbudos. Diz que se no mundo só existissem homens com barba, não se aproximaria de nenhum deles.

Não tenho a menor ideia de quem seja o baixinho fazedor de sanduíches. Sei que o cara passa algumas horas do dia em pé, ao lado da chapa, trabalhando numa função que deve ser bem enfadonha. Talvez a vida dele seja bem desinteressante, talvez more num bairro pobre e distante, tenha mulher e filhos a sustentar, doença em casa, sei lá. Mas, que tem a ver o misto quente com a história do baixinho que prepara sanduíches?

O fato é que existem pessoas que incomodam, às vezes por simplesmente existir. Nos meus tempos de residente tinha uma médica que não podia me ver. Para ela eu era a imagem do desamor. Como ela era minha superiora tratava de me designar para as piores funções. Ela me detestava simplesmente por detestar. Foi um alívio para ambos quando deixamos de nos ver para sempre.

Mas, e o pão enlameado? A história é breve. O Zé trabalhava na lavoura e toda manhã passava pela padaria para tomar café. Ele sempre fazia o mesmo pedido: um pão “enlameado” com manteiga. Tanto repetiu isso que passou a ser conhecido como Zé Lameado. Esse Zé Lameado morreu ainda jovem não sei dizer a razão de seu desaparecimento, se doença, acidente, sei lá.

Conheci muito bem o Zé Lameado, um tipo alegrão e muito falante. Trabalhador incansável destacava-se na lavoura e ia melhorando de vida. Mas, morreu.

Ontem fui à padaria e não resisti a fazer o pedido do Zé Lameado ao baixinho da chapa. Pedi a ele o pão “enlameado” com manteiga. Obviamente ele não entendeu. Aproximou-se de mim, olhou-me fixamente e solicitou que eu repetisse o meu pedido. Ao ouvir a mesma coisa pela primeira vez o vi sorrir e dizer que não sabia fazer o que eu pedira.

Entendi que eu fora chato e desagradável demais, projetando no rapaz a minha inexplicável intolerância em relação a ele. Meio envergonhado mudei meu pedido:

- Por favor, um misto quente.

Escrito por Ayrton Marcondes

31 março, 2017 às 1:41 pm

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