Ninguém pode morrer
O amigo me diz: não posso morrer.
Aos setenta ele teme pelo que há de vir. O inexorável. A inesperada visita do ceifador. O fim.
Ele explica porque não pode morrer. Muita gente depende dele. É arrimo de família. Os filhos, já adultos, ainda não se resolveram. Que será deles sem o pai? A ex-mulher que não se sustenta sozinha? O amor acabou, a fraternidade continua. Como viverá ela sem ele que a sustenta? Não esquecer outras pessoas a quem empresta solidariedade, ajuda, até conselhos. Enfim, a morte dele abrirá um precipício na vida de muita gente.
Digo ao amigo que na verdade ninguém pode morrer. Cada um dentro de sua circunstância tem lá haveres e débitos. A vida é por demais preciosa para cada ser humano, ainda mais quando tomada pelo ângulo das relações entre pessoas. Há sempre alguém a se deixar, situações não resolvidas, encargos. Como simplesmente não mais existir?
Conversa vai, conversa vem, as palavras do poema de Drummond caem entre nós como consolo:
A vida te venceu
Em luta desigual.
Era todo o passado
Presente presidente
Na polpa do futuro
Acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
Não morres conformado.
Mas, e os suicidas? Esses podem morrer? Não será que o último ato, o extremo, nada mais é que ajuste de contas com a vida mal vivida à qual se quer mortalmente ferir?
Não existem respostas. Vida e morte são os maiores temas do grande teatro da existência humana.
Tarde da noite o amigo parte, sem se despedir. Tornará amanhã, no mesmo horário. Como sempre estará defronte, meu rosto no espelho, cismando sobre a proximidade da morte.