Memórias do dia do seu aniversário
Tudo igual a começar pelo som do despertador. A impressão de que o colchão está afundando é a mesma de sempre, assim como a lembrança de que é preciso comprar um novo.
Você se levanta. Sua mulher ainda dorme e você sai devagarinho do quarto para não fazer barulho. Segue-se a rotina de fazer a barba, tomar banho, vestir-se e ir para a cozinha onde o espera o café feito pela empregada.
Está tomando café quando a sua mulher entra na cozinha chamando-o de benzinho. Rápida troca de beijos, ela demora a sentar-se porque antes verifica se tudo está no lugar, se nada falta na mesa.
Vocês se olham com algum interesse, ela avisa que a gravata está meio fora do lugar e aí começa o assunto de sempre: o colégio dos filhos, as despesas enormes, a necessidade de férias e aquela coisa para a qual não sobra dinheiro que é a plástica que ela precisa fazer.
No carro e a caminho do serviço você faz o trajeto de sempre, parece até que cercado pelos mesmos carros. Chegando ao trabalho você enfrenta os problemas de sempre, lugar para estacionar, a fila do elevador e a cara do pessoal que o cumprimenta com desinteresse.
Você agora está na mesa de trabalho e, de vez em quando, ouve os gritos do chefe que fica numa sala acima da sua. Ele é um velho chato, você tem vontade de mandá-lo para os diabos que o carreguem, mas não faz isso porque existem o colégio dos filhos, as prestações, o condomínio e o dinheirinho que está separando, mês a mês, para a plástica da sua mulher. A idéia é, mais para frente, fazer uma surpresa a ela.
O resto do dia é igual aos antecedentes, sem nenhum retoque. As coisas acontecem do mesmo modo, a secretária já meio passada usa os vestidos curtos de sempre e cruza as pernas para chamar atenção, a faxineira passa perto de você e bate a vassoura na sua mesa, isso já se tornou um hábito dela. A rotina se repete até que chega a hora de fazer o caminho de volta para casa onde o espera o merecido descanso.
Todo dia é assim, é para ser assim, nada parece impedir que seja assim. Hoje, porém… Às seis da tarde o chefe pede que você vá vê-lo, você não imagina o que o velho chato pode querer numa hora dessas. A conversa é rápida, o assunto é a sua demissão, conseqüência simples da tão falada crise. Quinze anos no serviço e uma demissão pura e simples, só isso.
Na volta para casa o caminho parece não ser o mesmo. Você abre a porta, está desesperado, mas respira satisfeito porque ninguém chegou. Então senta-se, olha para a parede sem ver nada, tem vontade de chorar e pensa em dar um tiro na cabeça. Logo desiste, levanta-se, enche um copo com uísque sem gelo, toma metade de um só gole e, por acaso, vê a sua imagem no espelho da sala. Ainda é um quarentão bonito e os poucos fios de cabelos brancos estão um charme. Mas nem isso ajuda a animá-lo.
Está assim, distraído, trocando idéias com a parede, quanto chega a sua mulher acompanhada por algumas pessoas. Elas entram e começam a abraçá-lo: não se esqueceram do seu aniversário. São as pessoas do escritório, no meio delas o chefe que ri e fala bastante sobre o trote bem passado a respeito da sua demissão. Você ouve isso, tem vontade de mandar o chefe à merda, mas ele é o chefe e as contas existem. Então a sua mulher beija a sua cara de estúpido enquanto, pela primeira vez, você repara que as pernas da secretária não são de todo desinteressantes.