As pontas do fio
“Todo fio tem duas pontas. A sabedoria nesta constatação óbvia está em ligá-las pois só assim teremos noção mais próxima da trajetória percorrida. A própria vida não passa de uma sequência que começa na ponta de um fio e termina na outra. Para entender um ser humano é preciso percorrer o fio da vida, do início ao fim”.
Essa a visão da vida na opinião do Otoniel, sujeito lido que detestava o próprio nome. Falava da fatalidade de não se ter a possibilidade de discutir com o pai, no momento zero da vida, as condições de início da trajetória no fio. Fosse possível teria chamado o pai à razão e, certamente, advogado outro nome. Otoniel citava o escritor Anatole France que, em 1908, publicou o livro “A Ilha dos Pinguins”. Viviam os pinguins em paz quando receberam a visita de um padre que os batizou. O batismo das aves não foi bem visto no céu. Instalou-se entre os santos a discussão sobre a validade de se batizar aves. A questão foi decidida pelo Senhor que converteu os pinguins em homens. A partir daí iniciou-se a civilização pinguínea nos moldes das humanas, com surgimento de hábitos humanos, paixões, crises etc. Prezava Otoniel no livro de France a ocasião do nascimento de uma criança. Na hora do parto indaga-se àquele que vai nascer se quer ou não vir ao mundo. A resposta do feto inclui explicações sobre características negativas das personalidades dos pais que por ele seriam herdadas. Assim o feto pode recusar-se a nascer.
Para Otoniel a ficção do escritor francês seria de grande valia caso se tornasse realidade no mundo em que vivemos. Se tivéssemos a oportunidade de decidir se viveríamos ou não muitas desgraças seriam evitadas. Para que percorrer toda a trama de uma longa vida, trazendo do berço uma constituição física e mental fadada ao fracasso?
Ontem encontrei-me com o filho de um amigo. Eu o conheci quando tinha menos de dez anos de idade. Agora homem na faixa dos quarenta, vinha ele acompanhado de um filho. Eu o reconheci dada a semelhança com a figura do pai, hoje falecido. Conversamos rapidamente e, ao me despedir, lembrei-me da filosofia do Otoniel que resumia o percurso da vida aos acontecidos entre as duas pontas de um fio. Pareceu-me estranho ter presenciado momentos iniciais da vida do homem a quem encontrei e, agora, a fase distante daquela. Mas, o que teria acontecido a ele ao longo desses anos, enquanto seguia a rota estabelecida pelo fio de sua vida?
Para Otoniel, aquele que detestava o próprio nome, o fio da vida não foi longo. Mas, deixou-me essa interpretação um tanto esdruxula da existência, da qual nunca me livrei por completo.
De fato, não há dia em que, ao abrir a janela do quarto e dar com as novas manhãs, eu não pense no fio de minha vida e a proximidade de seu ponto final. A extremidade do fio que marca o fim da minha vida a cada dia parece se aproximar mais velozmente.