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Cinzas

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Mundo igual.

Ainda se dança em alguns lugares do Brasil. Em Olinda, em Salvador, enfim por aí afora, muita gente se recusa ao término da folia. Para muita gente há que desrespeitar a Quaresma, invadindo-a com pés bailarinos.

Mas, mais hora, menos hora, o grande baile das ruas acabará. Numa manhã dessas o folião abrirá os olhos cercado pela realidade. Então, nada poderá salvá-lo. O reencontro com os perrengues diários figurará como o mesmo absurdo de sempre. Mas, que fazer quando se está no mundo e as coisas são assim, sempre do mesmo jeito?

Na manhã de quarta a senhora do terceiro andar entrou no elevador, vestida de preto. Depois do bom dia ela me perguntou se não iria à igreja para receber as cinzas. Não tive coragem de dizer que de há muito deixei de recebê-las. O elevador chegou ao térreo e lá se foi a senhora, levando consigo a fé e a busca do perdão.

Quando menino aprendi que as cinzas simbolizam que viemos do pó e a eles tornaremos. Nesta vida a única certeza absoluta de que dispomos é a da existência da morte. A simbologia das cinzas nos remete ao fato de sermos passageiros em trânsito no planeta em que vivemos. Nascemos e ficamos expostos aos caprichos emanados do vai-e-vem das circunstâncias. Até o dia em que somos chamados à travessia no barco de Caronte.

Para Bertrand Russell o pensamento não pode sobreviver à morte corporal de vez que ao morrer o cérebro é destruído. Segundo Russell, Deus e a imortalidade, dogmas centrais da religião cristã, não encontram respaldo na ciência. Entretanto, as pessoas continuam a seguir essas crenças dado que elas lhes são aprazíveis.

Os anos passam e a dúvida se agiganta. Na velhice a questão da imortalidade da alma incomoda. A dúvida sobre o depois inquieta. Aconteceu-me ter crescido dentro da fé católica e absorvendo os dogmas da religião. Entretanto, a fé sempre se digladiou com o convite ao agnosticismo. Pois foi bem isso que não pude dizer àquela senhora que, pressurosa, corria à igreja em busca das cinzas da quarta-feira.

Faltava-me fé para receber o sinal das cinzas, não pude confessar isso à senhora.

Escrito por Ayrton Marcondes

6 março, 2019 às 4:15 pm

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