A questão da culpa
Recolhidos às nossas casas por conta do alastramento da epidemia provocada pelo Covid-19 assistimos aos noticiários que outro tema não tem que não esse assunto. Assim, não há como ignorar o que se passa nas diversas regiões do país, mormente no tocante às dificuldades enfrentadas pelas populações menos favorecidas. Escancaram-se aos nossos olhos situações para as quais normalmente damos as costas. Não só as dificuldades de acesso a recursos médicos que envolvem a utilização de respiradores essenciais para salvar vidas chamam a atenção. Estão aí milhares pessoas envolvidas em atividades informais que, da noite para o dia, viram cessar as já parcas oportunidades de garantir o sustento das suas famílias. Essas pessoas aglomeram-se em intermináveis filas em direção a estabelecimentos bancários em busca de receber o anunciado auxílio monetário provindo do governo. Novos casos e mortes devidas o vírus são anunciadas diariamente. Repórteres ciosos de sua função trazem-nos imagens de famílias que vivem em condições subumanas. A todo vapor abrem-se covas em cemitérios havendo lugares nos quais os serviços funerários já não dão conta do número diário de sepultamentos. Em Manaus já não existem vagas para internação de pacientes em estado grave. Caminhões frigoríficos são utilizados para armazenar corpos à espera de sepultamentos. Autoridades vêm a público sem condição de expor a exata dimensão do problema que a cada dia se agiganta. Com o comercio fechado a pressão para o fim do confinamento cresce. Paira no ar o espírito de ameaça permanente e o medo de que a situação atual perdure indefinidamente.
Nunca a miséria que sabemos existir entrou nas nossas vidas com tal intensidade. Não há como fechar os olhos para situação em que a desigualdade se impõe sem artifícios. Deixam de valer os discursos sobre terceiro-mundismo, subdesenvolvimento, enfim todos os epítetos que ao longo de nossa história são utilizados para justificar a desigualdade social. Daí a razão de nos perguntarmos: qual a parcela de culpa que temos sobre tudo isso?
A questão da culpa foi analisada pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969). A análise de Jaspers diz respeito a culpa atribuída ao povo alemão pelas barbáries cometidas pelo nacional-socialismo alemão sob o comando de Adolf Hitler. Durante doze anos os nazistas estiveram no governo da Alemanha sendo que, entre 1939 e 1945, promoveram a Segunda Guerra Mundial na qual, entre outros crimes, seis milhões de judeus foram exterminados. Terminada a guerra, vencida pelos aliados, os chefes nazistas foram submetidos a julgamento no Tribunal de Nuremberg. Alguns foram condenados à morte, outros a prisão perpétua, prisão durante vinte anos, uns poucos absolvidos. Importante destacar que no julgamento realizado em Nuremberg afirmou-se que não se estava a estabelecer a culpa do povo alemão, mas dos criminosos de guerra. Entretanto, surgiram na Alemanha cartazes com os dizeres “Você é culpado”. Mas, teria o cidadão alemão realmente culpa pelos crimes praticados pelo Estado de seu país e militares que atuaram em campos de concentração?
Para responder a essa pergunta Jaspers estabeleceu quatro tipo de culpa: criminal, política, moral e metafísica, expostas no livro “A questão a culpa”, Editora Todavia. Em linhas bastante gerais trata-se do que se segue.
A culpa criminal é imputada somente àqueles que, individualmente, cometeram algum crime que tenha punição prevista na lei. No caso do nazismo significou a punição de pessoas que efetivamente praticaram crimes. Note-se que essa punição individual não é extensiva a todo o povo alemão, considerando-se absurda a hipótese de culpar por um crime todo um povo. Entre nós significaria, por exemplo, culpar todos os brasileiros por crimes praticados durante o período ditatorial no qual foram verificadas torturas e mortes.
A culpa política decorre da corresponsabilidade dos cidadãos que, no caso da Alemanha, permitiram a ascensão do nazismo. Em sentido amplo os cidadãos são corresponsáveis pelo modo como se governa. Neste momento de calamidade provocada pela epidemia discute-se, entre nós, o modo de governo adotado pelo atual presidente em exercício. As atitudes por ele tomadas em relação à epidemia tem sido reprovadas dentro do país e mesmo internacionalmente. Nesse caso não se pode deixar de lado a corresponsabilidade da população, em particular da grande parcela que tornou possível sua eleição. Entretanto, segundo Jaspers, a culpa política não é coletiva. A corresponsabilidade atinge cada um de forma distinta na sua individualidade, não sendo transferida.
A culpa moral funciona de modo semelhante à culpa política dado ser impossível julgar moralmente uma coletividade. Nesse caso é o indivíduo a julgar a si próprio considerando-se sua participação ou omissão em relação aos acontecimentos abordados.
No tocante à culpa metafísica Jaspers destaca a importância de nos sentirmos humanos e solidários. Ao deixar de vítimas da miséria e da desigualdade social vemo-nos diante do absurdo da desumanidade cabendo-nos buscar a transformação pessoal ao nos conscientizarmos de nossa culpa metafísica.
As proposições de Jaspers sobre a culpa aplicaram-se a uma situação limítrofe da humanidade. Entretanto, elas podem nos ajudar em ponderações sobre o que se passa em nosso país. Fato é que fica difícil ao cidadão brasileiro isentar-se de responsabilidades em relação aos acontecimentos que constituem a realidade social do país. A corresponsabilidade em relação às escolhas políticas é alarmante. Hoje mesmo há muita gente a penitenciar-se pela escolha do atual presidente embora justificando-se ao dizer que não se votou nele, mas contra a situação de governo anterior. E há a dívida moral e metafísica pela ausência de solidariedade em relação aos menos favorecidos. Talvez por isso o desconforto diante da situação premente que atravessamos. Poucas vezes em nossa história a miséria abriu-se a céu aberto com tanta expressividade.
A pergunta que geralmente se faz é a de que posso fazer eu, simples cidadão, para melhorar as coisas? Bem, existem muitas atitudes entre as quais se destaca a consciência na escolha daqueles que chegarão aos postos de poder na nação. Entre muitas outras também se destacam atitudes de ajuda em geral encetadas por grupos de pessoas unidas em torno da solidariedade.
No caso alemão Jaspers concluiu que todo alemão tinha sua parcela de culpa pelos horrores do nazismo.