O Padre
Jesus não ficou velho. Foi torturado e crucificado ainda moço. Era Deus, mas não teve a oportunidade de envelhecer. Como teria sido um Deus envelhecido e com mais passagens narradas nas escrituras? Teria comandado pessoalmente a fundação da Igreja que acabou ficando nas mãos do apóstolo Pedro? Como seria o Cristianismo baseado nas páginas de um Novo Testamento de muitos mais acontecimentos? O Missal que uso nas missas?
O parágrafo acima ouvi de um padre que a todo transe questionava a própria fé. Era ainda jovem, saído a poucos anos da formação seminarista. Culto em teologia tinha ele esse espírito investigativo, como se fora um detetive a buscar respostas mais profundas nas páginas da Bíblia. Foi pároco numa paróquia pequena, mas na qual os fiéis seguiam os mandamentos da lei de Deus. Rapaz de bom aspecto não seria demais dizer dele ser muito atraente. Aliás, foi graças à sua inteligência e postura que uma jovem se apaixonou por ele. Essa jovem nutria pelo jovem padre verdadeira adoração. Não faltava ela a nenhuma cerimônia realizada na igreja. E não era raro que inventasse motivos para visitar o padre na casa paroquial onde ele morava.
Que se saiba o padre jamais se deu ao desfrute de aproveitar-se dela. Entretanto, paixão tão declarada acabou por despertar a atenção de muita gente. As velhas senhoras, carolas, observavam o andamento do caso que já despertava muitas fofocas. Quanto ao padre parecia não se dar por achado. Obviamente, ninguém gozava de intimidade suficiente com o padre para abordá-lo sobre o assunto.
Dirão que se trata e um caso comum que deve ter acontecido em muitas paróquias. Tão comum que não mereceria, passados tantos anos, evocá-lo. Entretanto, o desfecho da aventura da moça que se apaixonou pelo pároco nada teve de comum. Senão vejamos.
Num fim de tarde, como de seu costume, a moça apresentou-se na porta da casa paroquial, chamando pelo amado. Pessoas que presenciaram o fato diriam, depois, que entre os dois travou-se séria discussão. Por várias vezes o padre ergueu a voz com o dedo em riste. A moça chorava. Depois disso a moça partiu, não se antes aproximar-se do amado, tentando beijá-lo, sem sucesso.
Fato é que o padre se recolheu à casa paroquial e não mais foi visto naquele dia. Dai por diante estabeleceu-se a atmosfera nebulosa na qual muitas versões surgiram. Não se sabe o que teria acontecido durante a madrugada. Certo é que, na manhã seguinte, a moça foi encontra nos fundos da casa. Estava morta. Enforcara-se usando uma corda.
No meio do século passado e numa cidadezinha tão pequena não havia meios para realizar-se a autopsia. De modo que se seguiu o enterro da moça debaixo de grande consternação da comunidade. Sendo as coisas como foram a família optou que o esquife fosse diretamente para o cemitério, sem passar pela igreja. Naquele dia o padre se manteve reservado na casa paroquial sem que ninguém o houvesse visto.
No dia seguinte veio de cidade próxima um delegado que chamou o padre para interrogá-lo. Não se sabe ao certo como então as cosias se passaram. Sobre o interrogatório correu o boato de que o padre estivera extremamente abatido e chorara muito diante do policial. Obviamente, negara qualquer participação no episódio. Depois disso o padre desapareceu, deixando atrás de si o que para muitos figurava-se a certeza de ter responsabilidade sobre a morte da jovem.
Os anos se passaram. Certa noite ia eu pela Via Dutra, em direção a São Paulo. A certa altura divisei as luzes de um posto e resolvi parar para um café. No bar, acomodei-me numa banqueta, junto ao balcão, sem reparar nas pessoas que se sentavam ao meu lado. Entretanto, num dado momento, voltei-me para o lado esquerdo e eis que me senti congelar o sangue. Ali estava o padre, agora sem batina, saboreando o seu café. Ele me olhou, mas certamente não me reconheceu. Fui eu quem me apresentei, dizendo sobre a minha cidade de origem na qual ele havia sido pároco.
O padre não conseguiu disfarçar seu constrangimento. Mas, conversamos um pouco e, logo, ele fez menção de se levantar. Nesse momento segurei-o pelo braço e acabei por perguntar a ele sobre ocaso da moça que se enforcara. Mais uma vez ele fez menção de partir, mas, desta vez, segurei-o com mais força. Seja lá pelo que tenha sido o fato é que o padre se voltou para mim, perguntando sobre o que, afinal eu queria interrogá-lo. Acrescentou que o que tinha a dizer já o fizera ao delegado que investigara o caso. Depois disso passou a falar frases nem sempre concordantes, mas que, no conjunto, faziam algum sentido. Foi assim que fiquei sabendo que, naquela noite, a moça fora procurá-lo. Estava transtornada, declarando-se apaixonada. Ele resistira. Depois disso ela saíra e ele fora dormir. Para ele a moça voltara mais tarde com uma corda, entrara pelo fundo e se enforcara. Nada mais que isso.
Estranhei que ele tivesse se disposto a falar, embora a minha insistência. Disse ainda que já não era padre, o fato ocorrido em minha cidade o transtornara a ponto de deixar a batina.
O padre já estava em pé quando arrisquei perguntar se, por acaso, mantivera algum tipo de relação amorosa com a moça que se suicidara. Ele me olhou nos olhos, muito sério, depois se dirigiu até a porta, perdendo-se na noite.