Em tempos de Show-funeral
Rapaz, eu não imagina que viveria para ver isso. Pois o cadáver de Michael Jackson, morto há alguns dias continua insepulto, à espera que se decida a melhor forma de despedirem-se dele.
Pelo lado do morto, tudo bem: acabado está e se algo ainda se deve a ele na condição de cadáver é o respeito aos mortos. E uma certeza: o show-funeral será na terça-feira.
Por hábito sempre penso nos mortos dentro de seus caixões e sendo baixados à sepultura, quando não cremados. Talvez por isso toda essa celeuma em relação ao enterro de Michael Jackson me pareça fora de propósito. Os dias passam e uma constelação de repórteres permanece na frente da casa do cantor, esperando por qualquer migalha de informação. Às vezes aparece alguém da família Jackson, parecendo andar numa ribalta de onde desfere duas ou três frases rapidamente divulgadas por todos os órgãos de informação. Por trás dos repórteres milhares de fãs consumidores de novidades empolgam-se com narrativas fragmentárias sobre a morte do cantor, dignas de telenovela. A morte de Jackson vai sendo esticada, estigmatizada, gera lucros com a permanência do morto na mídia e o retorno de seus discos ao topo das paradas. A morte de Jackson tornou-se, portanto, um negócio lucrativo.
E agora isso do show-funeral: anuncia-se a despedida de Jackson dentro do estádio do Los Angeles Lakers, com capacidade para 20000 pessoas. Os ingressos serão doados a fãs por sorteio e o funeral transmitido por telões aos que ficarem do lado de fora. É possível a participação de artistas e estuda-se o custo do evento. No centro dessa movimentação toda, Michael Jackson, o morto, esperando a hora de finalmente seguir viagem e desaparecer fisicamente.
A teatralidade das exéquias do cantor só poderia mesmo ser obra de norte-americanos, especialistas que são em megaeventos. Faz parte do caráter do grande povo do norte essa paixão pelo que é grande, pelo exibicionismo que demonstra a força inerente ao país e o seu domínio e influência sobre os demais governos. Pouco importa se por vezes abrem-se brechas nas defesas do império norte-americano: como nos filmes, o império contra-ataca e seus interesses quase sempre prevalecem.
Entender o caráter norte-americano e seu modo de ser é tarefa espinhosa. Joaquim Nabuco serviu como embaixador brasileiro em Washington entre 1905 e 1910. Ainda no século XIX Nabuco publicou o texto intitulado “Influência dos Estados Unidos” que faz parte de seu livro “Minha Formação”. Nesse texto o futuro embaixador realça a influência das origens anglo-saxônicas sobre o caráter norte-americano. Diz Nabuco sobre os norte-americanos:
“O fundo anglo-saxônico revela-se, aumentado ou diminuído, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espírito de empresa e independência da raça, também na brutalidade e crueldade do instinto popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos linchamentos, na sede insaciável de dinheiro, e também, noutros traços, na necessidade de limpeza física e moral, no espírito de conservação, na emulação e amor-próprio nacionais, na religião, no respeito à mulher, na capacidade para o governo livre”.
Do texto de Nabuco podem ser pinçados aspectos ainda hoje facilmente identificáveis no caráter norte-americano. Esses aspectos contribuem para o entendimento do modo de ser daquele país que se esmera em nos surpreender através de criações tantas vezes inusitadas, como esse show-funeral que se prepara para o falecido Michael Jackson.