Vestido de Noiva
Um Nelson Rodrigues contido. Assim é apresentado o texto do escritor carioca em “Vestido de Noiva” peça dirigida por Gabriel Villela em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo.
Nem as pequenas dimensões da sala (são menos de 300 lugares) logra gerar o clima de intimismo que se espera do texto de Nelson. É preciso lembrar que em “Vestido de noiva” está em jogo universo da intimidade de duas irmãs que competem pelo mesmo homem. Existe força, traição, sadismo, vingança, competição e principalmente canalhice explícita na peça escrita por Nelson Rodrigues. A trama reflete o comportamento da preconceituosa classe média carioca dos nos quarenta. Trata-se de um meio social regido pela hipocrisia no qual as tradicionais relações de família e casamento se esgarçam.
É justamente a canalhice explícita, a eficácia do palavrão bem aplicado e a sexualidade que suplanta a razão que faltam na montagem atual da peça.
Não se cobram figurinos, nem planos de atuação (memória, alucinação e realidade) no local onde atuam as personagens. A companhia de atores elimina a ausência da grandiosidade da montagem com a eficácia de suas atuações. Marcello Antony, no papel de Pedro, faz isso com muita elegância ao imitar o ranger de portas inexistentes que se abrem e fecham.
Como se sabe a história gira em torno do conflito entre duas mulheres, Alaíde (Leandra Leal) e Lucia (Vera Zimmermmann) que disputam o amor de Pedro (Antony). Pedro é o adultério em pessoa, personificação do canalha um tanto alheado que se move unicamente em função de apelos sexuais.
A peça começa com um ruído de acidente de trânsito no qual Alaíde, mulher de Pedro, acidenta-se. Enquanto inconsciente e sendo operada Alaíde passa a transitar em dois planos, o mundo habitado pela prostituta morta no início o século, madame Clessi (Luciana Carnieli), e a realidade que diz respeito a Pedro e uma estranha mulher que usa um véu.
Os momentos iniciais do delírio de Alaíde, tentando falar com a prostituta morta, são cansativos. Falta ao público, nesse contexto, o entendimento da trama para que as longas digressões de Alaíde façam sentido. Ainda que a intenção seja a de transferir ao público a confusão mental de alguém que delira entre a vida e a morte, pode-se dizer que falta alguma credibilidade à ação que se desenrola. Ao espectador o início da peça figura-se como não convincente.
Mas as coisas entram nos eixos com o prolongamento da ação. Os atores desempenham bem os seus papéis e preenchem habilmente as lacunas visuais que talvez tornassem mais vívido o texto de Nelson Rodrigues. Ainda assim não se recria o clima maldito de Nelson e abdica-se de tiradas que levariam o público a rir. Fica-se, assim, entre o trágico e o soturno, resvalando-se no insólito embora sem a densidade de uma situação que envolve duas mulheres apaixonadas pelo mesmo homem e capazes de levar ao extremo as suas pretensões.
Marcello Antony está soberbo como um homem dividido entre duas mulheres embora falte a ele a canalhice do safado de ocasião. Bonito, angelical demais num universo de pessoas no qual ninguém presta, mais parece vítima das tramas de duas mulheres que efetivamente o sedutor que dele se espera. De fato, o malandro e cínico Pedro não comanda o destino das mulheres embora se predisponha a interferir sobre eles. É da disputa intestina entre elas que se nutre a ação e, em consequência, o comportamento de Pedro.
A peça favorece-se de interessante trilha musical que buscou em composições antigas a força para complementar as situações que se desenvolvem no palco. O elenco é afinado, a diversão boa e não se pode dizer que se sai do teatro achando que não valeu a pena. Mas falta sal, o sal que nos faz sentir o gosto de carne, a carne que é o grande móvel do espírito de Nelson Rodrigues.