Pequena história
Dias atrás um amigo me disse que a verdadeira história é dos acontecimentos corriqueiros, por assim dizer o varejo das situações vividas pelos indivíduos em cada época. Visão diferente, portanto, da recomendada por Fernand Braudel. Segundo o historiador francês é preciso dar atenção aos intervalos de tempo do objeto em estudo, priorizando os fenômenos de longa duração. Valoriza-se, assim, a globalidade dos fenômenos humanos em detrimento do estudo dos acontecimentos únicos e a abordagem da chamada micro-história.
Para além das discussões teóricas ficam os pequenos fatos do cotidiano. Eventualmente temos a oportunidade de pinçar na realidade que nos cerca pequenas ocorrências que nos dão retratos bem acabados da sociedade em que vivemos e da prevalência de alguns estereótipos.
Ilustra bem a afirmação anterior a história do cidadão de pouco mais de 30 anos de idade, casado e pai de uma filha de 8 anos. São os três, marido, mulher e filha, pessoas aparentemente felizes e realizadas dentro do microcosmo da cidade grande em que atuam. O casal trabalha e ganha o suficiente para cobrir as despesas de uma vida modesta: moram em apartamento próprio e financiado em 15 anos, têm um carrinho e assim por diante.
Essa história feliz poderia continuar a sê-lo eternamente se… nas idas e vindas pelo mundo do trabalho o cidadão não tivesse cruzado com mulher que o interessou vividamente e com quem passou a manter, às escondidas é verdade, relações além de simples amizade.
Como acontece em tantos casos semelhantes, as coisas foram bem até um pequeno descuido tornar pública a relação extraconjugal. No caso presente o móvel da desgraça foi o costumeiro telefone celular no qual a esposa do inditoso cidadão encontrou um recado da amante.
Até aí tem-se uma situação rotineira com consequências e soluções previsíveis. Entretanto, o que não se poderia prever foi a reação do cidadão quando intimado pela esposa. Acuado e injuriado saiu-se ele com a seguinte explicação:
- Sou e sempre fui bom pai e bom marido. Nada falta a vocês. Tenho, portanto, o direito á posse de uma amante.
O que nos chama a atenção nessas palavras é a certeza do dever cumprido e dos favorecimentos dele decorrentes. Mas e mais que isso, lê-se no discurso do cidadão que traiu a prevalência de um aspecto cultural que nenhuma revolução feminista conseguiu abalar. Aliás, tratando-se de um cidadão comum e sem maiores luzes, pode-se dizer que é cartesiana a lógica do discurso de dominação utilizado por ele.
Note-se, ainda, que nas palavras do marido não existe uma posição elaborada através do amadurecimento de opinião pessoal: vai ele buscar no ideário do machismo a frase lapidar que aplica sem qualquer remorso.
O que aconteceu depois de conhecida a traição: choro, muitas lágrimas, a mala de roupa na porta, o cidadão dormindo em hotéis baratos para economizar e a reprovação dos avós de ambos os lados para quem mais importa a felicidade da criança.
O que acontecerá nos próximos tempos? Quem sabe umas noites mal dormidas e um perdão em nome do futuro da criança. Se assim for, voltarão os almoços em família aos domingos, com a presença dele, sempre ele, o cara que adquiriu o direito a uma amante graças à sua boa conduta como cidadão, pai e marido.
Uma coisa o cidadão da pequena história garante: foi só um caso, acabou e não vai se repetir.