Terra Magazine
“Machado procurou se esconder”, diz biógrafo
Claudio Leal
O centenário da morte do escritor Machado de Assis (1839-1908), a ser completado em 29 de setembro, reaqueceu a edição de ensaios sobre o mestre do romance, o mais celebrado escritor da história literária brasileira. Enquanto houve avanços na divulgação em outras línguas do criador de Capitu, Quincas Borba, Sofia e Bentinho, outros desafios internos se impõem no esquadrinhamento de sua imagem histórica.
Entre as obras lançadas neste 2008, está “Machado de Assis - Exercício de admiração” (Ed. A Girafa), do professor, médico e escritor Ayrton Marcondes. A biografia fornece um roteiro da produção literária de Machado, com leitura crítica de seus romances e contos, além do diálogo com outros intérpretes, a exemplo de Silvio Romero, o mordaz Agripino Grieco, Augusto Meyer e Alfredo Bosi. Acima de tudo, um convite ao mergulho no universo machadiano.
Para o biógrafo, um dos desafios enfrentados foi o recato do escritor e a fusão entre vida e obra no preenchimento dessas lacunas.”Na solidão e à distância dos rumores, o misantropo gozará o fato de ser reconhecido. E não poderá viver sem esse reconhecimento surdo, distante, que garante o seu lugar entre os vivos e os mortos e confere razão à sua existência”, escreve Marcondes.
Em entrevista a Terra Magazine, o biógrafo avalia o fenômeno da “machadolatria” (visão acrítica do fundador da Academia Brasileira de Letras) e as relações do misantropo com a política. “Machado é essencialmente um romancista do Segundo Império”, diz.
- Machado era um homem da ordem, além do mais era um funcionário público. A ordem do Império era o mundo dele. A República era um fato ocasional, não significava pra ele uma mudança. Era um conservador. Com o tempo, vai se adaptar, até porque o novo regime se estabiliza. Agora, ele evita de todas as formas dar uma opinião sobre isso. Mas a República seria uma mudança de tabuleta, como diz em “Esaú e Jacó″. A Confeitaria do Império vira a Confeitaria da República.
Ayrton Marcondes é também autor de Canudos, As Memórias de Frei João Evangelista de Monte Marciano, Campos Salles, uma investigação na República Velha e Por onde andará Machado de Assis?.
- Machado tomou um cuidado extremo em se esconder. Ele não se mostrou. Um caramujo… Era um caramujo e hoje é difícil entrar lá pra ver o que realmente existia - pondera.
Confira a íntegra da entrevista.
Terra Magazine - Em “Machado de Assis - Exercício de admiração”, o senhor destaca a contradição de tentar deslocar o foco para a obra dele e não ser possível fazê-lo. Por quê?
Ayrton Marcondes - A contradição do Machado é a seguinte. Não é que aproximar o leitor da obra é impossível. O que é difícil é você bater a obra do Machado com ele mesmo. O biógrafo tem uma dificuldade muito séria. Ou ele procura o Machado pessoa, ou procura a obra do Machado. O ideal, como dizia Augusto Meyer, é que você se ocupe da obra e deixe em paz o homem. Mas não se consegue fazer isso. Vão sempre atrás dele, tentando entender o homem que ele foi e saber se de tal homem podia ser esperada tal obra. Em geral, isso não está muito certo. Porque a vida dele foi tão recatada, tão introspectiva, que é difícil imaginar que um homem como ele tivesse escrito o que escreveu. A dificuldade é essa: a procura do Machado dentro da obra e fora dela.
O senhor revisitou a obra de Machado de Assis e a crítica em torno dele. Quais são os principais eixos de interpretação?
Olha, em primeiro lugar, é preciso entender o seguinte: a crítica passou, ao longo do século, por vários tipos de conceituação. Havia uma crítica da época do Machado - não era uma crítica forte, era atuante. Há outra do modernismo, na década de 20… Quer dizer, se você for olhar década após década, a orientação da crítica é diferente. A obra do Machado passou por várias leituras de diferentes épocas. Num determinado momento, a crítica socialista do Astrojildo (Pereira), noutro o Agripino Grieco. Se for mais para trás, o Silvio Romero. E hoje críticos como Alfredo Bosi, John Gledson, cada um com uma vertente crítica, uma maneira de pensar. O que a gente nota é uma evolução conceitual de teses sobre Machado. Mas o curioso é que se pode acompanhar, desde a época de Silvio Romero, o caminho de uma determinada interpretação, segundo uma vertente crítica. Pode pegar o famoso absenteísmo político de Machado em 1910, em 1930. Em diversas épocas, críticos diferentes analisam quase sempre os mesmos aspectos. O meu livro tenta também fazer uma releitura de todas essas críticas.
O escritor Machado de Assis no traço do caricaturista Nássara (acervo preservado no Museu Nacional de Belas Artes)
Raymundo Faoro (autor de A pirâmide e o trapézio) não deslocou essas interpretações?
A leitura do Faoro é muito interessante porque a pirâmide e o trapézio ilustram que Machado participaria de uma pirâmide de ascensão social à procura do topo e, na verdade, a sociedade da época - ele viveu o Segundo Império - era de estamento, um trapézio, o contrário, de cima pra baixo. Ele analisa essa contradição da sociedade estamental. Faoro foi muito detalhista, tem uma preocupação histórica.
Pra estudar Machado, é preciso entender também o Império e a transição para a República, não?
Bom, eu tinha experiência com esse período desde os livros que escrevi sobre Canudos e o governo Campos Salles. É um período muito rico da história do Brasil, o Império e a Primeira República. Não dá pra entender o Machado sem contextualizar a obra dele. Porque você entra num universo onde o afro-descendente é um ex-escravo, uma época com títulos nobiliárquicos que caíram em desuso na República. Os meios de locomoção eram o cabriolet, o coche… E isso é do Raymundo Faoro, que mostra como Machado escolheu muito o tipo de carro pra caracterizar a situação do personagem dentro do estamento. Sem você entender o que ele fala, fica descontextualizado. Numa família patriarcal, o que se esperava das mulheres, o que as mulheres podiam almejar?
Lendo os romances de Machado, há a clássica situação da viúva com dois pretendentes. Ou o marido, a mulher e um terceiro que está interessado. Essa é uma sociedade patriarcal, dominada pelo homem, o máximo que a mulher podia almejar era o casamento. É sobre isso que Machado fala. Ele não é pictórico, mas ele trabalha com essa formação familiar, com essas pessoas e os problemas que elas tinham. É um grande retrato. Machado é essencialmente um romancista do Segundo Império. Procurei trabalhar por esse lado, procurando contextualizar o período. “Iaiá Garcia” é totalmente ambientado na Guerra do Paraguai.
O que representou a República pra Machado de Assis?
Na verdade, o que se depreende é que a nova ordem não era do agrado dele. Machado era um homem da ordem, além do mais era um funcionário público. A ordem do Império era o mundo dele. A República era um fato ocasional, não significava pra ele uma mudança. Era um conservador. Com o tempo, vai se adaptar, até porque o novo regime se estabiliza. Agora, ele evita de todas as formas dar uma opinião sobre isso. Mas a República seria uma mudança de tabuleta, como diz em “Esaú e Jacó″. A Confeitaria do Império vira a Confeitaria da República. Mudou a tabuleta, não mudaram os homens, a confusão continua. Mas o Império era a segurança.
E quanto à Abolição? Há aquela frase no “Memorial de Ayres”, do dia 13 de maio de 1888, quando ele chega à casa dos Aguiar e vê uma comemoração da da família: “Não há uma alegria pública que valha uma boa alegria particular”.
É. A passagem do Machado, talvez a única, em que aparece nas comemorações da abolição dos escravos, está numa crônica dele. Ele teria subido num carro, desfilando com o povo. Mas em relação à República, não. Nunca encarou a República como uma mudança necessária.
O médico e escritor Ayrton Marcondes
O senhor analisa cada obra de Machado. Como foi o processo de formação da linguagem antes de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”?
Machado obedece a várias influências. O que importa mesmo é que Machado não começou com “Memórias Póstumas”, o grande marco. Ele é um estudioso que vem lá de trás, também um experimentador. É óbvio que nesse período ele vai lendo o que os outros fizeram e vai criando um sistema de escrita. Um sistema cada vez mais econômico, com menos adjetivos. Dizem que ele tinha um vocabulário reduzido, mas, na realidade, ele trabalha com um universo fechado de linguagem.
Como se manifesta a “machadolatria”?
Machado atuou durante um período muito grande. Com quinze anos, ele estava começando a publicar. Morreu em 1908, teve um período de atuação muito amplo. Isso quer dizer que, na obra dele, tem muita coisa também que não é boa. Claro, ele escreveu muito. Nem sempre ele foi um escritor de romances e de contos. Foi poeta, teatrólogo, cronista, jornalista… Tudo. Acontece que o Machado não foi igual. Mas gerou - e isso quem falava era Agripino Grieco no primeiro “Machado de Assis” (no segundo, ele aliviou um pouco), uma “machadolatria”. Não podia falar nada contra, que imediatamente as pessoas se voltavam contra a pessoa que estava acusando o Machado.
Em geral, as pessoas tratam o Machado como se ele tivesse sempre 40 anos. Querem que ele tenha sido assim aos 20 e 30 anos. Você não pode ler um poema de “Crisálidas”, o primeiro livro de poemas, como se fosse do tempo de “Dom Casmurro”, por exemplo. Não é a mesma pessoa. Não é o mesmo autor. É preciso separar um pouco o trigo do joio e verificar o caminho dele. No meu livro, procuro vir lá de trás, mostrando o crescimento até chegar aos grandes livros. Pra isso, eu fiz uma releitura de todos os livros do Machado, como ele desenvolveu determinados temas. Porque o Machado tem isso: ele analisa um tema na crônica, depois o põe num conto… E o tema amadurece. As coisas evoluíram. Às vezes o mesmo tema, o mesmo tipo de personagem. Tenho a impressão de que, no começo, ele pegava a pedra e esculpia uma forma imprecisa. Com o tempo ele vai aperfeiçoando, até chegar ao final, uma escultura perfeita.
Quais eram os principais temas literários?
Vamos pegar pelo último Machado. Ele descreve a viúva, a história do trio amoroso (marido, mulher e amante) permeia a obra dele. Mas o grande tema de Machado é o lado perecível das coisas, a finitude das coisas, o homem como um ser marcado pelas circunstâncias, joguete das circunstâncias, o fato de não haver uma esperança real. Machado não crê em quase nada. Tudo acaba, tudo tem fim, as gerações passam, a vida se repete…
Cita sempre o “Eclesiastes”. Não há nada de novo sob o Sol…
O Eclesiastes. Tudo é vaidade. A filosofia de Schopenhauer, o homem é vítima da própria vontade, não pode realizar o que ele quer, essa contradição do homem. Os temas do Machado são ligados a esses aspectos filosóficos.
Isso não terminou por impregnar as biografias dele? Não há uma mistura excessiva entre o autor e o homem?
Veja bem, o Machado tomou um cuidado extremo em se esconder. Ele não se mostrou. Um caramujo.
Mário de Alencar (amigo e filho do romancista José de Alencar) relatou essa dificuldade…
Falava isso. Era um caramujo e hoje é difícil entrar lá pra ver o que realmente existia. Mas como o Machado era um pessimista, tinha essa visão cáustica do homem - alguns diziam que ele odiava a natureza humana -, muita gente procura vincular essa visão ao que ele era. Machado era mestiço numa época em que a mestiçagem era considerada um fator deletério, decorria do enfraquecimento da espécie humana. Essa era a ideologia da época. Machado era feio, gago, por conseqüência tinha sido um revoltado, tinha um complexo de inferioridade… Tudo isso junto, todas essas idéias só poderiam traduzir alguém que escrevesse o que ele escreveu. Muitas biografias têm depoimentos de pessoas que conheceram Machado, depoimentos bastante interessados. Há um clássico do professor Hemetério dos Santos
Ele publicou uma crítica no Almanaque Garnier e ali ele caracteriza o Machado, no mínimo, como um ingrato. Hemetério diz que conheceu a madrasta de Machado. Ele teria abandonado a madrasta, pra subir um degrauzinho na escala social. Além do mais, teria vergonha da negritude, tanto que ele foi acusado de não ter participado em nada, pela posição que tinha, no processo abolicionista. Então, criou-se, a partir de Hemetério e outras pessoas que o conheceram, essa visão de que de um homem assim você só podia esperar essa maldade, esse ódio ao ser humano. Agora, aí é difícil, porque as fontes que dizem isso são poucas. Mas, para preencher os espaços da vida do Machado, porque ele simplesmente fechou a porta, usam esses argumentos. E a eplepsia, naquela época, era vista como algo terrível. Era ligada à criminalidade.
Com crises em público…
Pois é, num lugar público. Outra vertente tenta mostrar que ele era um doente…
E a Lúcia Miguel-Pereira?
Gosto muito da biografia que ela escreveu (de 1936), porque ela se distanciou um pouco. A biografia é diferente porque ela tenta preencher os vazios da vida do Machado com trechos da obra.
Romanceia um pouco?
Ela romanceia na escrita. Mas ela tem uma vantagem: conheceu muitas pessoas que conviveram com Machado. É uma boa biografia, lembrando sempre que atribui a Machado uma espécie de confissão através de seu texto. Não sabemos nada da infância dele, exceto a morte da mãe, da madrasta. Ela preenche com a infância de Brás Cubas, etc.
Machado tinha essa imagem monolítica de hoje? Era uma unanimidade?
Olha, podia ter gente que discordasse de Machado, mas se teve um escritor incensado durante a vida, foi ele. Era o chefe inconteste da literatura. Foi reconhecido a vida inteira. Um escritor glorioso no tempo em que viveu como poucos foram. Agora, teve o pessoal que não gostava dele e o acusava de muita coisa, inclusive de não ser genuinamente nacional, de não ter participação social.
Lima Barreto não ia com ele…
Não gostava de Machado de Assis. Aliás, engraçado, naquela cidade pequena (Rio de Janeiro), no Centro onde todos circulavam, é curioso que você não tenha o relacionamento do Machado e Lima Barreto, entre Machado e Euclides da Cunha (houve na Academia). Machado era o homem da livraria Garnier, as pessoas sentavam em volta… A morte dele é uma coisa espantosa. Oliveira Lima, numa palestra na Sorbonne, se refere a uma coisa impressionante. Que quando corre a notícia da morte, a cidade pára. Não se podia imaginar que ele tivesse junto ao povo tanta consideração. O enterro foi extremamente movimentado. Ele pára a cidade.
Lúcia Miguel falava do silêncio…
É, há depoimento de quem estava lá. Tem foto do enterro. O silêncio e o reconhecimento. No momento da morte, ele tem um grande reconhecimento popular. Oliveira Lima fala isso: era completamente inesperado, porque ele não um escritor popular.
O Brasil só tinha 30% de alfabetizados.
Sim, mas ele teve isso. Era uma glória nacional.
Quais são os pecados históricos de interpretação que o senhor identifica?
Em primeiro lugar, existe o seguinte: o que eu chamaria de caminho de idéias. É muito difícil você escrever sobre Machado e, eventualmente, não procurar coisas que outros já disseram. Há muita coisa dita como se não tivesse sido dita. Quando você vai lá atrás, procurar os primeiros críticos, vai achar considerações que posteriormente foram renovadas. Portanto, um dos pecados é a questão da paternidade das idéias. Conferências antigas, de críticos mais recuados… Muita coisa que Agripo disse… Aliás, Agripino era uma pessoa de uma inteligência absurda…
Hoje está esquecido.
Porque a tradição crítica, no Brasil, recuou inteira. Hoje tem pouca gente na crítica. Mas Agripino pegou muito pesado, era quase um repentista fabulosamente inteligente, que criava frases, situações. Dá pra ler essas pessoas e ver o caminho das idéias. Só isso dá um trabalho. O pessimismo do Machado ao longo do tempo. A participação política. Em 1950, o Brito Broca já estava revendo esses críticos.
Saindo do terreno do pesquisador e entrando no plano pessoal, qual o romance que o senhor considera o melhor de Machado de Assis?
Gosto muito do “Dom Casmurro” e adoro “Esaú e Jacó″. Quando a gente escreve alguma coisa, muitas vezes escreve textos que não estão ligados ao núcleo central. É como uma novela. Me parece que o Machado trabalhava com uma montagem. Como se tivesse a idéia de escrever um conto, e de repente ele começasse a ficar grande… até virar um romance. Acho que, no início do livro, ele não tinha o fim na cabeça. Talvez tivesse. Manuel Bandeira, quando fala da “Última canção do beco”, diz que ele estava num bonde no Rio e, de repente, caíram em cima dele todos os versos. “Memórias Póstumas” é como uma medusa, que tem o disco central e os braços. A impressão minha é que ele fazia braços e braços e ia ligando no disco central. Isso explica porque sai tanto dos trilhos, vai e volta. Dá pra imaginar ele remexendo a ordem dos capítulos. No “Quincas Borba”, andou fazendo isso. Mas ele é mais ordenado em “Dom Casmurro”, com a previsão do impacto.
Logo no começo, o narrador pretende ligar as duas pontas da vida.
É, ali ele já tinha a história concebida (risos). No conto, não. Como perfeição técnica, escolho “Dom Casmurro”.
E o caso do “Memorial de Ayres”?
Há uma discussão séria. A maioria dos biógrafos e críticos quer transformar aquilo em auto-biografia. Há realmente muita coincidência. Há uma carta dele pro Mário de Alencar, em que ele pede pra não revelar em quem se inspirou (Carolina, a mulher de Machado). O livro é perfeito. Tem essa imagem de ele fala por aforismos. Todo mundo repete isso. Não é bem assim. Ele é inspirado mesmo.
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