Campos Salles - Uma investigação na República Velha
Campos Salles - Uma investigação na República Velha de Ayrton Marcondes é novidade na pesquisa da história e nas letras brasileiras. De um lado, é trabalho rigoroso sobre Campos Salles e a época de sua atividade política, e guarda, de outro lado, senão a forma, pelo menos o conteúdo da literatura de ficção.
Este livro compõe com o anterior, do mesmo autor, Canudos, as Memórias de Frei João Evangelista de Monte Marciano, publicado pela editora Best-Seller, uma espécie de díptico. Referem-se ambos ao período da consolidação republicana e do governo dos dois primeiros presidentes civis. O professor Ayrton Marcondes não é, portanto, nenhum cristão-novo nos estudos republicanos.
O ex-Presidente da primeira República brasileira, instado por um amigo, escreve no ano de sua morte, 1913, uma espécie de memória sobre a sua vida e seu desempenho político. Porém, à narrativa do Presidente superpõe-se a de outro autor, professor, pesquisador na área de história e habitante da capital de São Paulo, Walter Mello. O texto é composto por duas narrativas que fluem de maneira paralela e que podem, também, ser lidas isoladamente.
O narrador Presidente dirige o seu depoimento a um interlocutor misterioso, a quem denomina “Caro Amigo”. Em torno deste interlocutor tece-se no espírito do leitor uma expectativa e um suspense que apenas será deslindado no final inusitado, nas últimas linhas do último capítulo do texto. Estes recursos, estritamente ficcionais, aliados a uma escritura transparente e literariamente brilhante, filiam o livro a boa prosa de ficção. Mas isto não é tudo.
Os narradores alternam-se no transcorrer dos capítulos, que aparecem numerados, mas desprovidos de títulos gerais. De fato, os títulos, distinguindo os assuntos ou os temas narrados, disseminam-se de maneira profusa no interior de cada capítulo, o que poderia sugerir, à primeira vista, uma estrutura fragmentada e ainda mais radicalmente literária. Mas não é isto o que se passa. Há continuidade e não ruptura entre os capítulos e os pequenos textos que os constituem, e a matéria temporal é tratada cronologicamente.
Campos Salles, após ter escrito e em 1908 publicado Da Propaganda à presidência, parece, no texto de Ayrton Marcondes, ter voltado à pena e produzido mais um depoi-mento relevante sobre a história republicana brasileira. Assim, Uma investigação na República Velha não deixaria de ser trabalho de pesquisa histórica a partir de documentos, às vezes, desconhecidos pela historiografia.
A forma da autobiografia, que está presente nas duas narrativas, permite que, ao lado dos grandes acontecimentos, ganhem relevo alguns detalhes significativos e que uma história da vida cotidiana, esquecida no interior de quadros explicativos amplos e muitas vezes apriorísticos, venha a lume. Há, a este respeito, inúmeros exemplos.
A carta que Ana Gabriela, esposa de Campos Salles, escreve para Catita, a filha mais velha do senhor viúvo e futuro Presidente da República, Rodrigues Alves, sobre os afazeres domésticos no palácio do Catete, é singela, delicada e reveladora da mentalidade e do papel das mulheres na sociedade brasileira do início do século passado.
A história e a historiografia ainda estão presentes na Investigação… através da inserção de documentos no texto corno cartas, artigos de jornal, página de diário como a de D. Pedro II. O leitor é constantemente confrontado com fontes primárias, corno se as observasse nos arquivos e devesse, portanto, interpretá-las.
A sensibilidade e a perspectiva do autor são decisivamente históricas e, talvez, por isto, ele coloque em cena um narrador, nosso contemporâneo, pesquisador da República Velha e de Campos Salles e observador atento da metrópole paulista. Pois o olhar de Walter Mello percorre as mudanças pelas quais passou a cidade. A paulicéia de 1900 é comparada à atual.
Há instantes em que, no seu pensamento, a cidade antiga apaga a contemporânea e o narrador descreve, com precisão, paisagens urbanas extintas como as da Avenida Paulista, as da Praça da Sé e muitas outras. Nascido em 1950, o narrador é uma espécie de caçador de imagens voláteis do passado, deslocando-se em temporalidades diversas da história ou de sua vida pessoal. A sua narrativa é, portanto, entremeada por fluxos de consciência e projeções de lembranças.
O início dos novecentos parece-lhe, do ponto de vista político, com o atual. O governo de Campos Salles recorda-lhe aspectos da administração de Fernando Henrique Cardoso: a mesma popularidade no início de gestão que se dilui na travessia de administrações caracterizadas pelo controle estrito da moeda, pela deflação e pela procura do equilíbrio orçamentário do Estado.
Walter Mello é um historiador, um homem culto, marcado por traços da geração e da sociedade brasileira e paulistana da segunda metade do século XX. O autor parece ter se preocupado em definir, também historicamente, o seu personagem e os seus pontos de vista. A perspectiva histórica do personagem transparece explicitamente na narrativa.
O pesquisador do governo Campos Salles entende o historiador como um “ressuscitador” de homens do passado. No entrecho denominado “Gênesis” do capítulo 23, Mello não saberia ser mais explícito ao definir o ofício do historiador como o que junta o pó e refaz os ossos para cobrir com carne e pele aqueles que dormem o sono pesado dos tempos extintos. A missão do historiador é acordá-los e devolver-lhes alguma existência, soprando o ar da vida em suas bocas. Este ponto de vista é recorrente.
No capítulo 47, sustenta que Campos Salles preferiria permanecer calado e reafirma que Investigar o passado representa entrar num mundo, usufruir de seus usos e costumes, consultar pessoas sobre os seus hábitos e, sobretudo, refletir sobre o que pensaram, disseram e fizeram. Para isso não há outro caminho que não o de estar no meio delas, observá-las, refazer os seus caminhos, enfim, ouvi-las.
Walter Mello é um historiador da escola que remonta à historiografia francesa do século XIX. Nos seus pontos de vista ecoam teses e noções que fizeram e fazem história desde Michelet e seu projeto de uma historiografia entendida como “revivescência” de épocas silenciadas pelos séculos. Portanto, a Investigação na República Velha do professor Ayrton Marcondes faz história sem deixar de refletir sobre o métier do historiador.
Mas, na escola dos “ressuscitadores”, o estilo é fundamental. É necessário bem descrever o passado para fazê-lo renascer. Todo historiador torna-se um duplo de pesquisador rigoroso e de escritor brilhante. A historiografia como arte da narrativa avizinha-se da literatura.
O livro refere-se a dois momentos históricos mediados por cem anos, segue, entretanto, pari passu os acontecimentos republicanos protagonizados por Campos Salles. Os fatos históricos são apresentados cronologicamente e, ao mesmo tempo, explicados.
Do início da propaganda republicana, passando pelo quatriênio presidencial, até as últimas articulações políticas de Campos Salles, nenhum acontecimento parece ter sido relegado. Entre estes inclui-se a oposição manifestada pelo intelectual republicano e irmão do Presidente, Alberto Salles, no artigo denominado “Balanço Político” e publicado no jornal O Estado de São Paulo, em janeiro de 1901.
Fatos intrincados e de difícil entendimento, como o funding-loan e a política dos governadores, são expostos com detalhes e, às vezes, com esmero didático. Todos estes acontecimentos são simultaneamente analisados. E aqui se encontra sem dúvida um dos aspectos mais curiosos do livro.
Campos Salles não somente expõe os episódios históricos de sua vida, mas os interpreta. E nessas interpretações, sente-se o pulso do republicano histórico. O ex-presidente, no seu retiro de 1913, é ainda um republicano de convicção, num período de tantos desalentos de velhos republicanos para com o regime.
Campos Salles é um republicano convicto quando expõe as raízes do movimento republicano e discute com os que viram a República como o resultado de um golpe militar ou de descontentamento dos senhores de escravos com a abolição de 1888. No seu entender, a República brotou da evolução natural das idéias e de um longo processo de difusão da ideologia republicana na sociedade do Segundo Reinado. Como homem culto e de ciência do século XIX, como seu irmão Alberto Salles, autor de A Política republicana, sustenta que a República como caminho necessário ao progresso do país seria, como foi, inevitável.
Exprime, ainda, a perspectiva republicana estrita ao atribuir ao Segundo Reinado, denominado à moda da Revolução Francesa de Antigo Regime, a responsabilidade por um eventual marasmo ou estagnação de meio século que atingiu o país e que apenas foi sacudido pelo advento da República.
O encantamento para com a terceira República francesa é também radicalmente republicano. Apelidado de “Gambetta brasileiro”, visita em França a casa do ilustre republicano e assiste, durante a sua primeira viagem à Europa, no Collège de France, às aulas do positivista ortodoxo Pierre Lafitte sobre “Filosofia Primeira”. Sob a pena do narrador ex-Presidente da República são as posições republicanas que ainda pulsam.
Campos Salles é, portanto, mais do que uma persona¬lidade isolada ou um político dotado de virtude e favorecido pela fortuna, representa, de fato, um projeto e uma ação coletivos. Seus pontos de vista são partilhados por inúmeros outros. E foi em torno desse personagem histórico que o autor de Campos Salles - Uma investigação na República Velha teceu uma pesquisa histórica rigorosa e uma narrativa, também de natureza histórica, mas com méritos literários frisantes e indiscutíveis.
José Leonardo do Nascimento
Professor de História da Cultura
Instituto de Artes
Unesp
Olá Luziane
Tudo bem?
Tenho sim, muito interesse em ver o documento. Mas isso vai depender da sua localização etc. Você poderia fornecer mais detalhes?
Muito obrigado
Ayrton Marcondes
Ayrton Marcondes
26, 26America/Recife março 26America/Recife 2010 às 13:43