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Rota do medo

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Você ouve falar, assiste aos noticiários, lê nos jornais, mas parece que não acredita. Fantasma que assombra outros é problema de quem é assombrado. Aconteceu com ele, não vai acontecer comigo. Talvez seja essa uma forma de proteger-se, isolar o perigo. Torno-me imune à violência porque ela não vai chegar até mim.

Mas, no fundo trata-se de uma enganação. Toma-se gosto em enganar-se, em fingir que tudo está e sempre estará bem. Essas pessoas vitimadas por balas perdidas, os inocentes assassinados, a violência desmedida fazem parte da ficção. Tudo não passa de matéria de filmes e nada mais.

Aí você sai de São Paulo em direção a Santos. No pedágio fica sabendo que a Imigrantes está fechada e deverá descer pela Anchieta. Passam alguns minutos da meia noite quando você entra no acesso à interligação. Então, do nada surgem quatro motos com dois caras em cada uma delas. De repente as motos de alinham, duas de cada lado, próximas ao seu carro. Ato contínuo os caras começam a gesticular apontando pra você. No escuro é impossível saber se eles estão com revólveres na mão ou não. Então acontece: você está à mercê de bandidos perigosos que querem assaltá-lo ou sabe-se lá o que mais.

Não se trata de ficção. Está acontecendo com você, do mesmo jeito que é noticiado nos programas policiais da TV. Você se descobre indefeso, isolado e a única coisa em que pensa é meter o pé no acelerador e sumir dali. Mas, há o perigo deles atirarem e ferirem alguém dentro do carro. A decisão é rápida porque parar ali não dá. Você acelera, corre o quanto pode, até que, milagrosamente, vê pelo retrovisor as motos se afastarem. Desistiram de você? Vão pegar outro carro?

O resto da viagem é o medo. Puro medo. Trânsito lento na serra apinhada de caminhões. Até chegar em casa e agradecer aos céus pleo milagre.

Bloqueio

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Não sei se a palavra certa é “bloqueio”. Ideias não faltam mas, convertê-las em texto exige grande esforço. Afinal, escrever para quê?

Suponho que algumas pessoas tragam do berço a capacidade de contar histórias. Algumas delas se tornam escritores medíocres, outras, raras, grandes escritores. No caso de escritores profissionais existem os que se mantêm em atividade até a velhice. Outros param a meio caminho. Há gente como Salinger que se notabilizou por trazer à luz apenas um livro. E por aí vai.

Talvez no cerne daquilo que seria bloqueio exista mesmo nada mais que indiferença. Sim, indiferença em relação a um mundo sobre o qual cada vez mais seja impossível interferir. Os discursos parecem esgotados. Os homens já não reagem aos costumeiros estímulos. Algo de novo paira sobre as cabeças que se mostram incapazes de decodificar o atoleiro de mensagens que circulam à nossa volta.

Um amigo me disse: se você já não tem nada a dizer à pessoa a seu lado, então nada há a ser feito. Que mensagem pode ter um texto bem elaborado, mas cujo conteúdo quase nada tem a revelar? Ou, de outra forma: para que repisar - e mal - temas desgastados, procurando inovar em solos que deixaram de ser férteis?

Entretanto, não há que se esquecer de que somos seres humanos, portanto imprevisíveis. Aliás, seres nos quais nem sempre o bom senso prevalece. Seres tantas vezes dados à irracionalidade. À revolta. À destruição de paradigmas. Seres essencialmente criativos aos quais não falta essa coisa à qual damos o nome de esperança. Desgastada que esteja, sufocada, a esperança sobrevive. Vai daí que o tempo passa e, certa manhã, igual a tantas outras, do nada brota uma trama completa e mergulha-se no texto do qual é impossível fugir.

Assim nascem os livros.

Saúde e doença

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Pensava que ao me aproximar dos 70 estaria um caco. Surpreendo-me com minha disposição que considero até melhor que em certas fases anteriores da vida. Sintomas como dores de cabeça e prisão de ventre existem, nada piores que no passado. Na verdade o problema está nos excessos. Come-se e bebe-se meio indiscriminadamente. Não há como fugir das consequências, afinal a máquina humana depende de cuidados para se manter funcionando adequadamente.

Vejo-me obrigado a penitenciar-me pelo descaso em relação a cuidados médicos. Sou desses caras que vai deixando pra lá. Exames de rotina só a cada dois anos o que é um erro. Consultas médicas então…

Falo sobre isso porque diariamente ouço sobre o problema das empresas de saúde que muito prometem e em geral têm dificuldades de cumprir o que escrevem nos contratos. De que a saúde pública no Brasil anda mal todo mundo sabe e não é este o espaço para discutir o problema.

Entretanto, parece que os custos poderiam ser reduzidos caso se fizessem campanhas de conscientização. Conheço pessoas que simplesmente não saem de consultórios médicos e a toda hora se submetem a exames clínicos muitas vezes desnecessários.

Uma idosa, usuária de plano de saúde, me disse que talvez o que leve idosos a cuidados exagerados com a saúde seja o medo de morrer. Acrescentou que a qualquer sintoma marca consulta. Por que esperar as coisas piorarem e não combater o mal logo no início? Ocorre que essa senhora idosa tem saúde de ferro, só que não acredita nisso.

O que talvez falte é um pouco de bom senso. Nem pouco, nem muito, apenas e quando necessário. O sujeito não tem que ser como eu que deveria ter mais cuidado com a minha saúde. Nem entregar-se ao exagero no qual consultar médicos e realizar exames torna-se rotina.

Vida regrada, exercícios físicos, bom atendimento médico e condições para tratamento quando preciso constituem-se numa boa política para manter a saúde e viver bem.

Aliás, já passa muito da hora em que eu deveria comparecer à minha consulta anual.

Mamãe

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Ela ali, ao meu lado, diante do famoso neurologista que nos fazia a gentileza de atendê-la. O caso é que o neuro era pai de um meu quase amigo a quem eu pedira o favor de falar a ele sobre a doença de minha mãe. Mas, o neuro estava em férias e foi só pela insistência do filho que apareceu no consultório.

Obviamente, não havia dinheiro para pagar o favor que ficou mesmo como gentileza, humanidade. E minha mãe lá, quieta, a boca torta, repuxada, consequência de mais um dos AVCs que sofrera. Falava com alguma dificuldade, sabe como é quando a parte motora não responde na velocidade certa as ordens enviadas pelo cérebro.

Daquele fim de tarde ficou o momento em que o neuro fez perguntas à minha mãe e, respostas dadas, ele me disse: como é inteligente essa mulher, poucas veze tenho visto inteligências desse porte.

Ela era assim, inteligente, obstinada, guerreira, severa, sofrida. A formação primária não a impedia de ler jornais e revistas, além dos noticiários do rádio, porque naquele tempo o que se tinha em casa era só o rádio. E havia aquele senso de família dela, senso que justificava até trazer para viver na nossa casa minha tia e os filhos dela que não tinham para onde ir, aliás coisa que contribuía para puro desespero de meu pai.

Minha mãe tinha atração natural pela cultura que a ela faltava. De todo modo insistia na educação dos filhos que a todo custo deveriam virar gente formada. Assim, aos seis anos eu já sabia ler e escrever um pouco, tanto que ela me levou ao grupo escolar para ver se a diretora não me matricularia direto no segundo ano, porque o primeiro eu já fizera em casa. Não foi possível e ela acabou se conformando.

Como disse, minha mãe era severa. Nos tempos atuais as crianças gozam do benefício de não poderem apanhar, mesmo dos pais. Em criança sobrevivi a belas surras, algumas delas pelas mãos de minha mãe, outras recebidas no grupo. As pancadas faziam parte do “endireitamento” das crianças que se tornariam educadas e bons cidadãos. Não se falava na tal pedagogia do medo hoje tão execrada.

Eu poderia ficar aqui, enchendo páginas de lembranças sobre a minha mãe que tanto lutou para que eu viesse a ser aquilo que ela sonhara. Certamente estou longe de atender ao nível dos sonhos dela, mas posso dizer que, afinal, não devo tê-la decepcionado muito.  Então deixo-me levar por esse turbilhão de coisas vividas que me passam pela cabeça e pondero sobre como a vida passa depressa e a paisagem humana que nos cerca muda sem que nem sempre nos demos conta disso.

Acontece todo ano, no mês de maio, quando se celebra o dia das mães. Então minha mãe se ergue de sua tumba e se torna onipresente no meu pensamento. Mais hora, menos hora, eis-nos nas nossas conversas, como a do dia em que fomos à consulta com o neuro.

Impossível esquecer minha mãe, impossível ignorar o que ela foi e o tanto que fez por mim. Nessas horas que me separam do domingo das mães bate uma saudade danada daquela mulher que me amava tanto.

Escrito por Ayrton Marcondes

8 maio, 2015 às 12:46 pm

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Um assassinato a cada 10 minutos

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As estatísticas sobre a criminalidade no Brasil são estarrecedoras. Ano passado 50 mil pessoas foram assassinadas, Esse número é maior que o verificado em conflitos como a Guerra do Iraque e outras. Ou seja: estamos em guerra não declarada.

Também se divulga que ano passado aconteceram 50 mil estupros no país. O detalhe é que esse é o número de mulheres que apresentaram queixa após serem estupradas. Estima-se em mais de 100 mil o número de mulheres abusadas dado que grande parte delas opta pelo silêncio.

Tenho ouvido a opinião de especialistas sobre o assunto e num ponto há concordância: a segurança pública não é um problema de polícia, trata-se de uma questão de Estado. Ou os governos se empenham em ações de curto, médio e longo prazo, visando resultados ou as coisas piorarão de modo crescente.

Enquanto isso os crimes acontecem. O crime organizado age como se não existisse lei. Agora mesmo há prédios invadidos sob controle do crime organizado. São 11 prédios construídos pelo programa “Minha Casa Minha Vida” que foram invadidos por criminosos armados. As obras estavam finalizadas e seriam entregues aos moradores.

Há crimes para todos os gostos, alguns repugnantes. É o caso da mãe esquartejada pelo próprio filho que, depois do ato, decidiu espalhar as partes do corpo no bairro onde mora. O rapaz, de 17 anos, foi auxiliado pela namorada e por um sujeito maior de idade. Na TV a avó do rapaz chorava pela filha e pedia justiça, que o neto passasse o resto da vida dele recluso.

Vi na TV um comerciante que após ser assaltado quatro vezes se diz com medo até de sair à rua. O homem não sabe o que fazer daqui pra frente e pensa sair do país. O depoimento dele é pungente dado que teme não só pela sua segurança como, também, a de sua mulher e filhos.

Há alguns anos um texto da natureza do que aqui se escreve bem que poderia ser tomado como obra de ficção. Infelizmente, queira-se ou não, isso tudo é real, acontece ao nosso lado no dia-a-dia das cidades.

Muita gente não acredita, mas estamos em guerra.

Mulheres traídas

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Mulher traída não perdoa - sentenciava um amigo após a décima rodada de shop.  Os outros, em volta dos copos, balançavam a cabeça concordando. Não sei se ainda é assim, mas em rodas de homens que bebem mulher é o tema principal.

Conheço um cara que era casado e vivia com a mulher e os filhos. Família bem composta, gente boa, laços familiares sólidos. Até que ele se engraçou com uma secretária do lugar onde trabalhava. Verdade seja dita, a tal secretária era dessas mulheres que despertam a atenção dos machos. Desejada por todos, a moça acabou cedendo aos parcos encantos justamente do bom marido, o cara casado, pai e chefe de família.

Dizem que histórias de traição quase sempre terminam mal. No caso do meu conhecido as possibilidades de que a mulher dele tomasse conhecimento da aventura do marido eram praticamente nulas. O problema foi esse “praticamente”. Pois aconteceu de numa comemoração de final de ano a tal secretária aparecer na festa algo estonteante. Diante da força física da moça, a turma que a essa altura já andava meio alta começou a se perguntar que segredos teria aquele cara para tê-la conquistado.

Homens bebendo e conversando em geral se esquecem de onde estão. Tão alto falaram que a mulher de um deles acabou ouvindo a história de traição. Daí à notícia chegar à esposa traída foi uma nada, afinal solidariedade de categoria serve pra isso. O fim da história você pode imaginar: brigas, separação etc.

Quem a pouco tempo esteve na berlinda foi o presidente François Hollande. O mandatário da França teve um caso com uma atriz que se tornou público. A então primeira-dama Valerie Trierweiler não teve outra saída que não a de deixar Hollande. Agora Valerie está dando o troco: sai nesta semana um livro dela no qual traz a público detalhes da vida privada o casal. Interessante que ela ficou sabendo da existência da amante do presidente através de uma notícia publicada numa revista francesa. Ao saber do caso a primeira reação de Valerie foi a de tentar se matar. Ela correu para o banheiro, pegou um vidro de pílulas e só não as ingeriu porque Hollande tomou-o das mãos dela.

Não se sabe que consequências advirão do livro de Valerie. Mas, o caso reforça a opinião corrente entre os homens: mulher traída não perdoa.

Portanto, cuidado cara-pálida.

As três mulheres de Antibes

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William Somerset Maugham (1874-1965) foi um escritor inglês de grande sucesso. De sua obra fazem parte romances e contos, alguns deles utizados como enredo em produções cinematográficas. Maugham foi,também,dramaturgo sendo várias de suas peças encenadas com grande êxito. Entre os romances que escreveu destacam- se “O fio da navalha” e Servidão humana”. Ao tempo em que viveu a obra do escritor foi traduzida para várias línguas, inclusive o português, daí ser comum o contato dos leitores brasileiros com seus livros. Maugham também notabilizou-se como “escritor de viagens” dado que percorreu várias áreas do Império Britânico nas quais teve contato com usos e costumes. Dizía-se um contador de histórias o que de fato foi, embora não contasse com a aprovação dos críticos. O fato é que a obra de Maugham floresceu numa época em que se agigantavam os modernistas experimentais como James Joyce, Virgínia Woolf e William Faulkner.

Em meados da década de 70 do século passado ouvi de um colega de trabalho comentário sobre a obra de Maugham. Dizia ele que o escritor que se tornara popular em todo o mundo já não era mais lido passados poucos anos de sua morte. Com o que concordaram os presentes, todos eles antigos leitores de Maugham. Também eu li vários livros do escritor inglês. Curiosamente lembrei-me nesta semana de um livro dele intitulado “As três mulheres de Antibes”. Nessa história Maugham usa o seu habitual sarcasmo para relatar o acordo entre três amigas obesas para realizarem ao mesmo tempo um regime de emagrecimento. Cada uma delas vigiaria as outras e seria considerada traição às amigas romper unilateralmente com o regime.

Maugham descreve as dificuldades de cada uma para seguir em frente com a proposta realizada, inclusive as tentações provocadas por alimentos de que gostam. A história termina quando uma das mulheres surpreende outra comendo escondido. Após repreendê-la não consegue resistir: junta-se à amiga e passa a se deliciar com os quitutes. O mesmo acontece com a terceira. No final as três obesas comem muito e descreve- se que estavam muito felizes.

Está na ordem do dia o culto à forma do corpo e a febre de regimes de emagrecimento. Revistas semanais e mensais trazem informações sobre alimentos, sugerem regimes e realçam a importância de manter a forma. De fato a manutenção da saúde é muito importante, para ela concorrendo cuidados com os alimentos que ingerimos.  A obesidade é condição que preocupa em termos de saúde geral da população. Entretanto, não deixa de ser importante lembrar que em casos de obesidade faz-se necessário acompanhamento profissional para que os que fazem regimes não se deixem levar pelas tentações provocadas por alimentos proibidos.

O caso das três mulheres de Antibes ilustra bem como as coisas se passam com pessoas obesas que carecem de estímulo e orientação para perderem peso.

Norma Benguell

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Sou do tempo da chanchada. Você que é jovem não viu, não riu. Ría-se do absurdo, de piadas que se espalhavam pelas ruas, caiam no gosto e na boca do povo. Oscarito e Grande Otelo: que dupla. E não adianta os intelectuais virem a público para dizer que chanchada é sinônimo de lixo. Tinha chanchada ruim, sim. Mas, as da Atlântida eram boas. E vieram o Ankito, o Zé Trindade e aquela mulherada que fazia a delícia da homarada sequiosa. Aliás, que tipo o Zé Trindade, não? Baixinho, meio esquisito com aquela voz estranha a repetir os bordões dele. Um deles era o tal “mulheres cheguei”, pode?

A primeira vez que vi a Norma Benguell foi na tela do cinema, numa chanchada em parceria com o Oscarito. Que mulher! Bonita como ela só, corpo escultural, delícia de se ver. Não se passou muito tempo para que ela ganhasse notoriedade nacional ao trabalhar no filme “Os cafajestes” do diretor Rui Guerra. Era um tipo de cinema diferente que antecipava o que viria a ser o cinema novo. Vinha na linha dos “Cahiers do Cinema” que nos anos 60 ditavam o modo de ser do cinema embora “Os cafajestes” não fosse inteiramente fiel às regras. E trazia a majestade do primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Inesquecíveis as cenas de Norma Benguell nua correndo enquanto Jece Valadão dirigia o carro entre as ondas que quebravam na praia. Fazía-se ali história. Desafiava-se a moral vigente, a censura, o modo solene de ver a vida, jogando-se para baixo dos tapetes as perversões como se não existissem. O mundo era outro, era preciso manter as aparências a qualquer custo.

Agora que Norma Benguell morreu com mais de 80 anos de idade foi-me possível refazer, em parte, as emoções de principiante diante de uma inesperada nudez que contrariava o meu modo de ver o mundo naquele início da década de 60. Era outro o Brasil, outro o mundo, muito diferente deste em que hoje vivemos. Ainda não havíamos chegado à ditadura, a bossa nova caia no gosto das gentes e encantava. No país em que tudo parecia estar por acontecer aparecia a bela Norma que depois espalharia sua arte e encanto em filmes italianos e franceses.

Li que Norma Benguell reclamava da solidão no fim de sua vida. Os poucos amigos dela que compareceram ao velório censuraram a ausência de artistas, de tanta gente que trabalhou com ela e a conheceu. Na mídia fez-se questão de frisar a confusão econômica em que ela se envolveu com dinheiros que recebeu para produzir um filme. Nem todo mundo a tratou com o respeito devido a uma diva brasileira que fez parte do cotidiano e imaginário nacional ao longo de décadas.

Por isso, prefiro não levar em conta o último momento de Norma, este em que a doença corroeu seu copo e a morte a levou. Para mim Norma Benguell será sempre aquela mulher nua na praia e eu, se possível, o rapazote encantado com os olhos imantados à tela do cinema.

Comidas e paladar

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Olhe, confesso que nunca fui um bom gourmet. Talvez a coisa esteja ligada ao paladar que não figura como o melhor dos meus sentidos. Ou, ainda, a essa obsessão incurável de comer depressa, como se algo terrível estivesse para acontecer justamente quando estou à mesa.

Sei lá. Todo mundo sabe que em geral detestamos algumas pequenas características que observamos em nossos familiares. O diabo é que com o passar do tempo descobrimos que se não somos iguais a eles pelo menos herdamos coisas que criticávamos. Bem, meu pai era um afoito à mesa, comia depressa, dir-se-ia um trator amassando e triturando o que via pela frente. Não chego a tanto, mas negar alguma semelhança seria bobagem.

Bem, não é tão dramático admitir certa incapacidade para saborear certas comidas. A primeira vez que me dei conta de que não seria um bom gourmet aconteceu quando um amigo me garantiu que, definitivamente, eu não tinha o “tesão” por pratos requintados. Isso ele afirmou porque adorava cozinhar e tinha feito um prato especial para que almoçássemos. Comi aquilo, achei gostoso, mas fui incapaz de notar detalhes, sabores especiais dados por temperos que ele usara. No fim da refeição disse a ele que gostara muito, mas ele não se furtou a fazer comentários não muito elogiosos sobre o meu paladar.

O que não quer dizer que eu não sinta o gosto das coisas. Pois tenho um muito bom - não chega a excelente - paladar para doces. A essa altura preciso dizer que pertenço a uma família na qual as mulheres primavam por terem especialidades. Tal tia era famosa porque sabia preparar tal prato como ninguém. A minha avó paterna tinha entre suas especialidades a de fazer um doce de banana inimitável, de cujo sabor até hoje tenho saudades. Minha mãe fazia seus doces de abóbora ou pêssego cozinhando-os num tacho em fogão de lenha. Delícias das delícias pelas quais eu daria tudo para provar mais uma vez. Isso sem falar na atmosfera da cozinha de outro tempo, lugar onde se preparavam comidas saborosas e simples.

A essa altura creio ser obrigado a me desmentir, afinal o meu paladar não é tão ruim. O problema - o grande problema - talvez tenha sido a familiaridade com os alimentos comuns da cozinha caipira na qual não podem faltar o arroz, o feijão, o macarrão, as fritas e a “mistura” seja lá ela o carne, peixe ou coisas próximas. Talvez por ter sido criado dentro de uma cozinha assim, nunca pude me dar bem com a comida japonesa na qual alimentos crus são verdadeiras iguarias.  Aliás, por falar em iguarias, tenho uma passagem realmente terrível em relação a elas. Certa ocasião fui ao casamento de um amigo que eu não sabia ser tão endinheirado e chique. Depois da cerimônia na igreja seguiu-se a festa num bufê. Logo na entrada os convidados eram recebidos ao som de trombetas e caviar. Ora, de há muito eu queria saber que gosto tinham os caviares dos quais tanto se falava. Então, eis que, afoitamente, enchi a boca de caviar e não houve meio de engolir aquilo. O problema era que não sabia como me livrar do conteúdo que levava na boca, até que me aproximei de uma grande vaso de flores e ali dei um jeito de safar-me do incômodo.

Imagino pessoas que adoram caviar ao saberem que alguém detestou a tão afamada especiaria. De modo que ainda hoje me pergunto se o problema não teria sido “aquele” caviar. Quem sabe o chefe de cozinha que o preparara não teria utilizado algum componente responsável pelo gosto desagradável que vim a sentir. Graças a essa dúvida ainda não desisti do caviar: caso algum dia tenha oportunidade, pretendo experimentá-lo novamente.

Minha mulher diz que o meu problema em relação à comida é que não gosto a priori daí a minha recusa em experimentar novos pratos. Talvez ela tenha razão porque muitas vezes ela me engana servindo-me coisas sem que eu saiba o que seja. Depois que como - e gosto - ela se diverte, dizendo que comi tal e tal coisa de que vivo a dizer não gostar.

Famílias numerosas

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No Brasil o casamento só é permitido para quem está desembaraçado. Casar-se duas vezes ao mesmo tempo não é permitido pelo que, ao menos oficialmente, o divórcio, agora facilitado, serve como meio de acesso a novas uniões.

Por aqui as coisas funcionam de modo diferente daquelas situações das Arábias nas quais um homem mantém um harém com várias esposas. Entretanto, pode-se afirmar, sem medo de errar, que o que é oficial nem sempre corresponde à realidade observada aqui no território nacional.

Há alguns anos, em viagem de trabalho ao nordeste fui recebido por um excelente rapaz, boa prosa, que se animou em me levar para conhecer a cidade onde estávamos. Volta vai, volta vem, parou ele diante de uma casa onde conheci uma bonita moça, grávida de uns seis meses, que o rapaz me apresentou como sua mulher.

A visita foi rápida, conversamos um pouquinho e logo saímos. Depois, mais voltas pela cidade e o rapaz parou em outra casa de onde saíram para receber-nos uma mulher, grávida já próxima do período de termo, e um menino. Também ficamos ali durante alguns minutos, tempo suficiente para que eu soubesse que aquela era a mulher do rapaz e o menino o filho dele.

Quando saímos, já no carro, não pude conter a minha curiosidade e pedi ao meu guia explicação sobre o fato. Então tinha ele duas mulheres?

Quando perguntei isso o rapaz sorriu, aparentando a maior naturalidade do mundo. Eram, sim, as duas mulheres dele. Na verdade, a última que visitáramos era a com quem ele se casara oficialmente e em cuja casa passava a maior parte do tempo. A outra viera depois e agora estava também grávida de um filho dele.

Ora, diante de tal situação não me contive e quis saber se as mulheres se conheciam. Ele riu do meu espanto e disse que não só se conheciam como se sabiam grávidas do mesmo homem e saiam juntas para preparar o enxoval das crianças.

Ora, ora, ora, mundo, vasto mundo, como dizia o poeta.

Agora leio no jornal sobre o caso de duas mulheres e um homem que oficializaram, em cartório, uma união estável que já dura três anos. Trata-se de uma escritura declaratória de união poliafetiva que estabelece o regime de comunhão parcial de bens, registrando que um deles será o administrador dos bens. Com o documento os três poderão recorrer à Justiça para conseguir os benefícios típicos de um casal.

Agora só me resta concluir que o rapaz do nordeste deve mesmo ter se contido para não rir muito da minha estranheza diante da situação dele. O mundo gira, a Lusitana roda e a realidade nem de perto se parece com aquela que supomos ser a vigente nos nossos dias.